Enquanto no Direito Penal vigora o princípio “mors omnia solvit” (a morte resolve tudo), em direito das sucessões não é bem assim.
A experiência mostra que, com a morte do inventariado, divergências familiares por vezes eclodem, dando início a litígios que podem durar uma eternidade.
O processo sucessório não raro serve de palco para brigas entre irmãos, entre ex-cônjuge e atual companheiro(a), sucessor legítimo versus herdeiro testamentário, sem falar no filho desconhecido que se apresenta à família ainda no velório, anunciando a uma plateia perplexa que o inventário ganhará um novo litisconsorte. Nesse ambiente, digamos, não muito amigável, uma trégua improvável só costuma ocorrer quando entra cena um “inimigo” comum: a Fazenda Pública.
Isso porque o Direito Tributário se ocupa do tema com notável pragmatismo. Nos termos do artigo 192 do CTN, “nenhuma sentença de julgamento de partilha ou adjudicação será proferida sem prova da quitação de todos os tributos relativos aos bens do espólio, ou às suas rendas”.
O evento morte, portanto, é o momento apropriado para uma “faxina tributária”. Além do ITCMD, todos os demais débitos tributários devem ser quitados antes que os herdeiros tomem posse dos bens. Do ponto de vista de política tributária, a norma é salutar: a pressa dos herdeiros é poderosa aliada para a extinção de empoeiradas execuções fiscais de IPTU, IPVA e de outros tantos tributos que o de cujus deixou no fim da fila dos boletos.
Pode-se dizer que o inventário é uma espécie de deadline — com perdão pelo trocadilho — para que se promova um acerto de contas com o Fisco, atestando a veracidade da frase atribuída a Benjamin Franklin, segundo a qual há duas coisas certas na vida: a morte e os impostos.
Parte dessa certeza, entretanto, foi abalada em 2016 com a entrada em vigor do atual CPC, na medida em que, ao tratar do arrolamento sumário [1], o artigo 659, § 2o excepcionou a regra do artigo 192 do CTN, permitindo a lavratura do formal de partilha ou da carta de adjudicação sem o prévio aval da Fazenda Pública, que será intimada para “lançamento administrativo do imposto de transmissão e de outros tributos porventura incidentes (…)”.
Como visto, há uma clara antinomia entre os dispositivos do CPC e do CTN.
A tendência inicial da jurisprudência foi a de estender ao máximo o alcance da norma processual, desobrigando os herdeiros de comprovar a regularidade tributária do espólio, de forma ampla, o que provocou uma avalanche de recursos por parte das Fazendas Públicas estaduais e do Distrito Federal.
Acompanhamos de perto o tema no Distrito Federal, atuando na equipe de procuradores e demais servidores que militavam no contencioso tributário em matéria sucessória, a qual foi responsável pela elaboração das teses que, posteriormente, deram ensejo à afetação da matéria à sistemática dos recursos repetitivos (REsp 1.895.826-DF e 1.896.526-DF, DJe de 17/11/2020).
A tese fazendária, em linhas gerais, é a de que, nos termos do artigo 146, III, “b”, da Constituição, compete exclusivamente à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre crédito tributário, o que inclui suas garantias e privilégios (artigos 183 a 193 do CTN).
Assim, lei ordinária não poderia se sobrepor ao disposto em lei complementar para afastar as garantias de que dispõe a Fazenda Pública para recebimento de seus créditos. Esse também era o entendimento manifestado pelo STJ em hipóteses semelhantes [2].
Nessa linha de raciocínio, a compatibilização entre a norma tributária e a processual deveria ser feita, quando muito, permitindo-se a prolação da sentença homologatória da partilha independentemente do aval fazendário, nos termos da lei processual, mas condicionando a entrega do formal de partilha e alvarás à prova de quitação dos tributos, conforme dispõe o artigo 192 do CTN.
Esse foi, inclusive, o entendimento de Maria Berenice Dias logo após a entrada em vigor do CPC/2015, assinalando que “o não pagamento dos tributos não impede a homologação da partilha, somente a expedição dos formais ou alvarás” [3].
Após mais de dois anos e centenas de recursos interpostos, com outros milhares de processos suspensos no país até a definição da controvérsia — o STJ bateu o martelo no fim de 2022, fixando, no Tema 1.074, a seguinte tese:
“No arrolamento sumário, a homologação da partilha ou da adjudicação, bem como a expedição do formal de partilha e da carta de adjudicação, não se condicionam ao prévio recolhimento do imposto de transmissão causa mortis, devendo ser comprovado, todavia, o pagamento dos tributos relativos aos bens do espólio e às suas rendas, a teor dos arts. 659, § 2º, do CPC/2015 e 192 do CTN” (REsp 1.896.526/DF, relatora ministra Regina Helena Costa, 1ª Seção, julgado em 26/10/2022, DJe de 28/10/2022).
A solução foi salomônica. No arrolamento sumário, dispensa-se o prévio recolhimento do ITCMD, mas, em contrapartida, persiste a validade da exigência de quitação dos demais tributos relativos aos bens do espólio e às suas rendas.
O alentado voto da relatora, cuja leitura recomendamos, interpreta o art. 192 de forma restritiva, defendendo a tese de que ele não se refere ao ITCMD, mas somente “à exigência de pagamento de [outros] tributos concernentes aos bens do espólio e às suas rendas”.
Ousamos discordar, embora a questão já esteja definitivamente julgada. Doutrina e jurisprudência anteriores ao novo CPC eram concordes em ressaltar que o artigo 192 do CTN versava sobre garantia abrangente, incluindo o ITCMD e todos os demais tributos devidos pelo espólio.
José da Silva Pacheco, há mais de três décadas, já assinalava que a exigência legal “não se restringe à prova de quitação do imposto de transmissão causa mortis, predial ou territorial. Vai mais longe, porque se dirige à prova de pagamento de todos os demais impostos devidos pelo espólio à Fazenda Pública do Município, do Estado ou da União Federal, inclusive em relação a executivos fiscais em aberto” [4].
Aliás, o próprio STJ, ao decidir o Tema nº 391, ainda sob a égide do CPC/1973, entendeu que, em observância ao artigo 192 do CTN, se impunha “o sobrestamento do feito de arrolamento sumário até a prolação do despacho administrativo reconhecendo a isenção do ITCMD” — o que deixa claro que a norma tributária impedia, sim, a entrega do formal de partilha antes da definição sobre a exigibilidade do imposto de transmissão [5].
De todo modo, o julgamento do Tema 1.074 não solucionou todas as controvérsias tributárias no processo de inventário.
A título de exemplo, cite-se o parcelamento administrativo. O artigo 192 do CTN utiliza o termo quitação, que é hipótese de extinção do crédito tributário (artigo 156, I, CTN), ao passo que o parcelamento é hipótese de mera suspensão de sua exigibilidade (artigo 151, VI, CTN).
Por isso, entendemos que não basta que os débitos estejam parcelados. As diversas leis federais e estaduais sobre Refis, por exemplo, preveem que a opção pelo parcelamento implica a manutenção das garantias oferecidas na execução fiscal até que sobrevenha a efetiva quitação das parcelas [6]. No inventário, entretanto, a jurisprudência tem se mostrado vacilante [7], não havendo decisões recentes do STJ sobre o assunto.
Outro tema em aberto é a conversão do rito, para arrolamento sumário, aos “48 minutos do segundo tempo”. Se um inventário era inicialmente litigioso e se tornou amigável, ou se havia menor impúbere e este atingiu a maioridade, parece razoável admitir a conversão, ante o superveniente atendimento aos requisitos legais. Em alguns casos, entretanto, o que se tem visto é apenas a mudança do nome do procedimento na sentença, sem a observância dos requisitos para a adoção do procedimento simplificado.
Por fim, é preciso mencionar que o artigo 192 do CTN, ao falar em “tributos relativos aos bens do espólio e às suas rendas”, abarca também aqueles devidos pelo inventariado como corresponsável tributário (v.g., administrador de sociedade empresarial). Não é incomum que o inventariado deixe um passivo milionário a título de ICMS, ISS, PIS, Cofins etc., cujo pagamento é exigível do espólio, nos termos dos artigos 1.997 do CC, 619 do CPC e 131, II e III, do CTN. Recente precedente do TJDFT, posterior à fixação da tese no Tema 1.074, corretamente afastou a pretensão dos herdeiros fundada em equivocada interpretação do artigo 192 do CTN [8].
Discussões doutrinárias à parte, a definição do Tema 1.074 deixou um recado claro ao Fisco: o crescimento exponencial dos lançamentos administrativos exige que o Estado preste um serviço mais célere e eficiente ao contribuinte, tanto administrativa quanto judicialmente, sob pena de ver a arrecadação cair de forma drástica à medida que se acumulam as intimações para lançamento do tributo.
Por outro lado, a dispensa irrestrita do prévio pagamento do ITCMD, ao contrário do que sugere o senso comum, pode ser prejudicial não apenas à Fazenda Pública. Os empecilhos à arrecadação do ITCMD pelo modelo atual podem servir de combustível à tentadora e recorrente ideia de os Estados promoverem mais uma investida no bolso do pagador de impostos. Como dizia Margaret Thatcher, no fim das contas, não existe dinheiro público, apenas o dinheiro do contribuinte. E isso, gostemos ou não, também é tão certo como a morte.
Fonte: Conjur
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