A fraude à execução se configura quando o devedor aliena ou onera seu patrimônio com a finalidade de frustrar a satisfação do crédito, comprometendo a efetividade da execução. No entanto, a questão se complexifica quando a alienação envolve bem de família, dada a sua impenhorabilidade. A ausência de previsão expressa na Lei nº 8.009/1990 quanto à incidência da fraude à execução sobre o bem de família gerou acirrada controvérsia doutrinária e jurisprudencial.
Fundamentos jurídicos da impenhorabilidade do bem de família
A proteção ao bem de família, fundamentada na Lei nº 8.009/1990, justifica-se pela necessidade de assegurar a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da CRFB), o direito fundamental à moradia (artigo 6º da CRFB) e a função social da propriedade (artigo 5º, XXIII, da CRFB).
A jurisprudência do STJ tem interpretado essa proteção de forma ampla, abrangendo não apenas o imóvel em que reside uma família nuclear, mas também situações como a moradia de irmãos solteiros (REsp 159.851/SP) e a proteção de valores destinados à aquisição de bem de família (REsp 707.623/PR). A Súmula 364 do STJ também reforça essa ampliação ao prever que o conceito de bem de família abrange imóveis pertencentes a devedores solteiros.
Apesar de sua aparente rigidez, a impenhorabilidade do bem de família não é absoluta. O artigo 3º da Lei nº 8.009/1990 elenca situações em que a proteção pode ser afastada, tais como dívidas fiscais e trabalhistas, obrigações decorrentes do financiamento do imóvel, garantias hipotecárias voluntárias e créditos alimentares. A fraude à execução não está expressamente prevista como uma exceção, o que levou a um intenso debate sobre a possibilidade de relativização da proteção legal em situações fraudulentas.
Conceito e elementos da fraude à execução
A fraude à execução ocorre quando o devedor aliena ou onera bens com o propósito de frustrar a satisfação do crédito, impedindo que o credor execute seu direito. Conforme Tepedino (2012, p. 134), a caracterização da fraude à execução exige a verificação cumulativa de quatro elementos essenciais: citação válida do devedor em ação de execução; alienação ou oneração do bem após a citação; prejuízo real ao credor (eventus damni); e existência de má-fé do devedor e conhecimento do terceiro adquirente.
A doutrina majoritária sustenta que o reconhecimento da fraude à execução deve ser baseado na prova desses requisitos, sob pena de violação ao princípio da segurança jurídica. No entanto, quando a alienação envolve bem de família, surge a controvérsia sobre a possibilidade de afastamento da proteção legal.
A Lei nº 13.097/2015 introduz a presunção relativa de fraude à execução quando houver averbação da ação na matrícula do imóvel (artigo 54). Na ausência dessa averbação, o ônus probatório recai sobre o credor, que deve demonstrar que a alienação foi realizada com o propósito de fraudar a execução. Esse entendimento está consolidado no REsp 1.227.366 (STJ, 4ª T.), que exige a comprovação do efetivo prejuízo ao credor para afastamento da impenhorabilidade.
Enquanto alguns julgados entendem que a proteção não pode ser utilizada para encobrir fraudes patrimoniais (REsp 1.299.580 e REsp 1.364.509), outros defendem que a alienação de bem impenhorável não caracteriza fraude, pois o credor jamais poderia executar o bem, independentemente da venda (AgRg no AREsp 255.799 e REsp 1.227.366).
Divergências jurisprudenciais sobre a fraude à execução e o bem de família
- Corrente que admite a penhora do bem de família em caso de fraude
O STJ reconheceu a fraude à execução e determinou a penhora do bem de família em hipóteses nas quais restou demonstrada a tentativa deliberada de ocultação patrimonial. No REsp 1.299.580 (STJ, 3ª T.), analisou-se caso em que o devedor alienou todos os seus bens, excetuando-se o imóvel protegido pela impenhorabilidade, de modo a inviabilizar qualquer constrição patrimonial. O tribunal, à luz do princípio da função social da propriedade, entendeu que a proteção conferida pela Lei nº 8.009/1990 não pode servir de instrumento para lesar credores, configurando abuso de direito (Abílio, 2015, p. 148).
De igual modo, no REsp 1.364.509 (STJ, 3ª T.), reconheceu-se a fraude à execução em situação na qual o devedor, após ser citado, realizou a doação do bem de família a seus descendentes, em tentativa evidente de blindagem patrimonial. O tribunal ressaltou que a fraude não deve ser analisada exclusivamente sob o prisma formal da impenhorabilidade, mas sim à luz das circunstâncias fáticas, sobretudo quando há indícios claros de intenção de frustrar a execução (Abílio, 2015, p. 150).
Outro precedente que reforça essa linha interpretativa é o AgRg no AREsp 334.975 (STJ, 4ª T.), no qual o STJ enfatizou que a proteção ao bem de família não pode ser utilizada para legitimar atos fraudulentos. Ainda que o imóvel seja, em tese, impenhorável, sua alienação em contexto de fraude patrimonial descaracteriza a boa-fé do devedor, permitindo que o credor postule a constrição do bem.
Essa corrente se alicerça na necessidade de assegurar o equilíbrio entre a proteção ao devedor e o direito do credor, impedindo que a impenhorabilidade se transforme em meio ilegítimo de blindagem patrimonial. A relativização da proteção do bem de família, nesses casos, fundamenta-se na teoria do abuso de direito e na interpretação funcional do direito de propriedade, considerando-o um instituto que deve estar alinhado com a tutela da boa-fé objetiva e da vedação ao enriquecimento ilícito.
- Corrente que mantém a proteção do bem de família mesmo em caso de fraude
O AgRg no AREsp 255.799 (STJ, 1ª T.) consagra essa visão ao argumentar que o credor não pode se beneficiar da anulação da alienação quando o bem já era impenhorável antes da sua transferência. Na decisão, o STJ reafirmou que, independentemente da fraude à execução, a proteção da moradia deve prevalecer sempre que a destinação do imóvel permanecer inalterada (Abílio, 2015, p. 151).
No REsp 976.566 (STJ, 4ª T.), o tribunal reforçou que a proteção conferida ao bem de família não pode ser afastada por alegação de fraude se não houver comprovação de efetivo prejuízo ao credor. A decisão destacou que, se o imóvel era impenhorável antes da alienação, o fato de ter sido transferido não altera a ausência de garantia executiva sobre ele. Assim, ainda que a fraude à execução seja reconhecida, a ineficácia do ato não autoriza a penhora do bem.
O precedente de maior impacto recente nesse sentido é o EAREsp 2.141.032 (STJ, 2ª S.), em que a 2ª Seção do STJ, ao uniformizar o entendimento sobre o tema, firmou que a fraude à execução não afasta a proteção do bem de família, desde que ele continue sendo utilizado para fins residenciais. O acórdão enfatizou que a destinação do imóvel é o fator determinante para a incidência da impenhorabilidade, e não o fato de ter havido ou não uma alienação fraudulenta.
Essa corrente sustenta que a proteção ao bem de família tem natureza absoluta, pois decorre diretamente de preceitos constitucionais relacionados à dignidade da pessoa humana e ao direito à moradia. Além disso, argumenta-se que permitir a penhora do bem de família com base na fraude à execução poderia gerar um efeito indesejável de enfraquecimento da proteção habitacional, incentivando execuções mais agressivas e vulnerabilizando devedores em situação de fragilidade econômica. Essa jurisprudência opera com uma lógica de preservação do núcleo essencial do direito à moradia, recusando-se a flexibilizar a proteção com base em atos que, embora fraudulentos, não modificam a natureza jurídica do bem.
Critérios para o reconhecimento da fraude à execução no bem de família
O primeiro critério fundamental para a configuração da fraude à execução é a existência de prejuízo efetivo ao credor. O entendimento no REsp 1.227.366 estabelece que a mera alienação do bem de família não configura, por si só, fraude à execução, sendo necessária a demonstração de que a transação efetivamente comprometeu a solvência do devedor e impediu a satisfação do crédito exequendo (Abílio, 2015, p. 152).
O EAREsp 2.141.032 reafirmou que a proteção somente pode ser afastada quando houver evidências de que o imóvel deixou de cumprir sua função de residência familiar. Se a moradia continuar a ser utilizada pela entidade familiar, a jurisprudência tende a preservar sua impenhorabilidade, mesmo quando há indícios de fraude.
O REsp 1.364.509 destacou que, para que a alienação seja considerada fraudulenta, é necessário que o adquirente tenha ciência da pendência judicial e da possível frustração do crédito. A jurisprudência exige a comprovação da má-fé do terceiro, especialmente nos casos em que a transação ocorre entre familiares ou pessoas próximas ao devedor, o que pode configurar indício de blindagem patrimonial ilícita (Abílio, 2015, p. 150).
O critério da blindagem patrimonial tem sido utilizado para afastar a proteção do bem de família quando há indícios de que a alienação foi realizada com o único propósito de esvaziar o patrimônio do devedor. O REsp 2.134.847 destacou que, quando o imóvel é doado a um descendente logo após a citação na execução, há fortes indícios de que a operação visava a frustrar a expropriação, sendo possível afastar a impenhorabilidade.
Flávio Tartuce (2020) ressalta que a análise da boa-fé objetiva deve ser determinante na aferição da fraude à execução, evitando que a proteção ao bem de família seja utilizada como um instrumento de abuso de direito. Por outro lado, Guilherme Calmon Nogueira da Gama (2014, p. 282) alerta para os riscos de uma flexibilização excessiva da impenhorabilidade, que poderia comprometer a segurança jurídica e desvirtuar a finalidade protetiva do instituto.
Posições doutrinárias sobre a fraude à execução no bem de família
De um lado, há doutrinadores que defendem a aplicação rígida da lei, sob o argumento de que a proteção à moradia tem fundamento constitucional e não pode ser afastada com base em interpretações extensivas. Gama (2014, p. 282) argumenta que a impenhorabilidade do bem de família não pode ser mitigada por critérios subjetivos de análise da fraude, sob pena de comprometer a segurança jurídica e gerar instabilidade na proteção da moradia.
Por outro lado, há juristas que advogam pela possibilidade de afastamento da impenhorabilidade quando demonstrada a fraude à execução. Tartuce (2020) sustenta que a boa-fé objetiva deve ser o critério primordial na análise da validade das alienações patrimoniais, de modo que o bem de família não pode ser utilizado como escudo para práticas fraudulentas. O autor destaca que o abuso de direito deve ser combatido, ainda que isso signifique relativizar a proteção do bem de família em situações específicas.
No mesmo sentido, Nery e Donnini (2009, p. 70) enfatizam que a fraude à execução constitui um ilícito que deve ser reprimido pelo ordenamento jurídico, e que a proteção ao bem de família não pode ser utilizada como instrumento de enriquecimento ilícito ou blindagem patrimonial contra credores de boa-fé.
Análise final
A jurisprudência do STJ tem evoluído no sentido de reconhecer a possibilidade de afastamento da impenhorabilidade em casos de fraude à execução comprovada. A exigência de demonstração do prejuízo ao credor e da má-fé do devedor e do terceiro adquirente ainda são critérios fundamentais para a relativização da proteção. Decisões como o REsp 1.299.580 e o REsp 1.364.509 indicam uma tendência à flexibilização da impenhorabilidade quando há indícios claros de alienação fraudulenta, ao passo que precedentes como o REsp 1.227.366 reforçam a necessidade de prova concreta do dano ao credor.
No campo doutrinário, há uma divisão entre aqueles que defendem a proteção intransigente do bem de família e aqueles que sustentam a necessidade de coibir práticas abusivas. Enquanto Gama (2014, p. 282) sustenta a inafastabilidade da impenhorabilidade sem previsão legal expressa, Tartuce (2020) defende a aplicação da boa-fé objetiva como critério para afastar a proteção em situações de fraude.
A aplicação da fraude à execução ao bem de família deve ser analisada com cautela, levando em consideração não apenas a legislação vigente, mas também os princípios constitucionais envolvidos. A tendência jurisprudencial mais recente sugere uma maior disposição para relativizar a proteção do bem de família em casos de abuso de direito, mas o tema ainda permanece em evolução, exigindo uma abordagem casuística para evitar tanto a impunidade de fraudes quanto a violação da segurança jurídica dos devedores.
Referências
ABÍLIO, Vivianne da Silveira. A questão da configuração de fraude nas alienações envolvendo bem de família e suas consequências: análise da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça a partir do Recurso Especial nº 1.227.366. Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 3, jan./mar. 2015, p. 140-155.
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Fonte: Conjur
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