A lei 6.766/1979, também conhecida como Lei Lehman, representou uma mudança significativa no regime jurídico de parcelamento de solo para imóveis urbanos, enquanto o decreto-lei 58/1937 passou a regulamentar outras formas de parcelamento, incluindo loteamentos rurais e industriais, conforme disposto no art. 1º, I, “c”. Esta legislação trouxe, à época, uma abordagem moderna, que visava conciliar interesses econômicos com preocupações urbanísticas, ambientais e de proteção ao consumidor. Isso resultou na necessidade de que os projetos de parcelamento fossem submetidos à análise tanto da Prefeitura Municipal quanto dos registros imobiliários, estabelecendo um equilíbrio entre os diferentes entes administrativos.
O termo “parcela” refere-se a uma fração de um todo, portanto, o conceito de parcelamento do solo pode ser definido como a divisão completa ou parcial de uma propriedade em áreas específicas, cada uma com matrícula própria. Essa subdivisão é uma extensão direta do exercício do direito de propriedade e do poder de disposição, conforme estabelecido no Código Civil, artigo 1.228, caput.
O parcelamento do solo é classificado em duas categorias: loteamento e desmembramento, ambos registrados por meio da abertura de matrículas individuais para os lotes, destinados à edificação (LRP, art. 167, inciso I, 19, em conjunto com a Lei de Parcelamento do Solo, art. 18). A distinção fundamental entre essas duas modalidades reside no fato de que o loteamento implica na subdivisão de uma gleba em lotes e geralmente envolve a criação de infraestrutura pública, como a construção de logradouros públicos ou a melhoria das vias existentes (LPS, art. 2º, § 1). Em contraste, o desmembramento aproveita a infraestrutura já existente no local, conforme estipulado no mesmo art. 2º, § 2º.
O desdobro é uma modalidade de subdivisão de lotes, que embora não esteja prevista na Lei de Parcelamento do Solo Urbano, apresenta-se regulamentado por leis municipais. Na matrícula do imóvel, o desdobro é inscrito por meio de um ato de averbação, conforme estabelecido no artigo 167, inciso II, 4, da Lei de Registros Públicos.
Antes da vigência da lei 6.015/1973, o Livro 8 de Registro Especial era utilizado para registrar a propriedade loteada, especialmente para a venda de lotes a prazo, em prestações sucessivas e periódicas, conforme disposto no decreto 4.857/1939. Os compromissos de compra e venda, cessões e promessas de cessão eram averbados à margem desse registro, de acordo com o artigo 167, inciso II, 3, em conjunto com o decreto-lei 58/1937, artigo 4º, alíneas “a” e “b”. No Livro 3 – de Transcrições, era efetuada a averbação da inscrição da propriedade loteada, conforme estipulado no decreto-lei, artigo 4º, parágrafo único.
Ao longo dos anos, diversas modificações foram realizadas na Lei de Parcelamento do Solo Urbano. A mais recente delas é a lei 14.260/2023, originada da Medida Provisória nº 1.162/2023, que incluiu os artigos 18-A ao 18-F. Esses dispositivos permitem que o loteador, em um loteamento, tenha a opção de submetê-lo ao regime de afetação.
A criação do patrimônio de afetação, prevista na Lei nº 4.591/1964 e posteriormente modificada pela lei 10.931/2004, tinha como objetivo principal assegurar a restituição imediata dos adquirentes de fração ideal, vinculada à unidade autônoma, seja ela em construção ou a ser construída. Esse mecanismo garantiria a proteção dos interesses dos adquirentes no caso de insolvência ou quebra da incorporadora.1
A teoria da afetação, desenvolvida no século XIX, surgiu como resposta à teoria da unicidade patrimonial. Essencialmente, a teoria da afetação preconiza a criação de patrimônios especiais, separados do patrimônio geral, destinados ao cumprimento de uma finalidade específica.2 Assim, seu principal objetivo reside na prevenção da possibilidade de que credores comuns tenham acesso a ativos vinculados inequivocamente a uma finalidade específica. Em outras palavras, a teoria da afetação impede que os credores tenham acesso ao patrimônio de uma pessoa quando esse patrimônio está destinado a uma finalidade específica.
A aplicação da teoria da afetação no contexto do mercado imobiliário proporciona segurança e confiança no desenvolvimento dos empreendimentos. Isso inclui a contabilização separada, controle e fiscalização dos recursos financeiros destinados à incorporação.3 Por meio da lei 14.620/2023, o legislador decidiu estender essa segurança também aos loteamentos, impondo obrigações de controle contábil, conforme previsto no artigo 18-E da Lei de Parcelamento do Solo (LPS), os quais são cientificados os adquirentes, o Poder Público e a financiadora.4
Portanto, a afetação se caracteriza pela segregação do empreendimento imobiliário, no caso, o loteamento, do patrimônio comum, criando um patrimônio “imputado” voltado especificamente para a realização dos lotes, destinados à edificação e infraestrutura pública.
Quanto aos requisitos para essa averbação, a primeira questão que surge é se a afetação pode ser aplicada aos desmembramentos. Com base na diferenciação estabelecida na própria Lei de Parcelamento do Solo Urbano, parece que o legislador não teve a intenção de incluir os desmembramentos nos dispositivos inseridos, uma vez que não há menção específica a eles.
Os loteamentos são empreendimentos de maior envergadura do que os desmembramentos, pois envolvem a alteração do espaço urbano com a construção de equipamentos e vias públicas, que são posteriormente transferidos para o Município, de acordo com o artigo 22 da LPS. Portanto, é compreensível a concessão legal dessa faculdade de afetação para os loteadores, mas não necessariamente para outros tipos de parcelamento do solo. Outro aspecto a ser considerado é a maneira de formalização da afetação. Conforme estabelecido no artigo 18-B, a afetação é formalizada por meio de um termo assinado pelo loteador, embora possa ser necessário envolver os titulares de direitos reais de aquisição dos lotes comercializados. Na fase de qualificação, o registrador não poderá recusar o ingresso do termo do patrimônio de afetação com base na existência de ônus reais registrados na matrícula que tenham sido estabelecidos para garantir o pagamento do preço de aquisição do imóvel ou o cumprimento de obrigações relacionadas à implantação do empreendimento, como previsto no artigo 18, parágrafo único, da Lei de Parcelamento do Solo (LPS).
O patrimônio de afetação abrangerá tanto o terreno quanto a infraestrutura pública, bem como quaisquer bens e direitos vinculados a ele, conforme estipulado no artigo 18-A, caput, da mesma lei. É importante ressaltar que se trata de loteamento, que pode ser classificado como aberto ou fechado, conforme esclarecido pela lei 13.465/2017.5
É fundamental observar que o patrimônio de afetação não se mescla com outros bens, direitos ou obrigações do patrimônio geral do loteador ou de outros patrimônios de afetação que ele possa ter constituído. No entanto, o loteador será responsável pelas dívidas e obrigações relacionadas ao loteamento específico e pela entrega dos lotes urbanizados aos adquirentes, conforme disposto no artigo 18-A, § 1º, da LPS.
A integração da infraestrutura pública, seja ela já construída ou ainda em desenvolvimento, envolve a inclusão de bens públicos na massa patrimonial afetada. Quando ocorre o registro do loteamento, esses bens são transferidos para o domínio do Município, a menos que haja uma afetação pública anteriormente estabelecida. Adicionalmente, é permitida a abertura de matrículas de bens públicos na forma do artigo 195-A da Lei de Registros Públicos, quando concluídas as obras antes do registro do loteamento. A eventual decretação da falência ou da insolvência civil do loteador, por consequência, não atingem o patrimônio afetado, uma vez que não faz parte da massa falida, do mesmo modo que as exceções do art. 49, §§ 3º e 4º da lei 11.101/2005, com as modificações da lei 14.112/2020 (LPS, art. 18-F).
A instituição financiadora do empreendimento não se sujeita às obrigações ou responsabilidades do cedente loteador (LPS, art. 18-A, § 7º), tal qual a prevista para grupos econômicos ou financeiros, responsável solidariamente pelos prejuízos gerados aos adquirentes e ao Município (LPS, art. 47). É importante notar que a instituição financeira, bem como a Comissão de Representantes e a Prefeitura, possuem a prerrogativa de designar uma pessoa física ou jurídica para supervisionar a gestão do patrimônio de afetação, bem como o progresso da infraestrutura, de acordo com o disposto no artigo 18-C, tanto em seu caput quanto no § 2º.
A lei 14.620/2023 trouxe a possibilidade de o empreendedor ceder seus direitos creditórios provenientes das unidades vendidas do empreendimento, com o objetivo de angariar fundos para a execução das obras e serviços de acordo com o cronograma previamente apresentado à Prefeitura. Os recursos obtidos por meio dessa cessão de crédito são incorporados ao patrimônio de afetação, porém, só podem ser acessados pelo loteador após a conclusão das obras. Cumpre ressaltar que, se o crédito da cessão exceder o valor necessário para o término da infraestrutura do empreendimento, com sua conclusão, o excedente poderá ser disponibilizado para o loteador.
O patrimônio de afetação pode ser extinto por várias razões, conforme estipulado no artigo 18-E da LPS, de forma similar às causas de extinção aplicáveis a condomínios edilícios (lei 4.591/1964, artigos 31-A a 31-F). Uma das causas é a averbação do Termo de Verificação e Execução de Obras (TVEO) emitido pelo órgão público competente, seja o Município ou o Distrito Federal, que atesta a conclusão das obras conforme exigido pela legislação municipal, conforme o artigo 18, § 4º da LPS, com a redação dada pela lei 14.118/2021.6
Somente após a emissão do TVEO é que o Município procederá à individualização dos lotes no cadastro imobiliário municipal, em nome dos adquirentes ou compromissários compradores dos lotes comercializados e, nos casos dos lotes não comercializados, em nome do proprietário da gleba, conforme estipulado no artigo 22, § 3º da LPS.
Outra causa de extinção é o registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição em nome dos respectivos adquirentes, o que representa a entrega do resultado do empreendimento aos compradores, juntamente com as obrigações legais, responsabilidades tributárias e outros encargos inerentes à propriedade dos lotes.
Por fim, a extinção das obrigações do loteador perante a instituição financiadora da obra, por meio de quitação, também pode resultar na extinção do patrimônio de afetação. Até que essa quitação ocorra, a comercialização dos lotes deve contar com a concordância ou o conhecimento da instituição financeira, conforme previsto no contrato celebrado entre o loteador e a credora.
Desde a promulgação da Lei do Distrato, tem havido um notável fortalecimento do patrimônio de afetação, o qual se solidificou ainda mais com a promulgação da lei 14.620/2023. Esta última lei foi criada com o propósito de fortalecer a confiança no mercado imobiliário, sobretudo no que concerne ao êxito na conclusão dos empreendimentos. Além disso, essa legislação oferece vantagens ao loteador, como acesso a crédito imobiliário com taxas de juros mais baixas, graças à redução do risco proporcionada pela segregação de seu patrimônio.
É importante destacar que, por meio dessa iniciativa, o empreendedor tem a oportunidade de usufruir do regime tributário especial estabelecido na lei 10.931/2004, o que traz benefícios tanto para a sociedade quanto para o desenvolvimento econômico, representando uma medida positiva em vários aspectos.
Sejam Felizes!
Fonte: Migalhas
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