É senso comum, máxime entre os estudiosos contemporâneos do direito das famílias, que as entidades familiares estão “além dos numerus clausus”. A assertiva é decorrência da constitucionalização do direito privado, que tem concepção “associada a um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sistema jurídico” . À vista disso, a interpretação do artigo 226 da Constituição permite concluir sobre a implementação “de um explícito poliformismo familiar em que arranjos multifacetados são igualmente aptos a constituir esse núcleo doméstico” , não havendo qualquer espécie de hierarquia.

 

Diante de tal panorama, o foco do presente arrazoado está vinculado aos institutos do casamento e da união estável, perpassando pela análise da natureza jurídica, a fim de apreender os elementos fundamentais de composição específica. Vicente Ráo já alertava: “a antiga teoria dos fatos e, pois, dos atos jurídicos […], apesar de suas deficiências, excedeu de há muito o campo restrito do direito contratual, para penetrar no do direito privado em geral” . O propósito, ao fim e ao cabo, é averiguar a adequação de alguns modelos de aplicação analógica, que têm repercussões nas rotineiras atividades negociais da família.

 

Ao seu turno, o casamento, por extenso período estimado como a única forma de constituição de família, inclusive considerando como singularmente institucional, hoje — para parcela da doutrina contemporânea — está amoldado à noção de negócio jurídico bilateral, contabilizando “características de um acordo de vontades que busca efeitos jurídicos” . Ou melhor: seria um “negócio jurídico bilateral sui generis, especial” .

 

A propósito, revigorando a teoria dos fatos jurídicos, o casamento está bem atrelado à categoria de ato jurídico latu sensu, visto que o “suporte fático prevê como seu cerne uma exteriorização consciente de vontade, que tenha por objeto obter um resultado juridicamente protegido ou não proibido e possível” . E dentre as espécies da categoria, muito embora a flagrante dificuldade da doutrina em ver reconhecida a modalidade de ato jurídico stricto sensu bilateral, não parece razoável puramente alocar o casamento como negócio jurídico, porquanto — nesta classe — a vontade está direcionada à criação de efeitos jurídicos concretos, inclusive havendo livre espaço à regulação dos próprios interesses dos envolvidos, desde que obedecidas as fronteiras legislativas. Nesse passo, não são à toa as afirmações de que o casamento “é um contrato todo especial, que muito se distingue dos demais contratos meramente patrimoniais” , ou de que detém a condição de “contrato especial de Direito de Família” .

 

De outro lado, a união estável, ressalvadas posições divergentes, tem sido majoritariamente classificada como ato-fato jurídico, visto que “não necessita de qualquer manifestação de vontade para que produza seus efeitos jurídicos. Basta sua configuração fática, para que haja incidência das normas constitucionais e legais cogentes e supletivas e a relação fática converta-se em relação jurídica” . Todavia, a própria natureza eminentemente fática é suscetível de tornar a questão ainda mais polêmica, porque, mesmo havendo documento escrito, seja particular ou público, tal registro será apenas declaratório, e não constitutivo da relação. A compreensão, aliás, encontra eco na jurisprudência, servindo como exemplo a posição alinhada no julgamento da Apelação Cível nº 70076137819, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que dispara: “a escritura pública de declaração de união estável não possui força probante absoluta acerca do relacionamento que se pretende reconhecer como entidade familiar, podendo seu conteúdo declaratório ser desconsiderado quando não retratar a verdade dos fatos […]” .

 

Em contrapartida, revisando posicionamento que categorizava a união estável como ato jurídico stricto sensu compósito, Marcos Bernardes de Melo reflexiona acerca da necessidade de acatar o enlace público, contínuo e duradouro, observado o objetivo de constituir família, como “exercício de um poder de escolha de uma categoria jurídica”, consubstanciado no “poder de autorregramento da vontade, o que por si já caracteriza o negócio jurídico” . Seja como for, é forçoso afirmar que casamento e união estável não contabilizam a mesma natureza jurídica, até porque não haveria razão alguma para proceder à conversão daquilo que contém a mesma gênese, como preceitua o artigo 226, §3º, da Constituição.

 

De mais a mais, não obstante o reconhecimento da inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil por intermédio dos Recursos Extraordinários nº 878.694/MG e 646.721/RS, que equipararam os efeitos sucessórios do casamento e da união estável, válido consignar que o Supremo Tribunal Federal deixou clarividente que tais arranjos familiares são figuras juridicamente díspares. A título ilustrativo, calha notar excerto do voto articulado pelo ministro Luís Roberto Barroso, que expressamente sustenta que, “à luz do texto constitucional, casamento e união estável são, assim, organizações familiares distintas” .

 

Além do mais, no ponto que interessa à presente reflexão, e partindo da ideia de que “o legislador pode adotar regimes jurídicos diversos para o casamento e a união estável”, a relatoria também invoca a necessidade de “separar as situações em que a diferenciação de regimes jurídicos é feita de forma legítima daquelas em que é feita de forma arbitrária”. E arremata: “será arbitrária toda diferenciação de regime jurídico que busque inferiorizar um tipo de família em relação a outro, diminuindo o nível de proteção estatal aos indivíduos somente pelo fato de não estarem casados”. Nesse passo, seguindo o raciocínio alinhado pelo julgador, factível concluir que a diferenciação será plenamente legítima se estiver fundamentada em circunstâncias inerentes às peculiaridades do modelo familiar.

 

Logo, com apoio no entendimento acima ventilado, e ponderando que a legislação infraconstitucional é muitas vezes omissa quanto à expressa aplicabilidade de algumas normas à união estável, a questão é buscar saber se a hermenêutica proveniente do artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro está acertada, ou promove alguma espécie de arbitrariedade na aplicação da analogia. A esse respeito, inviável perder de vista a lição de Norberto Bobbio sobre o mais típico e importante artifício interpretativo, que sustenta ser o “procedimento pelo qual se atribui a um caso não regulado a mesma disciplina de um caso regulado de maneira similar” . Em suma, o objetivo é catalisar uma autointegração do sistema jurídico, tendo em vista motivações relevantes de paridade. De todo modo, recordando Miguel Reale, “cumpre advertir que ela não tem emprego em todos os domínios do Direito, sendo inadmissível, em princípio, […] se as normas forem restritivas de direitos” .

 

Feitos os devidos esclarecimentos, eis alguns pontos discutíveis: a) a restrição de compra e venda instituída pelo artigo 496 do Código Civil pode ser empregada por analogia aos companheiros? b) a vedação de contratação de sociedade instituída pelo artigo 977 do Código Civil é passível de ser utilizada para os casos de união estável? c) o regime da separação obrigatória de bens por conta da idade, regulado pelo artigo 1.641, inciso II, do Código Civil, pode ter aplicação estendida à união estável?

 

As respostas às duas primeiras indagações parecem ser singelas, pois não seria coerente distender a eficácia de normas restritivas, sobretudo quando ausente a similitude relevante. Especificamente quanto ao artigo 496 do Código Civil, a intenção legislativa está direcionada a evitar a burla ao instituto da legítima, sopesando a possibilidade de o negócio ter como precípua finalidade a ocultação da real intenção de doação, contrato benéfico. Verdade seja dita, inclusive revolvendo aos termos dos recursos extremos e suas repercussões, a linha de discussão trafega pelo cenário de consideração do companheiro como herdeiro necessário, perspectiva que descortina tonalidades de inadequação, visto que certo extrato da literatura, mesmo que de forma minoritária, vaticina que “quem assim interpreta está tolhendo a liberdade das pessoas de escolherem esta ou aquela forma de família” . Além disso, Mário Delgado envereda luzes sobre a correta interpretação do artigo 1.845 do Código Civil, que revela “nítida norma restritiva de direitos, pois institui restrição ao livre exercício da autonomia privada e, conforme as regras ancestrais de hermenêutica, não se pode dar interpretação ampliativa à norma restritiva” .

 

De igual sorte, os desdobramentos do assunto estão conectados ao tema da outorga uxória, de previsão constante do artigo 1.647 do Código Civil e tida como condição de validade para a celebração de alguns negócios jurídicos, salvo no regime da separação convencional de bens. O dispositivo legal em testilha, que faz expressa alusão apenas aos cônjuges, não poderia ter expansão ipsis litteris às situações de união estável, sob pena de estampar desarmonia no sistema jurídico. Para tais situações, servindo de precedente, é apropriado examinar o Recurso Especial nº 1.424.275/MT, do qual se extrai a ideia de que “os efeitos da inobservância da autorização conjugal em sede de união estável dependerão […] da existência de uma prévia e ampla notoriedade” . Com efeito, soa plausível a exigência somente nos casos de registro da convivência marital nos moldes do Provimento nº 37 do Conselho Nacional de Justiça, a ser efetuado perante o Registro Civil das Pessoas Naturais, conferindo publicidade, ou quando instaurado o condomínio imobiliário na aquisição do patrimônio.

 

A mesma abordagem é feita no Recurso Especial nº 1.299.866/DF, de sorte que a relatoria preconiza que “a exigência de outorga uxória a determinados negócios jurídicos transita exatamente por aquele aspecto em que o tratamento diferenciado entre casamento e união estável se justifica”. Trocando em miúdos: não havendo falar em distender a incidência da Súmula nº 332 do Superior Tribunal de Justiça  à união estável, “hão de ser dispensadas as vênias conjugais para a concessão de fiança” .

 

Em tempo, é prudente sublinhar que não se desconhece o recente julgamento do Recurso Especial nº 1.663.440/RS. Entretanto, a indicada decisão, além de contemplar concentrada singularidade em virtude do conhecimento inequívoco da credora fiduciária sobre a união estável do devedor, dispõe que a outorga uxória, como regra geral, é dispensável na união estável. Afora isso, o entendimento da relatoria — vencedor por maioria — ressalva, “como condição adicional de validade da garantia dada apenas por um dos conviventes, o fato de haver condições de o terceiro de boa-fé ter ciência da existência da união estável” , razão pela qual não pode ser indistintamente empregado como paradigma.

 

Ao depois, notadamente quanto à inviabilidade de associação empresária, o mesmo caminho é traçado pela doutrina, uma vez que, “por mais que se outorguem direitos e deveres aos conviventes, não se cogita de uma equiparação total, absoluta e irrestrita” , pelo que a restrição não se apõe à união estável. Aliás, recordando a supressão dos “dois fundamentos jurídicos em que se lastreava a tese da proibição”, basicamente o antigo poder marital e a superada imutabilidade do regime de bens, Alfredo de Assis Gonçalves Neto expressa que, estando caracterizado um preceito restritivo à liberdade de contratar, a norma apenas tem incidência na hipótese de casamento, “não sendo possível aplicá-la à união estável e a qualquer outra forma de convivência comum” .

 

Em último lugar, mas não menos importante, está o tópico relacionado ao regime separatório imposto pela legislação, que vem catalogado no artigo 1.641, inciso II, do Código Civil, e sujeita os septuagenários a uma espécie de redução de autonomia. Em outras palavras, “além da sua inconsistência moral e inconstitucional, a norma […] cria uma incapacidade de exercício de direito, sem o devido processo legal”. De outro giro, quiçá seja possível aventar a ideia de que a norma, em verdade, esteja direcionando a proteção aos sucessores da pessoa idosa envolvida em relacionamento amoroso, de modo que a restrição à autonomia privada tem renovado o seu contorno inconstitucional, focalizando a salvaguarda à uma mera expectativa (direito de herança) em detrimento do pleno exercício da liberdade de escolha, do projeto de vida.

 

Em que pese o uníssono discurso doutrinário acerca da inconstitucionalidade da imposição, ainda não sobreveio relevante movimentação no sentido de sua declaração como tal. Por outro lado, e talvez revelando ainda mais obstáculos ao desiderato, o que se vê é a persistência da aplicação analógica da cominação à união estável ao argumento de que “a ratio legis foi a de proteger o idoso e seus herdeiros necessários dos casamentos realizados por interesse estritamente econômico, evitando que este seja o principal fator a mover o consorte para o enlace”.

 

Fonte: Conjur

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