A concessão de uso especial para fins de moradia como importante instrumento para regularização em áreas públicas
Segundo relatório da ONU-Habitat estima-se que aproximadamente 2,8 bilhões de pessoas no mundo não possuam moradia adequada e estão instaladas em áreas informais, devido ao alto custo da moradia para famílias de baixa renda. Além disso, no Brasil, cerca de 33 milhões de pessoas não têm acesso à moradia digna, vivendo em circunstâncias precárias.
Esse tipo de ocupação não é algo recente; ocorre desde os primeiros momentos da urbanização no Brasil. Tanto que, quando a Constituição Federal foi promulgada em 1988, já incluía um capítulo específico sobre Política Urbana, com o objetivo de atenuar os conflitos presentes nas cidades. Esses conflitos são resultado de um processo de urbanização predatória que se intensificou no país a partir da década de 1930.
Dessa forma, o texto constitucional tentando corrigir tal situação, dispôs no art. 183 que, quem possua imóvel urbano de área não superior a 250 m2, de forma contínua e sem oposição, pelo período de 5 anos, e o utilize para sua moradia ou de sua família, poderá adquirir o seu domínio por meio de usucapião, desde que não seja titular de outro imóvel.
O dispositivo constitucional tinha por objetivo regularizar ocupações consolidadas há mais de 5 anos, por meio da usucapião, garantindo o direito à moradia a milhares de pessoas em situação irregular, contudo, não abrangia as ocupações em áreas públicas, por não serem passíveis de posse e aquisição por usucapião.
Muitas das ocupações informais, entretanto, ocorreram em áreas públicas não valorizadas pelo mercado formal de habitação e com a impossibilidade de aplicação do disposto no art. 183 a essas famílias, criou-se uma discrepância e grande parte da população permaneceu em extrema vulnerabilidade. Foi necessário, então, criar um instituto jurídico distinto da usucapião que resolvesse tal diferenciação.
Assim, para solucionar tal impasse e garantir isonomia na regularização tanto em áreas particulares, quanto públicas, houve uma tentativa de inclusão de um novo instituto denominado concessão de uso especial para fins de moradia no estatuto da cidade, mas os artigos que previam a sua aplicação foram vetados pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, que posteriormente editou a medida provisória 2220/01.
Em síntese, as razões do veto reconheciam a importância do instituto, contudo, expunham contrariedade ao interesse público em decorrência do não estabelecimento de uma data limite para a aquisição do direito, o que tornava permanente um instrumento só justificável pela necessidade imperiosa de solucionar o imenso passivo de ocupações irregulares gerado em décadas de urbanização desordenada.
A concessão de uso especial para fins de moradia, então, ingressou no direito brasileiro com a edição da Medida Provisória 2220/01. Surgiu para cumprimento da função social da propriedade disposta na CF/88, bem como o direito à moradia dos ocupantes de áreas públicas, já que não existe posse em sentido estrito e sim mera detenção de bem público e, consequentemente, não havia como usucapir referidos bens.
O conceito de concessão especial para fins de moradia está disposto no art. 1º. da medida provisória, o qual a define como sendo o instituto pelo qual o Estado confere a um particular o direito de utilizar um terreno público, que já possuía, para sua moradia ou de sua família quando presente os requisitos legais definidos em seu texto e desde que o concessionário não seja titular de outro imóvel urbano ou rural.
Com o advento da lei 11.481/07, a concessão de uso especial para fins de moradia passou a incluir o rol de direitos reais do art. 1.225 do CC, fortalecendo ainda mais o instituto em nosso ordenamento jurídico. Com efeito, esse direito passou a ingressar no folio real (ser registrado no Registro de Imóveis correspondente), possibilitando a circulação econômica do bem, além de geração de crédito ao beneficiário, já que pode ser dado em garantia. Vale ressaltar ainda, que pode ser objeto de hipoteca e de alienação fiduciária em garantia, bem com comporta transmissão inter vivos e causa mortis.
O art. 4º., inciso V, “h” do Estatuto da Cidade, por sua vez, a considera como sendo um instrumento de política urbana.
A doutrina entende que a natureza jurídica do instituto se trata de uma forma de prescrição aquisitiva do direito de uso que recai sobre imóvel público, com a única finalidade de garantir a moradia do ocupante.
Pode ser concedida de forma individual, coletiva ou para fins comerciais. Quando concedida coletivamente, serve como forma de regularização de assentamentos precários como favelas e cortiços. A área ocupada deve possuir metragem superior a 250 m2, na qual é ou não é possível identificar individualmente a porção de cada ocupante e desde que a área total dividida pelo número de possuidores seja inferior a duzentos e cinquenta metros quadrados por possuidor. Cada ocupante, neste caso terá uma fração ideal da área.
No caso da concessão de uso para fins comerciais, a área a ser concedida também deve ser inferior a 250m2 e a posse por 5 anos ininterruptos, entretanto, neste caso, a concessão é uma faculdade do Poder Público.
Os requisitos para a concessão de forma individual são:
- Posse ininterrupta e sem oposição por 5 anos, havendo a possibilidade de se acrescer para a contagem posse anterior hereditária;
- Os 5 anos de posse devem ser contabilizados até o dia 22 de dezembro de 2016;
- O imóvel público deve estar situado em zona urbana com área não superior a 250 m2, exceto a hipótese de concessão de uso especial para fins de moradia coletiva;
- O possuidor não pode ter outro imóvel, a qualquer título, seja imóvel urbano ou rural;
- O titular não pode receber mais de uma vez o benefício.
Em regra, deve ser pleiteada no município. Excepcionalmente, os entes federais e estaduais poderão instituir concessão desta natureza, mas mesmo nesses casos, é indispensável a manifestação do Poder Público municipal.
Cumpridos os requisitos acima descritos, o interessado poderá solicitar a concessão perante o órgão competente da administração pública municipal (estabelecido por lei municipal), que terá 12 meses para decidir sobre o pedido, contados do protocolo.
Caso haja deferimento administrativo do pedido, será entregue ao requerente um termo de concessão de uso especial para fins de moradia. Se não houver decisão administrativa no prazo acima assinalado, o interessado poderá ingressar judicialmente e neste caso, o título registrável será um mandado ou uma sentença declaratória e concessão. (Art. 167, I, 37, da lei 6015/73)
Em ambos os casos, o título, seja termo administrativo, seja sentença ou mandado judicial, deverá ser levado a registro no ofício de registro de imóveis da circunscrição do bem, para gerar oponibilidade erga omnes, uma vez que em nosso ordenamento jurídico vigora o sistema do título e modo.
Se o imóvel ocupado gerar risco à saúde ou à vida dos requerentes ou se for necessário para dar cumprimento a outro interesse público, o Poder Público deve garantir o direito em outro local, próximo ao originário.
Assim, a concessão de uso especial para fins de moradia é um importante instrumento de regularização fundiária, pois, o instituto tem a capacidade de regularizar a situação de insegurança jurídica da moradia de muitas pessoas que ocupam áreas públicas. Entretanto, é de pouco conhecimento da população e até dos profissionais do Direito e, consequentemente, de pouco uso prático.
A limitação do instituto, reside na data limite de seu reconhecimento, ou seja, no limite temporal no qual a lei reconhece ser a ocupação consolidada. Este limite já foi ampliado até 22/12/16 e existe projeto para aumento do limite até 2019, o que beneficiaria mais situações.
Para sua efetividade, o instituto deveria ser mais divulgado e utilizado por advogados e defensores públicos. Os requisitos para o direito à concessão de uso especial para fins de moradia são idênticos aos da usucapião constitucional e não é uma faculdade sua concessão e sim direito subjetivo do ocupante, exceto no caso da concessão para fins comerciais.
Por fim, é importante destacar que a utilização do instituto como meio de regularização fundiária para ocupações em áreas públicas, possibilita inclusão social e concretiza o direito à moradia, promovendo justiça socioespacial. Isso contribui também, para a melhoria da organização do espaço urbano e circulação de riquezas, já que o imóvel passa a fazer parte da cidade formal e do mercado imobiliário, fortalecendo, assim, a dignidade da pessoa humana para a população de baixa renda.
______
Alvarenga, Luiz Carlos (2008). A concessão de uso especial para fins de moradia como instrumento de regularização fundiária e acesso à moradia. Revista de Direito Imobiliário, 65, 61.
Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidên-cia da República; 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: (2/9/24).
Brasil. Medida Provisória 2220, de 2001. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2001/mp2220.htm. Acesso em: (2/9/24).
Brasil. lei 11.481, de 31 de maio de 2007. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Lei/L11481.htm. Acesso em: (2/9/24).
Brasil. lei 10.257, de 10 de julho de 20011. Estatuto da Cidade. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L10257.htm2. Acesso em: (2/9/24).
Kumpel VF, Ferrari CM. Tratado de Direito Notarial e Registral, Volume 5: Ofício de Re-gistro de Imóveis. 2ª ed. São Paulo: Editora YK; 2020.
Maricato, Ermínia. Metrópole na periferia do capitalismo: ilegalidade, desigualdade e violência, São Paulo, Hucitec, 1996
ONU-Habitat. Relatório Anual 2022. Disponível em: https://unhabitat.org/annual-report-2022. Acesso em: (2/9/24).
ONU Digna. Relatório sobre a Habitação e a Inclusão Social. Disponível em: https://www.un.org/digna/housing-report-2023. Acesso em: (2/9/24).
Fonte: Migalhas
Deixe um comentário