Iniciaremos uma série de diversos artigos sobre direitos reais voltados a responder uma intricada questão: qual a natureza jurídica do direito de laje?
A resposta, contudo, será dada por argumentos eminentemente técnicos, dogmáticos, e não por opiniões e soluções rápidas, com pouca ou nenhuma sustentação científica, verdadeiros achismos.
Esta espécie de resposta exige sólido conhecimento das bases científicas de um ramo do Direito (no caso, do Direito das Coisas) e, por conseguinte, algo que cada vez se torna mais difícil de encontrar nos dias atuais: profundo e calmo estudo, com tempo de maturação para as ideias se assentarem e poderem ser constantemente criticadas, revistas e, enfim, aperfeiçoadas.
Como se sabe, o direito de laje é um direito real autenticamente brasileiro.
Não há direito real com nomen iuris assemelhado em outros ordenamentos jurídicos, assim como não há direito real com regime jurídico idêntico ao direito de laje em sistemas estrangeiros.
Isto se deve, precisamente, ao fato de o direito de laje ter surgido em uma realidade peculiar brasileira, qual seja, as construções sobrepostas erigidas sobre construções-base nas favelas urbanas brasileiras.
O “direito” de laje surgiu, como fenômeno social, antes de sua regulamentação formal pelo Estado, por meio da MP nº 759/2016. Por sua vez, a regulamentação do direito de laje por esta norma deu-se, declaradamente, com vistas à “regularização fundiária regularização fundiária de favelas” (item 95 da Exposição de Motivos da MP nº 759/16), “em reforço ao propósito de adequação do Direito à realidade brasileira, marcada pela profusão de edificações sobrepostas” (item 113).¹
Por conta dessa peculiaridade específica do direito de laje, é impossível metodologicamente iniciar seu estudo por meio de fontes (direito positivo, doutrina, jurisprudência, etc.) estrangeiras – porque não há direito real equivalente, pelo menos prima facie, ao direito de laje em outros países.2
Sendo assim, o estudo do direito de laje deve partir necessariamente das peculiaridades (formais e informais) brasileiras que perpassam este novo direito real, incumbindo, parece-nos, propriamente à doutrina brasileira delimitar o que é, precisamente, o direito de laje.
Não obstante, os autores brasileiros pouco vêm estudando sobre o direito real de laje. E, quando o estudam, na maioria dos casos, infelizmente, estudam sem grande profundidade científica, chegando a conclusões com poucos fundamentos dogmáticos.
É o que ocorre, na maioria dos casos, quando se escreve sobre a natureza jurídica do direito real de laje, questão de alta complexidade, pertencente “à área cinzenta do Direito”, geradora de “um acirrado debate doutrinário (autores ultraque trahunt), sem perspectivas de consenso”3.
Sucintamente, o debate sobre a natureza jurídica do direito de laje se resume a seguinte questão: é o novo direito real de laje um direito real sobre coisa própria ou um direito real sobre coisa alheia?
A doutrina se divide. São diversos os autores que entendem ser o direito de laje um direito real sobre coisa própria4, assim como o são os autores que entendem ser o direito de laje um direito real sobre coisa alheia. Dentre estes últimos, alguns entendem ser o direito de laje uma modalidade de superfície5-6, enquanto outros entendem ser uma nova modalidade de direito real.7
No âmbito jurisprudencial, por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça manifestou, mesmo que de forma incidental, e não principal, o entendimento de que o direito de laje tem natureza de direito real sobre coisa alheia.8
Enfim, parece-nos que para se alcançar uma resposta sustentável em termos dogmáticos à questão da natureza do direito de laje, deve-se previamente estudar alguns pontos específicos do regime jurídico geral dos direitos reais, do regime jurídico especial do direito de propriedade e regime jurídico especial do direito de superfície.
É isto o que faremos ao longo dos próximos textos que serão aqui publicados.
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1 Exposição de motivos da Medida Provisória nº 759/16, disponível aqui.
2 Por exemplo, afirma Marco Aurélio Bezerra de Mello que “não é possível importar o modelo do direito de sobrelevação português ou suíço com algumas adaptações, pois em tais países não nos parece que a favela seja uma forma de habitação tão ricamente utilizada como ocorre no Brasil.” (MELLO, Marco Aurélio Bezerra de. Direito à posse da Laje. GenJurídico, 2017. Disponível em: < genjuridico.com.br/2017/10/26/direito-posse-da-laje/ >. Acesso em: 07.06.2021).
3 FARIAS, Cristiano Chaves de; DEBS, Martha El; DIAS, Wagner Inácio. Direito de laje: do puxadinho à digna moradia. Salvador: Editora JusPodivm, 2019, p. 56.
4 São adeptos deste entendimento, por exemplo: Arnaldo Rizzardo (v. RIZZARDO, Arnaldo. O direito real de laje. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 986, p. 263-275, dez., 2017, passim); Eduardo Silveira Marchi (v. MARCHI, Eduardo C. Silveira. Direito de Laje: da admissão ampla da propriedade superficiária no Brasil. São Paulo: YK, 2018, passim); Francisco Eduardo Loureiro (v. LOUREIRO, Francisco Eduardo. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 14. Ed. In: Cezar Peluso (Coord.). Barueri: Manole, 2020, p. 1.558); César Augusto de Castro Fiuza e Marcelo de Rezende Campos Marinho Couto (v. COUTO, Marcelo de Rezende Campos Marinho; FIUZA, César Augusto de Castro. Ensaio sobre o direito real de laje como previsto na Lei 13.465/2017. Civilistica.com, a. 6, n. 2, 2017. Disponível aqui; Patricia André de Camargo Ferraz (v. FERRAZ, Patricia André de Camargo. Direito de Laje: Teoria e Prática – nos termos da Lei 13.465/17. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 43 e ss.); Cristiano Chaves de Farias, Martha El Debs e Wagner Inácio Dias (v. FARIAS, Cristiano Chaves de; DEBS, Martha El; DIAS, Wagner Inácio. Direito de laje: do puxadinho à digna moradia. Salvador: Editora JusPodivm, 2019, p. 56 e ss.); Nelson Rosenvald (v. ROSENVALD, Nelson. O direito real de laje como nova manifestação de propriedade. Nelson Rosenvald, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 17 de setembro de 2019); Carlos Eduardo Elias de Oliveira (v. ELIAS DE OLIVEIRA, Carlos Eduardo. Direito real de laje à luz da Lei nº 13.465, de 2017: nova lei, nova hermenêutica. Disponível aqui. Acesso em: 17 de setembro de 2019); Sílvio de Salvo Venosa (v. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: reais. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2020, p. 689, nº 27.1); Vitor Kümpel e Bruno De Ávila Borgarelli (v. KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Algumas reflexões sobre o direito real de laje – Parte 1. Migalhas, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 17 de setembro de 2019); Alexandre Laizo Clápis e Raphael Marcelino (v. CLÁPIS, Alexandre Laizo; MARCELINO, Raphael. Direito real de laje. In: Estatuto fundiário brasileiro: comentários à Lei nº 13.465/17, tomo 1. Coords. Everaldo Augusto Cambler, Alexandre Jamal Batista e André Cordelli Alves. São Paulo: Editora IASP, 2018, nº III, p. 38); Marco Aurélio Bezerra de Mello (v. MELLO, Marco Aurélio Bezerra de. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Anderson Schreiber…[et al.]. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, coms. ao art. 1.510-A, p. 1.250); MARQUESI, Roberto Wagner. Desvendando o direito de laje. Civilistica.com, a. 7, n. 1, 2018. Disponível em: aqui. Acesso em: 09.06.2021, passim; CARMONA, Paulo Afonso Cavichioli; OLIVEIRA, Fernanda Lourdes de. Aspectos urbanísticos, civis e registrais do direito real de laje. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 7, nº 2, ago., 2017, p. 123-147, passim; Roberto Paulino de Albuquerque Junior (este autor possui posição contraditória, como se pode verificar de artigo mencionado na próxima nota, de sua autoria) e Otavio Luiz Rodrigues Junior (v. ALBUQUERQUE JUNIOR, Roberto Paulino de; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. O direito real de laje: elementos para uma crítica. In: MARCHI, Eduardo C. Silveira (Coord.). Regularização fundiária urbana. 1ª. Ed. São Paulo: YK Editora, 2019, p. 202 e 204).
5 São adeptos deste entendimento, por exemplo: Roberto Paulino Albuquerque Júnior (v. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino. O direito de laje não é um novo direito real, mas um direito de superfície. Conjur, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 17.09.2019); Frederico Henrique Viegas de Lima (v., principalmente, LIMA, Frederico Henrique Viegas de. Direito de Laje: uma visão da catedral. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, v. 82, p. 251-280, jan.-jun., 2017, nº 5, p. 265 e ss.; HENNIKA, Luís Henrique da Silva; SANTIN, Janaína Rigo. Direito de superfície e direito de laje: uma análise à luz do direito urbanístico. Revista Jurídica Luso-Brasileira, ano 4, nº 3, p. 801-835, 2018, nº 5, p. 823 e ss.; e, também, LIMA, Frederico Henrique Viegas de. Direito de Laje: características e estrutura. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, v. 83, p. 477-494, jul.-dez., 2017, passim); Marcelo de Oliveira Milagres (v. MILAGRES, Marcelo de Oliveira. Direito de laje?. Revista de Direito Privado, v. 76, São Paulo, p. 75-88, abr., 2017, passim).
6 Há, também, julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo em que se afirma que “O direito de laje, portanto, não constitui um direito real novo, mas uma modalidade de direito de superfície que era (e é) praticado por usos e costumes, nos chamados ‘puxadinhos’, normalmente, para acomodação de parentes e agregados que vão se incorporando a determinada família.” (Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 1003793-19.2017.8.26.0006. 12ª Câmara de Direito Privado. Rel. Des. Jacob Valente. Julgado em 19.12.2019).
7 São adeptos deste entendimento, por exemplo: Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (v. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: direitos reais. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, v. 5, 2020, p. 553, nº 2); Salomão Viana (v. STOLZE, Pablo; VIANA, Salomão. Direito de laje – Finalmente, a Lei!. Jusbrasil, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 17 de setembro de 2019); Flávio Tartuce (v. TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito das coisas. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 567 e ss., nº 6.8.); Maria Helena Diniz (v. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 35. ed. São Paulo: Saraiva, 2021, v. 4, p. 547); Paulo Lôbo (v. LÔBO, Paulo. Direito Civil: Coisas. 5. ed. São Paulo: Saraiva Educação, v. 4, 2020, p. 320 e ss.); Ralpho Waldo de Barros Monteiro Filho (v. MONTEIRO FILHO, Ralpho Waldo de Barros. Anotações sobre a usucapião extrajudicial, direito real de laje e usucapião coletiva de acordo com o regime da Lei nº 13.465/17. In: ARISP (org.). Primeiras impressões sobre a Lei nº 13.465/2017. Disponível aqui. Acesso em: 07.05.2021, p. 89-90); Rodrigo Reis Mazzei e Rodrigo Sanz Martins (v. MAZZEI, Rodrigo Reis; MARTINS, Rodrigo Sanz. O direito de laje e sua previsão autônoma em relação ao direito de superfície: breve ensaio sobre a opção legislativa e o diálogo necessário entre as figuras. In: ABELHA, André (coord.). Estudos de direito imobiliário: homenagem a Sylvio Capanema de Souza. São Paulo: Ibradim, 2020, p. 372-380); CARMONA, Paulo Afonso Cavichioli; OLIVEIRA, Fernanda Lourdes de. Aspectos urbanísticos, civis e registrais do direito real de laje. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 7, nº 2, ago., 2017, p. 123-147.
8 “3. Nesse passo, como instrumento de função social, notadamente em razão da realidade urbanística brasileira, previu o legislador, recentemente, o direito real de laje (CC, art. 1225, XIII, redação da Lei 13.465/2017). O foco da norma foi o de regulamentar realidade social muito comum nas cidades brasileiras, conferindo, de alguma forma, dignidade à situação de inúmeras famílias carentes que vivem alijadas de uma proteção específica, dando maior concretude ao direito constitucional à moradia (CF, art. 6°). Criou-se, assim, um direito real sobre coisa alheia (CC, art. 1.510-A), na qual se reconheceu a proteção sobre aquela extensão – superfície sobreposta ou pavimento inferior – da construção original, conferindo destinação socioeconômica à referida construção.” (Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. REsp. nº 1.478.254. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. Julgado em 08.08.2017. – Grifos nossos).
Fonte: Migalhas
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