A adjudicação compulsória, prevista no artigo 1418 do Código Civil, na lição de Ricardo Arcoverde Credie, pode ser definida como a ação pessoal que pertine ao compromissário comprador, ou ao cessionário de seus direitos à aquisição, ajuizada com relação ao titular do domínio do imóvel – que tenha prometido vendê-lo através de contrato de compromisso de venda e compra e se omitiu quanto à escritura definitiva – tendente ao suprimento judicial desta outorga, mediante sentença constitutiva com a mesma eficácia do ato não praticado.[1]
A obrigação principal do promitente vendedor no compromisso de compra e venda, portanto, é outorgar a escritura definitiva ao promitente comprador que cumpriu todas as obrigações contratuais. Essa obrigação consiste num facere, juridicamente fungível, porque pode ser suprida por decisão judicial. A adjudicação compulsória nada mais é, portanto, que a emissão judicial do consentimento prometido e injustamente negado, é a substituição da vontade do promitente vendedor por meio do Poder Judiciário.
A premissa fundamental da adjudicação compulsória é, assim, o inadimplemento do promitente vendedor, a recusa ou omissão do promitente vendedor em transmitir a propriedade quando o comprador já houver cumprido suas obrigações contratuais.
Com a publicação da Lei nº 14.382, de 27 de junho de 2022, fruto da conversão da Medida Provisória nº 1.085/21, a substituição da vontade do promitente vendedor passou a ser possível, também, pela via administrativa. O texto legal previsto na nova lei inseriu o art. 216-B na Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73), trazendo a possibilidade da adjudicação compulsória extrajudicial, que é requerida, processada e deferida perante os Cartórios de Registro de Imóveis, similarmente ao que hoje já acontece com a usucapião extrajudicial.[2]
Conforme o artigo 216-B, são legitimados a requerer a adjudicação compulsória extrajudicial o promitente comprador ou qualquer dos seus cessionários ou promitentes cessionários, ou seus sucessores, bem como o promitente vendedor, representados por advogado (§1º), e o pedido deve ser instruído com instrumento de promessa de compra e venda ou de cessão ou de sucessão, prova do inadimplemento (recusa do vendedor em outorgar a escritura), certidões dos distribuidores forenses da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente que demonstrem a inexistência de litígio envolvendo o contrato de promessa de compra e venda do imóvel objeto da adjudicação, comprovante de pagamento do respectivo Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e procuração com poderes específicos (incisos I a VI, do §1º).
A Medida Provisória nº 1.085/21 trazia, também, como requisito e como documento a instruir o pedido de adjudicação compulsória, a ata notarial, no inciso III, do §1º, do artigo 216-B:
III – ata notarial lavrada por tabelião de notas da qual constem a identificação do imóvel, o nome e a qualificação do promitente comprador ou de seus sucessores constantes do contrato de promessa, a prova do pagamento do respectivo preço e da caracterização do inadimplemento da obrigação de outorgar ou receber o título de propriedade;
Tal inciso, infelizmente, sofreu veto presencial por ocasião da conversão da MP nº 1.085/21 na Lei nº 14.382/22.
Muito embora não conste mais expressamente do texto legal atual, entendemos que a ata notarial é elemento fundamental da adjudicação compulsória extrajudicial, sendo documento indispensável na instrução do requerimento a ser feito perante o Registrador de Imóveis no sentido de dar segurança quanto à autenticidade da documentação apresentada (contrato particular de promessa de compra e venda), quanto à efetiva posse do imóvel, quanto à comprovação do efetivo pagamento do preço pelo promitente comprador e quanto à comprovação do inadimplemento do promitente vendedor (recusa em outorgar a escritura definitiva do imóvel).
Conforme nota Técnica nº 03/2022, emitida pelo Colégio Registral de Minas Gerais[3], entende-se dispensada a subscrição dos instrumentos particulares por testemunhas, bem como o reconhecimento de suas firmas, no caso de terem sido apostas no documento, por não se tratar de elemento essencial do contrato preliminar, nos termos do artigo 462 do Código Civil.
Apesar de não ser elemento essencial do contrato preliminar, a ausência do reconhecimento de firmas pode comprometer a autenticidade do documento apresentado. Entretanto, negar seguimento à adjudicação compulsória extrajudicial simplesmente pela ausência deste elemento poderia deixar “desamparados” inúmeros promitentes compradores, em razão de ser corriqueira a ausência de reconhecimento de firma nestes documentos.
Desta forma, a ata notarial toma especial e essencial relevância, a fim de garantir a autenticidade dos documentos contratuais apresentados, já que o notário tem, a um, expertise para verificação de assinaturas e, a dois, a possibilidade de comparecer pessoalmente ao imóvel adjudicando, a exemplo da usucapião extrajudicial, para realizar diligências que julgar necessárias à lavratura da ata notarial, atestando a posse e fortalecendo as provas que instruirão o requerimento perante o registrador.
Outro fator importante que a realização da ata notarial pode demonstrar e atestar, previamente ao ingresso do procedimento da adjudicação compulsória no Registro de Imóveis competente, é a disponibilidade ou a indisponibilidade do bem ou em nome do promitente vendedor, através de consulta pelo tabelião a Central Nacional de Indisponibilidades – CNIB, evitando, assim, que o promitente comprador “perca tempo”, processando o pedido perante o Registrador de Imóveis e tendo o registro negado em razão de eventual indisponibilidade. Pois, é notório que, conforme o artigo 14, §1º, da Resolução 39/2014, do CNJ, a existência de comunicação de indisponibilidade impede o registro do direito no Registro de Imóveis, enquanto vigente a restrição.
Além disto, a comprovação do pagamento do preço pelo comprador é condição essencial para o processamento do pedido de adjudicação e consequente registro em favor do adjudicante, eis que o direito à adjudicação compulsória somente nasce após o adimplemento das obrigações contratuais pelo promitente comprador. É o que está previsto no artigo 476 do Código Civil, segundo o qual um dos contratantes só pode exigir o cumprimento das obrigações pela outra parte após o adimplemento das suas próprias obrigações.
Muitas vezes, o promitente comprador não tem mais o recibo de pagamento ou as notas promissórias que comprovam a quitação do preço. A ata notarial, portanto, pode atestar a quitação do negócio jurídico, mediante a apresentação ao Tabelião de diversos documentos, tais como declaração de imposto de renda, mensagens de e-mails e de texto entre os negociantes que comprovem o recebimento pelo promitente vendedor, extratos bancários, entre outros.
Do mesmo modo, a recusa ou omissão do promitente vendedor em outorgar a escritura definitiva é premissa fundamental da adjudicação compulsória, conforme verificado no início deste artigo.
Assim, a ata notarial pode contribuir também neste aspecto, comprovando fatos que não estejam demonstrados por documentos, a exemplo de troca de mensagens e e-mails entre as partes contratantes, que podem comprovar as tentativas feitas para a obtenção da escritura definitiva, evidenciando dificuldade ou impossibilidade.
Conforme bem salientou Lamana Paiva, a justificativa do óbice à correta escrituração da transmissão da propriedade é essencial para que a via administrativa da adjudicação compulsória não se torne causa para burlar o direito civil, notarial e registral e tributário.[4]
É importante evitar que a adjudicação compulsória extrajudicial seja utilizada com finalidade fraudulenta, mediante uma simples “combinação” do promitente comprador com o promitente vendedor, comprometendo-se o último a não responder a notificação do Oficial Imobiliário, prevista no inciso II, do §1º, do artigo 216-B, a fim de caracterizar a sua recusa e permitir a transferência de propriedade ao promitente comprador sem a correta escrituração.
Neste sentido, Eduardo Pereira, Leandro Corrêa e Rafael Depieri destacam que, pela própria natureza da adjudicação compulsória, de forma oposta dos divórcios e inventários, não poderá haver consenso na adjudicação compulsória extrajudicial, sob pena de, em verdade, estar-se registrando uma compra e venda por instrumento transverso ou, até mesmo, simulado.[5]
Portanto, além de dar segurança em relação à autenticidade do contrato preliminar, atestar a posse, dando legitimidade ao requerente da adjudicação compulsória, atestar a questão da disponibilidade do bem e comprovar a quitação do preço, a ata notarial é elemento essencial para comprovar a real recusa ou desídia do promitente vendedor em outorgar a escritura definitiva, evitando que a adjudicação compulsória extrajudicial seja utilizada do famoso “jeitinho” brasileiro.
Neste aspecto, é muito importante, conforme bem salientaram José Luiz Germano, José Renato Nalini e Thomas Nosch Gonçalves[6], que o tema seja objeto de regulamentação pelo CNJ e pelas Corregedorias dos Estados, que podem dispor sobre detalhes, como o cabimento de intimação por edital, o valor da causa, entre outros, e, também, acrescentamos nós, a orientação senão pela obrigatoriedade, pela forte recomendação no sentido do pedido de adjudicação compulsória ser instruído com ata notarial feita pelo tabelião de notas do local de situação do imóvel.
A edição de tal norma complementar dará segurança aos operadores do sistema, permitindo que os pedidos de adjudicação compulsória extrajudicial sejam processados e “julgados” com tranquilidade e celeridade, garantindo que o instituto seja utilizado para o fim que foi criado: desjudicializar, permitir que o promitente comprador garanta seu direito a propriedade sem recorrer ao Judiciário quando efetivamente houver a recusa ou omissão do promitente vendedor.
*José Flávio Bueno Fischer, 1º Tabelião de Notas e de Protesto de Novo Hamburgo/RS, Presidente do CNB/RS, Ex-Presidente do CNB/CF, Membro do Conselho Geral da UINL
*Carolina Edith Mosmann dos Santos, Advogada, Pesquisadora e Professora, Ex-escrevente do 1º Tabelionato de Novo Hamburgo/RS, Aderente Individual da UINL, Pós-graduada em Direito de Família e Sucessões pelo Instituto Damásio e Pós-Graduada em Direito Notarial e Registral pela UFMA.
Fonte: CNB/CF
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