A história do testamento vital é algo pouco explorado, apesar de seu uso ser corriqueiro em algumas nações do mundo. Antes de discutirmos a situação do instituto na sociedade brasileira, é conveniente entendermos como se deu sua criação e como ele tem sido empregado por outros países

 

Olá, meus amigos, tudo bem? Hoje vamos abordar o testamento vital, um instrumento médico-jurídico ainda pouco conhecido e adotado pelos brasileiros, mas muito comum no dia-a-dia de outras nações.

 

INTRODUÇÃO

 

Nas últimas décadas, sobretudo na segunda metade do século passado, os avanços terapêuticos proporcionados por equipamentos médicos e inovações farmacológicas fizeram com que situações até então irremediavelmente fatais pudessem ser satisfatoriamente tratadas pelas equipes assistenciais. Em vários cenários, o que se observou foi incremento de qualidade[1] e quantidade à saúde, isto é, houve aumento dos anos de vida sem prejuízo – e até com ganho em alguns casos – para a cognição, a autonomia e a independência da maior parte das pessoas.[2]

 

A par disso, paulatinamente houve crescimento do número de pacientes submetidos a “tratamentos fúteis”, em que o benefício temporal, por vezes mínimo, se mostrava desproporcional à perda do bem-estar do enfermo ocasionada pela própria terapêutica.

 

Daí que a Medicina e a Bioética têm, nos últimos anos, tornado o debate acerca das formas de morrer uma de suas principais temáticas, na tentativa de tornar mais claro quando determinada terapêutica deve ser firmemente empregada e quando sua insistência se mostra sem propósito. É claro que a assistência à saúde é dinâmica e individual, ou seja, cada situação deve ser avaliada de maneira concreta e considerando todas as particularidades de cada pessoa. Por isso, o que se almeja, em última análise, é traçar os limites entre a futilidade – má-indicação – e a relevância no emprego das técnicas e demais aparatos médicos, mas sem se perder de vista as necessidades e os desejos de cada um.

 

O QUE É O TESTAMENTO VITAL

 

Neste contexto, temos um crescente interesse por formas jurídicas que permitam a cada indivíduo decidir de maneira autônoma sobre sua saúde e sua vida.

 

O testamento vital (living will), também conhecido como diretivas antecipadas de vontade (DAV) não é um instituto recente, apesar de pouco conhecido por grande parte dos brasileiros, inclusive por médicos e juristas.

 

O desenvolvimento da doutrina legal das advance directives se inicia em 1967, nos Estados Unidos da América, através Euthanasia Society of America e de Luis Kutner, advogado que atuava para a organização à época e que durante os anos seguintes se dedicou ao estudo.

 

It was Luis Kutner who first proposed the idea at a meeting of the Euthanasia Society of America in 1967. The term “living will” was coined by him in 1969. It is a “will” because it spells out a person’s directions, yet it is “living” because it takes effect before death, though the execution of this “will” usually hastens death. The Euthanasia Society took up this personal in 1969, in preference to advocating active utanásia, to protect the rights of terminally ill.

 

O CASO KAREN ANN QUINLAN

 

Na década seguinte, em 1976, a discussão foi levada aos tribunais estadunidenses, no julgamento do caso envolvendo uma paciente chamada Karen Anne Quinlan. A jovem de vinte e um anos permanecia em coma há alguns meses, após uma provável intoxicação medicamentosa seguida de prolongada parada cardiorrespiratória.

 

Apesar de os médicos que a assistiam entenderem que, à luz do conhecimento técnico existente àquele momento, seu estado era irreversível, a interrupção de qualquer meio artificial que a mantinha viva era reservada para situações de doação de órgãos e tecidos para transplante.

 

Fora deste cenário, não havia precedente médico conhecido e também não havia segurança médica e jurídica para conduzir o caso de outras formas. As discussões e definições sobre morte encefálica eram recentes e, portanto, declarar uma pessoa como morta com base na ausência de atividade cerebral ainda se mostrava como uma questão delicada e de grande complexidade.

 

Mesmo após a família de Karen Quinlan ter assinado uma declaração autorizando a equipe médica a desligar o ventilador mecânico, o qual mantinha a paciente com as funções cardiorrespiratórias preservadas, os profissionais se mostraram inseguros a respeito das implicações morais, legais e profissionais que o feito poderia gerar. O pai de Karen, como seu responsável, procurou então auxílio judicial.

 

O JULGAMENTO PELA SUPREMA CORTE

 

A discussão, no entanto, permaneceu sem solução favorável aos familiares – e à doente – nas instâncias judiciais inferiores do Estado de New Jersey, cabendo então à Suprema Corte Estadual decidir de maneira definitiva. A decisão colegiada foi baseada sobretudo em um princípio tacitamente expresso na constituição estadunidense: the right of privacy.

 

Como se tem do julgado, ainda que o direito não esteja explicitamente positivado no texto constitucional, diversas áreas da vida privada são por ele garantidas. De tal sorte, eventual intervenção estatal sobre determinados aspectos das decisões pessoais deve ser limitada e os interesses e responsabilidades judiciais restritos.

 

Superada a questão técnico-jurídica de uma eventual ilicitude das ações dos profissionais e dos familiares – de “desligar os aparelhos” –, restou ao tribunal se debruçar sobre a matéria médica. Como posto anteriormente, os debates acerca da morte encefálica, ainda que profícuos, eram recentes e ainda pouco consolidados. Assim, a saída encontrada pela corte foi delegar, de certa forma, tal responsabilidade às equipes médicas, com a ressalva de que o assunto poderia ser reapreciado judicialmente em um segundo momento se verificadas eventuais violações a direitos humanos.

 

Como apontado no início do Acórdão pelo Chief Justice Hughes:

 

The matter is of transcendent importance involving questions related to the definition and existence of death, the prolongation of life through artificial means developed by medical technology, undreamed of in past generations of the practice of the healing arts; the impact of such durationally indeterminate and artificial life-prolongation on the rights of the incompetent, her family and society in general; the bearing of constitutional right and the scope of judicial responsibility, as to the appropriate response of an equity court of justice to the extraordinary prayer for relief of the plaintiff.

 

A SITUAÇÃO INTERNACIONAL ATUALMENTE

 

A importância dos testamentos vitais para os norte-americanos foi aumentando progressivamente ao longo das décadas seguintes, culminando com a promulgação da HR4449 – Patient Self Determination Act of 1990 –, que busca orientar e dar as diretrizes gerais a serem observadas por cada um dos Estados. Levantamento recente mostra que hoje um terço dos adultos do país possuem tal documentação, com variações próprias de acordo com as legislações e requisitos próprios dispostos por cada ente federal.

 

Em 1997, os membros do Conselho da Europa assinaram a chamada “Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina”, cuja finalidade se vê em seu Artigo 1º: “[a]s Partes na presente Convenção protegem o ser humano na sua dignidade e na sua identidade e garantem a toda a pessoa, sem discriminação, o respeito pela sua integridade e pelos seus outros direitos e liberdades fundamentais face às aplicações da biologia e da medicina.” No entanto, passados mais de vinte anos do encontro, das 47 nações que assinaram a carta, apenas 28 a ratificaram e internalizaram em seu ordenamento jurídico.

 

Atualmente, o que se vê é que as diretivas antecipadas (testamento vital) ainda têm regulação heterogênea. Para citar apenas alguns exemplos, Espanha e Bélgica possuem legislação do ano de 2002, através das Lei nº 41 e Lei nº 22, respectivamente; o Reino Unido possui disposição normativa do ano de 2005, a Alemanha optou por alteração em seu Código Civil (Bürgerlichen Gesetzbuch) no ano de 2009 para inclusão da matéria e Portugal promulgou no ano 2012 a Lei nº 25.[12]

 

Tais alterações normativas demonstram, em maior ou menor grau, uma modificação de conceitos sociais, culturais e morais acerca da matéria, com reflexos nas decisões político-legislativas. Diversos elementos podem ser apontados como responsáveis por esta mudança de percepção, em especial uma maior valorização das decisões do indivíduo sobre aspectos de sua saúde e sua vida e uma preocupação em delimitar determinados espaços da própria individualidade não suscetível à interferência estatal, através dos serviços de saúde e de órgãos judiciais, mas também dos próprios familiares do enfermo.

 

CONCLUSÕES

 

Como vimos, o testamento vital é um instrumento médico-jurídico de grande relevância e com tratamento distinto por vários países do mundo ocidental. No entanto, de forma geral, sua crescente aceitação representa uma provável valorização da autonomia individual e da capacidade em decidir sobre o próprio corpo e sobre o próprio futuro.

 

Parte deste movimento pode ser atribuído à centralização – de certa forma, ao primado – da dignidade humana sobre os demais direitos, deveres e garantias, em especial na segunda metade do século passado.

 

Tendo alcançado vulto como contraposição aos excessos da vontade da maioria e ao esbulho estatal de outrora, a dignidade humana veio se mostrar um guia na busca pela preservação dos interesses de cada pessoa.

 

Veremos, em outro momento, como as diretivas antecipadas de vontade têm sido abordadas pela sociedade brasileira.

 

Fonte: Estratégia Concursos

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