A penhora de imóveis objetos de alienação fiduciária para a satisfação de débitos condominiais tem sido alvo de decisões divergentes nos Tribunais de Justiça brasileiros (“TJs”), divergência essa que tem alcançado o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), como demonstram recentes julgados da Terceira e Quarta Turmas.

 

Em sua origem, a alienação fiduciária de bens imóveis, disciplinada pela lei 9.514/1997, teve o objetivo de reduzir os riscos implícitos na concessão de créditos imobiliários existentes na época1. Nas palavras de Melhim Chalhub2:

 

[…] a Lei 9.514/1997 tem em vista criar as condições necessárias para revitalização e expansão do crédito imobiliário e, partindo do pressuposto de que o bom funcionamento do mercado, com permanente oferta de crédito, depende de mecanismos capazes de imprimir eficácia e rapidez nos processos de recomposição das situações de mora.

 

Nesse cenário, o legislador moldou a sistemática da alienação fiduciária de bem imóvel a partir do instituto do patrimônio de afetação3, blindando o alcance do imóvel para a satisfação de outros créditos, e de mecanismos de execução extrajudicial já existentes.

 

Como resultado, a constituição da nova garantia assentou-se na alienação da propriedade do devedor ao credor em caráter resolúvel, vinculada à condição de pagamento da dívida. Verificada a mora, a excussão é realizada perante o Cartório de Registro de Imóveis, com a consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário, de modo ágil e simplificado.

 

A divergência dos Tribunais sobre a possibilidade de afetação do imóvel ao pagamento da dívida condominial surge devido ao desdobramento da posse entre credor e devedor e propriedade resolúvel em favor do credor fiduciário, e ao modo como foi disciplinada a responsabilização pelas obrigações de natureza propter rem nesse cenário.

 

Existem três lados a serem observados. No primeiro está o devedor fiduciante, investido em um direito real de aquisição – a propriedade em caráter suspensivo – e da posse direta do imóvel. No segundo, o credor fiduciário, proprietário resolúvel, com poderes restritos e afetados à satisfação de seu crédito, e possuidor indireto do bem. E no terceiro, a coletividade condominial, que precisa arcar financeiramente com a desídia do condômino inadimplente.

 

Os posicionamentos adotados pelos Tribunais se separam em dois principais grupos. O primeiro sustenta a impenhorabilidade do imóvel alienado fiduciariamente para o pagamento de qualquer dívida do devedor fiduciante, inclusive aquelas de natureza propter rem, sob os fundamentos de que (1) o imóvel não compõe a esfera patrimonial do executado e (2) a responsabilidade prevista no art. 1.345 do Código Civil (CC), no caso do credor fiduciário, está limitada pelo artigo 27, §8º, da lei 9.514/19974 e pelo artigo 1.368-B, parágrafo único, do CC5.

 

Alexandre Junqueira Gomide6 acompanha esse primeiro entendimento, destacando a inexistência de solidariedade entre credor fiduciante e devedor fiduciário nas obrigações condominiais, tendo em vista que:

 

(…) na alienação fiduciária, há constituição de direito real de garantia e, assim, a propriedade fiduciária submete-se ao regime jurídico próprio dessa categoria de direito, ou seja, aos artigos 1.419 e seguintes do Código Civil. Nesses termos, segundo o art. 1.419, “o bem dado em garantia fica sujeito, por vínculo real, ao cumprimento da obrigação”. O bem dado em garantia, portanto, tem por objetivo garantir o pagamento da dívida contraída com o credor fiduciário e não com terceiros.

 

Nesse cenário, o condomínio exequente, não localizando outros bens do devedor fiduciante, tem como única opção requerer a penhora do direito real de aquisição do condômino inadimplente (art. 1.368-B do CC), como autoriza o artigo 835, XII, do Código de Processo Civil (CPC)7, que muitas vezes resta infrutífera.

 

Representativo dessa primeira corrente, no REsp nº. 1.731.735/SP, a Ministra Relatora Nancy Andrighi da Terceira Turma do STJ defendeu a penhorabilidade desse direito real de aquisição, afastando a penhora do imóvel, como uma forma de equilibrar os interesses em “jogo”, diante da legislação que atualmente se apresenta, afastando, em tese, a proteção indiscriminada do credor fiduciário:

 

“(…)Aparentemente, com a interpretação literal dos mencionados dispositivos legais, chega-se à conclusão de que o legislador procurou mesmo proteger os interesses do credor fiduciário, que tem a propriedade resolúvel como mero direito real de garantia voltado à satisfação de um crédito.

 

Ocorre que a proteção indefinida do credor fiduciário contrasta-se com outro interesse digno de tutela: o interesse dos titulares de créditos gerados pelo próprio bem dado em garantia (a exemplo do IPTU, das despesas condominiais, etc.) que, se não puderem satisfazê-lo mediante a penhora ou excussão da coisa, ficarão desprotegidos.

 

(…)

 

A fim de estancar eventuais choques de interesses porventura existentes, uma solução que se admite é a de que o devedor fiduciante, titular de direito real de aquisição – e que possui valor econômico -, tenha tal direito penhorado pelos demais credores em geral, em especial pelos credores de despesas geradas pelo próprio bem – a exemplo do condomínio quando da cobrança de despesas condominiais”.

 

O valor econômico desse direito real é representado pelo valor do financiamento já quitado pelo devedor fiduciante até o momento da penhora, afastando a hipótese de avaliação do imóvel. Neste caso, eventual arrematante se sub-roga na posição contratual do devedor fiduciante, assumindo o pagamento do valor em aberto do financiamento e mantendo intacta a garantia fiduciária, desde que isso constasse de forma expressa no edital de leilão.

 

É o entendimento que encontramos na jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo:

 

“Processual. Execução de título extrajudicial. Decisão que reputou imprescindível a avaliação de imóvel. Pretensão à reforma. Na esteira de julgado desta C. Câmara, viável o praceamento dos direitos dos executados sobre o imóvel alienado fiduciariamente, não é necessária a avaliação do bem imóvel na hipótese de penhora dos direitos do executado sobre imóvel alienado fiduciariamente, pois seu valor deve corresponder ao montante que já foi quitado pelo devedor fiduciante. RECURSO PROVIDO.8

 

O valor recebido pela alienação judicial do direito real, então, é liberado em favor do condomínio exequente e eventual saldo devedor continuará a ser executado em face do antigo condômino, haja vista a sub-rogação dos débitos de natureza propter rem no preço da arrematação (artigo 908, §1º, do CPC9).

 

De acordo com esta primeira corrente, portanto, o imóvel só poderá ser penhorado para pagamento dos débitos condominiais a partir da consolidação da propriedade pelo credor fiduciário, quando este será imitido na posse direta do bem e assumirá responsabilidade solidária pela dívida10.

 

A segunda corrente, por sua vez, sobrepondo os interesses dos condomínios aos dos credores fiduciários, entende que é possível a penhora do imóvel alienado fiduciariamente para o pagamento dos débitos condominiais, tendo em vista a natureza propter rem desses encargos11. Nessa espécie de obrigação, o sujeito passivo não é determinado, mas determinável em razão do vínculo real entre o indivíduo e o bem. Desse modo, segundo Antônio Junqueira de Azevedo, “mudando a coisa de dono, muda a obrigação de devedor. Por isso, também se chamam obrigações ambulatórias”12.

 

Assim, vislumbrando que a razão da lei13 é inserir o imóvel em uma posição de garantia a esses encargos, já que ele sempre estará na esfera patrimonial do sujeito passivo, esta corrente atribui também ao proprietário resolúvel do imóvel a responsabilidade pelo pagamento dos débitos condominiais, restringindo a aplicação das normas do artigo 27, §8º, da lei 9.514/1997 e artigo 1.368-B, parágrafo único, do CC, exclusivamente à relação entre credor fiduciante e devedor fiduciário na determinação do direito de regresso.

 

Outro argumento de alta relevância para essa vertente é a onerosidade que se deposita sobre os demais condôminos que sustentam a inadimplência do devedor fiduciante, através do rateio, de encargos que foram gerados para a manutenção e até mesmo valorização do próprio imóvel.

 

A impossibilidade de penhorar o imóvel e a baixa liquidez dos direitos aquisitivos do devedor fiduciante tornam a situação do condomínio ainda mais sensível, pois isso faz a situação de inadimplência se arrastar no tempo.

 

Em muitos dos casos analisados, os magistrados e desembargadores destacam exatamente a ineficácia da solução apontada pela Terceira Turma do STJ ao afirmarem o desinteresse dos potenciais arrematantes na aquisição apenas dos direitos aquisitivos, devido a assunção do pagamento do financiamento, que possui um valor, na maioria dos casos, superior ao próprio valor de mercado do bem.

 

Convém consignar que, numa tentativa de promover essa liquidez, é comum,  na prática, o equívoco de penhora dos direitos, com avaliação errônea pelo valor de mercado do imóvel. Isso gera apenas a ilusão de respeito ao posicionamento da primeira corrente e confunde possíveis arrematantes que, diante de editais mal formulados, acreditam estarem comprando a propriedade e não somente os direitos reais do devedor fiduciante.

 

Nessa linha de raciocínio, a Quarta Turma do STJ decidiu favoravelmente ao condomínio Residencial Australis Easy Club, no REsp nº. 2.059.278/SC, permitindo a penhora do imóvel (não somente dos direitos aquisitivos), pois, segundo os Ministros, não seria possível admitir a suspensão do caráter propter rem da obrigação durante a vigência do contrato de alienação fiduciária em detrimento da coletividade condominial. Além disso, eles afirmaram que essa situação deixaria o devedor e o credor fiduciário em uma posição muito confortável, especialmente no caso de adimplência do financiamento, uma vez que a satisfação dos débitos condominiais precisaria aguardar a consolidação da propriedade em favor de um deles.

 

A sugestão do Ministro Raul Araújo, durante o julgamento retrocitado, foi determinar a citação do credor fiduciário no processo a fim de lhe oportunizar quitar a dívida, resguardando o direito de regresso contra o devedor fiduciante, ou deixar que ocorra a alienação judicial, exigindo o recebimento do seu crédito após o condomínio.

 

É com essa base argumentativa e com o fim de satisfazer a execução e não prolongar o desequilíbrio econômico dos condomínios que os TJs já vinham admitindo a penhora do imóvel e a alienação judicial da propriedade plena pelo seu valor de mercado, se afastando do que é previsto na legislação civil.

 

Penhorado, avaliado e alienado o imóvel, tem-se uma posição unânime pelo pagamento preferencial das dívidas condominiais e, posteriormente, dos credores fiduciários, como apontado na referida decisão da Quarta Turma do STJ. Nos Tribunais, o principal fundamento, neste ponto, encontra-se na aplicação por analogia da Súmula 478 do STJ. E daí surge o problema quanto aos efeitos da decisão do REsp nº. 2.059.278/SC. O que acontecerá se o imóvel penhorado for insuficiente para pagar a dívida do condomínio e o saldo de financiamento do credor fiduciário?

 

Imagine pagar o valor da avaliação do imóvel em primeira praça e ainda ter que arcar com o restante do financiamento do credor fiduciário? O valor ultrapassaria o valor do próprio bem. Por se tratar a arrematação forma originária de aquisição de propriedade, o juiz deverá ordenar a baixa do gravame de Alienação Fiduciária, perdendo o credor fiduciário sua garantia real. Este precisará, assim, buscar a satisfação de seu crédito em desfavor do executado por outros meios. Vide o Julgado da Comarca de Jacareí – SP, processo nº. 0008609-47.2015.8.26.0292, onde ocorreu o quanto citado.

 

Como solução imediata para este debate que pode assombrar a Alienação Fiduciária – a forma mais utilizada de garantia para financiamento imobiliário no país, – lembramos que a atual legislação já prevê que a garantia não se afeta apenas ao financiamento, mas também àquelas obrigações inerentes à operação,  conforme artigo 26, §1º, da Lei nº.  9.514/1997, que inclui no cálculo do valor da dívida o valor das contribuições condominiais.  Detectado o inadimplemento das cotas condominiais, ainda que pagas as parcelas do financiamento, o banco deve excutir a garantia, consolidando a propriedade em seu nome e levando o imóvel à leilão para satisfazer a dívida.

 

Noutro ponto, é também necessário chamar os condomínios à responsabilidade já que, em um país com dimensões continentais, marcado pela disparidade social, cultural e econômica não parece razoável considerar que todos os condomínios possuam uma administração organizada, e imaginar que os processos de cobrança são conduzidos de maneira célere viabilizando a mitigação, no que for possível, das perdas.

 

Neste cenário, seria possível que o entendimento da quarta turma do STJ acabe por premiar a conduta de um condomínio que, por exemplo, venha a executar o débito condominial após cinco anos da constituição da mora, sendo o credor fiduciário obrigatoriamente notificado somente no momento da execução, quando o débito condominial possa comprometer, em caso de penhora, percentual considerável do valor do imóvel, colocando em risco não somente a margem de lucro do credor fiduciário, mas até mesmo o valor principal o crédito emprestado.

 

Desta maneira, atrelar somente ao credor fiduciário o ônus da fiscalização da adimplência das taxas condominiais trará um ônus excessivamente alto para este segmento que impactará diretamente na análise de risco que esses credores farão para os créditos futuros.

 

É importante ressaltar que o crédito imobiliário é uma ferramenta que materializa, em muitos casos, o direito fundamental à moradia constitucionalmente prevista e a decisão jurisprudencial acerca do tema poderá trazer consequências negativas para todo o mercado creditício, que certamente repassará à sociedade os custos do risco de um negócio que possui garantia frágil.

 

Caso o cenário supramencionado venha a ocorrer, as alienações fiduciárias se tornarão mais caras, com incidência maior de juros, ou ainda o setor de crédito imobiliário buscará maneiras mais criativas à persecução do crédito, fazendo com que essa modalidade contratual seja fadada ao desuso como o que ocorreu por muito tempo com as hipotecas.

 

O que se pretende com essa reflexão não é de modo algum uma tentativa de subverter uma obrigação que é propter rem, mas parece razoável e até mesmo benéfico que, para que fique caracterizado a preferência dos créditos condominiais em detrimento dos créditos fiduciários, os condomínios devam notificar o credor fiduciário administrativamente já ao tempo da própria constituição da mora, oportunizando outras maneiras menos onerosas de quitar os débitos condominiais que não a penhora do bem, não somente em sede de execução, quando o risco da penhora já se faz evidente.

 

Seja qual for o entendimento do judiciário sobre o tema, é importante citar que para garantir a segurança jurídica e a eficiência na solução desses casos que tem sido uma crescente, é fundamental que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) assuma o papel de julgar esses litígios em sede de demandas repetitivas.

 

O entendimento dos tribunais deve ser pacificado quanto ao modo que se deve julgar a preferência do crédito fiduciário versus débito condominial e todos os impactos que essa decisão recairá sobre do arrematante, não podendo a distribuição processual ser palco de um verdadeiro “jogo de azar” para os litigantes que poderão ter sucesso ou insucessos em suas demandas a depender do julgador sorteado.

 

A análise em sede de demandas repetitivas permite uma discussão mais aprofundada sobre a questão de direito em si, contribuindo com decisão mais fundamentada e consistente, que servirá de referência em casos semelhantes futuros. Ao estabelecer precedentes e fornecer uma resposta definitiva para questões de direito repetitivas, o tribunal desempenha um papel fundamental na consolidação do sistema jurídico e na promoção da justiça para todos os cidadãos. Por fim, não se pode olvidar que a segurança jurídica é um dos pilares fundamentais do Estado de Direito e contribui para a estabilidade das relações sociais e econômicas, e é por isso que se faz premente a uniformização jurisprudencial no caso em tela, para que todos os players  tenham previsibilidade e confiança no sistema de Justiça.

 

Fonte: Migalhas

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