Toda a discussão acerca do instituto da desconsideração da personalidade jurídica (disregard of legal entity) se amolda aos limites da arbitragem previstos na Lei nº 9.307/1996 e na Lei nº 13.129/2015, dado que, para a validade da sentença arbitral que determinar a desconsideração da personalidade jurídica, há necessidade de estarem presentes os requisitos de arbitrabilidade subjetiva e objetiva.

A arbitragem, enquanto procedimento de resolução de conflitos que compõe renúncia ao juízo estatal, encontra limites legais, como o previsto no artigo 1º da Lei nº 9.307/1996, o qual institui que as pessoas capazes de contratar poderão se valer da arbitragem para resolver conflitos que sejam patrimoniais e disponíveis.

Tais limitações, divididas em arbitrabilidade subjetiva e arbitrabilidade objetiva, precisam estar presentes para a validade do processo arbitral e da sentença que nele que será proferida. A arbitrabilidade é, portanto, a condição necessária para que determinado conflito possa ser submetido ao procedimento arbitral [1].

Temos como regra geral, no ordenamento jurídico, a não expansão dos efeitos da cláusula de arbitragem aos sócios, justamente em razão da escolha por este meio alternativo significar renúncia ao acesso ao juízo estatal, bem como renúncia ao princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, conforme prescreve o artigo 5, XXXV, da Constituição Federal.

Contudo, conforme leciona Leonardo Campo de Melo, em determinadas circunstâncias a parte não signatária de cláusula arbitral poderá ser chamada para integrar o respectivo processo arbitral, ou mesmo poderá invocá-la a seu favor. Esta possibilidade é o que chamamos de extensão da cláusula arbitral à parte não signatária[2].

Ainda no entendimento do professor Leonardo de Campo Melo, em seu trabalho voltado à análise da compatibilidade com o Direito brasileiro da prática arbitral internacional, notadamente na International Court Of Arbitration of the Internactional Chamber of Commerce (CCI), aplica-se a extensão da clausula arbitral aos chamados grupos de sociedades, e elucida acerca da teoria e história dos chamados group of companies:

“O grupo empresarial nasce da união de duas ou mais sociedades empresárias, dotadas de personalidade jurídica própria, submetidas a direção unitária e a poder de controle comum, tendo por objetivo a combinação de seus recursos ou esforços, para a consecução de resultados financeiros positivos. Dessa forma, por meio de direção unitária, o controlador de sociedades integrantes de grupo econômico tem o poder de definir como se dará a gestão de cada uma delas, bem como os respectivos objetivos a serem alcançados” [3].

Excepcionalidade

Observa-se, em boa parte da jurisprudência, seguida pela doutrina, reiterados precedentes possibilitando a desconsideração no âmbito de grupos de sociedade, quando vinculada à atuação ilícita de uma das sociedades que pertença ao grupo.

Isso ocorre, principalmente, nos casos em que se considera que uma das empresas do grupo, embora não faça parte da relação jurídica discutida, atua de modo fraudulento, prejudicando o credor da sociedade devedora[4].

Neste sentido, o Superior Tribunal de Justiça tem entendido pela possibilidade da desconsideração atingindo outra sociedade do grupo, no entanto, a Corte Superior ressalta a excepcionalidade de tal medida e a necessária vinculação entre a desconsideração e a prática de atos ilícitos [5].

Vale deixar claro que a extensão da cláusula arbitral não se confunde com o instituto da desconsideração da personalidade jurídica e a extensão subjetiva da cláusula arbitral, por sua vez, não se confunde com a desconsideração. Tratam-se de institutos jurídicos distintos, com fundamente e feitos diversos.

Percebe-se que as decisões arbitrais têm invocado a teoria da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito da arbitragem para reagir a abusos e fraudes, quando envolvendo grupos de sociedades em que uma sociedade não tem patrimônio e a operação for realizada em virtude da controladora, explica Arnold Wald:

“Em suma, no direito suíço, a extensão da cláusula compromissória a uma parte que não consta da convenção arbitral apenas poderá ser considerada se se puder deduzir dos documentos que aquela parte foi validamente representada por um dos contratantes, o que não resulta da merda aparência de um grupo, se houve ratificação subsequente ou ainda se o fato de não respeitar a cláusula arbitral constituía um abuso de direito, permitindo-se a desconsideração da personalidade jurídica” [6].

Quanto à aplicação da teoria dos grupos de sociedades já mencionado acima, como forma a possibilitar a desconsideração da personalidade jurídica na arbitragem, os professores Freddie Didier Jr. e Leandro Aragão asseveram o perigo de utilização do instituto, afirmando que:

“(…) ainda que os Árbitros sejam juízes de fato e de direito, como está dito no art. 18 da lei de Arbitragem – o que os incluiria na expressão juiz do art. 50 do Código Civil -, seu poder de decidir decorre exclusivamente da convenção de arbitragem, que estabelece os limites da cognição arbitral. Em função de sua origem contratual, a jurisdição arbitral não pode ir além do negócio jurídico que motivou a sua implantação nem pode envolver senão as partes que o convencionaram” [7].

Porém, mesmo que os institutos não sejam os mesmos, a extensão da clausula arbitral e a desconsideração, revela-se necessário levar em conta a teleologia de ambos, pelo fato de que, para a ocorrência da desconsideração da personalidade jurídica deve haver o uso abusivo da pessoa jurídica por algum de seus sócios, identificado através da confusão patrimonial ou desvio de finalidade[8].

Entretanto, na teoria dos grupos de sociedades, identifica-se a vontade da parte não signatária de se vincular a cláusula arbitral por meio do seu envolvimento na relação jurídica, da desconsideração da personalidade jurídica o sócio deve ser vinculado a tal cláusula arbitral inserta em relação jurídica na qual atuou de forma fraudulenta, utilizando da pessoa jurídica como evasão à assunção de compromissos sem responsabilização.

Com isso, adotando o entendimento da professora Viviane Muller Prado e Antonio Deccache, pode se afirmar que é possível a aplicação da teoria disregard of legal entity no processo arbitral, desde que presentes os requisitos que caracterizam tal instituto:

“(…) não se pode esquecer que a teoria da desconsideração visa justamente a coibir o mau uso da pessoa jurídica caracterizado pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial, de modo que não parece razoável que a parte, tendo abusado da pessoa jurídica, ainda venha a dela poder se aproveitar para esquivar-se do cumprimento da obrigação de resolver seu conflito pela via arbitral. Além do mais, deve-se considerar que o objetivo da teoria da desconsideração é trazer à lume a parte que, no plano da realidade, contraiu a obrigação, mas que for razões estranhas a ela, decidiu se subtrair do negócio jurídico” [9].

Por fim, resta caracterizado que não é possível admitir que a adição da cláusula arbitral em um contrato represente uma forma de evitar a responsabilização dos sócios quando caracterizado o uso abusivo da personalidade jurídica pelos seus membros.

Nessa linha, a desconsideração da pessoa jurídica seria a “forma” de ultrapassar as barreiras do patrimônio da pessoa jurídica, a fim de atingir o patrimônio dos sócios, em razão de uma finalidade da pessoa jurídica.

Através da forma que essa pessoa jurídica for aproveitada por seus sócios, como instrumento de fraude, desviando da função social da pessoa jurídica, é possível a desconsideração de tal personalidade, a fim de garantir a proteção contra credores e até mesmo contra a própria pessoa jurídica.

Havendo a desconsideração através de procedimento arbitral, pressupõe análise acerca dos elementos de validade da arbitragem, quais sejam, a arbitralidade subjetiva e objetiva.

Com isso, chegamos ao ponto de poder comparar a teoria dos grupos de sociedades, identificando-se a possibilidade de vinculação dos sócios, por meio da desconsideração da pessoa jurídica e da cláusula arbitral inserida em relação jurídica na qual atuou de forma fraudulenta, utilizando da pessoa jurídica como escape a admissão de compromissos sem responsabilização por parte dos sócios.

O poder de jurisdição dos árbitros através da lei brasileira de arbitragem e da intenção das partes ao assinar a cláusula arbitral, pode-se concluir pela arbitralidade objetiva da desconsideração da pessoa jurídica.

Considerações finais

Conclui-se a presente opinião jurídica, no entanto, que há possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica no procedimento arbitral, semelhante ao que ocorre nos processos de juízo estatal.

Nos processos arbitrais é necessário que a utilização da desconsideração da personalidade jurídica ocorra de forma precavida e controlada, com extrema atenção aos requisitos previstos em lei, e com o objetivo de atingir com a maior segurança aos próprios processos arbitrais e as partes envolvidas, com o fim de preservar o cumprimento dos contratos e afastar as atuações autoritárias e fraudatórias.

 

[1] MELO, Leonardo de Campos. Extensão da cláusula compromissória e grupos de sociedades – A prática arbitral CCI e sua compatibilidade com o direito brasileiro. Rio de Janeiro: Florense, 2013. p. 53. Idem. p. 60/61.

[2] Idem. p. 60/61.

[3] MELO, Leonardo de Campos Extensão da cláusula compromissória e grupos de sociedades – A prática arbitral CCI e sua compatibilidade com o direito brasileiro. Rio de Janeiro: Florense, 2013, p. 42

[4] Idem. p. 174.

[5] Com efeito, a desconsideração da pessoa jurídica, mesmo no caso de grupos econômicos, deve ser reconhecida em situações excepcionais, quando verificado que a empresa devedora pertence a grupo de sociedades sob o mesmo controle e com estrutura meramente formal, o que ocorre quando diversas pessoas jurídicas do grupo exercem suas atividades sob unidade gerencial, laboral e patrimonial, e, ainda, se visualizar a confusão de patrimônio, fraudes, abuso de direito e má-fé com prejuízo a credores.” Trecho do voto do relator do REsp nº 9.68.564/RS, Min. Arnaldo Esteves Lima. Sobre o tema, ver também: REsp nº 744.107/SP, REsp nº 968.564/RS e REsp nº 689.653/AM.

[6] WALD, Arnoldo. A arbitragem, os Grupos Societários e os Conjuntos de Contratos Conexos. Revista de Arbitragem e Mediação. São Paulo: Revista dos Tribunais. V.2. mai/ago. 2004. p. 47

[7] DIDIER JR, Fredie; ARAGÃO, Leandro. A desconsideração da personalidade jurídica no processo arbitral. In YARSHELL, Flávio Luiz PEREIRA, Guilherme Setoguti J. Processo societário. São Paulo: Quartier Latin. 2012. p. 255-268.

[8] MELO, Leonardo de Campos. Extensão da cláusula compromissória e grupos de sociedades – A prática arbitral CCI e sua compatibilidade com o direito brasileiro. Rio de Janeiro: Florense, 2013. p. 66/67.

[9] PRADO, Viviane Muller; DECCACHE, Antonio. Arbitragem e desconsideração da pessoa jurídica. In: CONPEDI. (org). Direito Empresarial. XXI Congresso Nacional do CONPEDI/UFF. 1ª Ed. Florianópolis: FUNJAB. 2012. p. 216/245 p. 236/238

Fonte: Conjur

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