O contrato preliminar

 

Não é incomum no cotidiano jurídico, marcadamente no mercado imobiliário, que apareçam os chamados “compromissos” ou as “promessas”, que são denominados “contratos preliminares” pela doutrina e servem como reforço ao comprometimento com a realização posterior de algum contrato.

 

Essa ferramenta contratual é utilizada, por exemplo, quando não existem condições convenientes para a celebração do contrato definitivo, de maneira que se torna mais estratégico esperar para ver se elas existirão no futuro. No entanto, existe, conjuntamente com essa postura, uma expectativa de que o negócio se realize, de forma que os futuros contratantes formalizam um pré-contrato para se vincularem previamente e aguardarem os acontecimentos futuros.

 

Ensina a doutrina que “contrato preliminar ou pactum de contrahendo (como era denominado no direito romano) é aquele que tem por objeto a celebração de um contrato definitivo” [1]. Há uma relação intrínseca entre o contrato preliminar e o definitivo, na medida em que o primeiro existe para obrigar os contratantes a celebrar o segundo. É um ato de obrigar-se a se obrigar.

 

O contrato preliminar é tratado no Código Civil nos artigos 462 a 466. Por eles é possível perceber essa relação intrínseca tendo em vista que todos os requisitos do contrato definitivo, com exceção da forma, devem ser observados no contrato preliminar (artigo 462, CC).

 

Essa relação entre os contratos mostra, quanto às partes, a expectativa de realização do negócio, que serve de motivo ao contrato preliminar, e algum obstáculo para a realização desde logo do contrato definitivo.

 

O vínculo criado serve como incentivo às partes a celebrarem o acordo definitivo. Assim como acontece em todos os contratos, as partes se valem de ferramentas para tornar mais segura e previsível a conduta da outra parte. No contrato preliminar, é possível, se uma das partes não celebrar posteriormente o contrato, exigir judicialmente a celebração do contrato definitivo, se a isso não se opuser a natureza da obrigação e no preliminar não houver cláusula de arrependimento, ou mesmo poderá considerar o contrato finalizado e requerer perdas e danos.

 

Dessa forma, percebe-se que essa figura jurídica tem o escopo de vincular as partes até que seja propícia a celebração de um contrato definitivo, resguardando a legítima expectativa de um futuro mais promissor para a efetiva realização das prestações desejadas pelos contratantes.

 

Doação pura

 

A própria lei tratou de conceituar a figura da doação como o contrato por meio do qual uma pessoa transfere [2] bens ou vantagens de seu patrimônio ao de outra por mera liberalidade (artigo 538, CC).

 

A natureza peculiar da doação fazia os antigos romanos a colocarem-na dentre os modos de aquisição da propriedade, afastando a ideia de natureza contratual, notadamente em razão da desnecessidade de aceitação. O Código Civil francês da época de Napoleão a colocava dentre os atos unilaterais de liberalidade, seguindo a mesma orientação.

 

Hoje não se discute mais a sua natureza, que é contratual. Os códigos e os juristas sempre as colocam dentre os contratos, notadamente apoiados na ideia da aceitação do donatário e, portanto, na convergência de vontades.

 

A peculiaridade da doação está em sua unilateralidade, no sentido de que somente uma das partes se vincula ao cumprimento de uma prestação. É da essência da doação a perda ou empobrecimento do doador e o ganho ou enriquecimento do donatário. Esse mecanismo, como bem lembra Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho [3], é uma expressão bem clara do poder de dispor do direito real de propriedade. Só podemos doar porque podemos dispor dos bens sobre os quais incide nosso direito de propriedade.

 

O ato de liberalidade é praticado com o chamado animus donandi, que é considerado essencial para a formação da doação. Esse elemento subjetivo é entendido como a vontade de beneficiar patrimonialmente o donatário, ou ainda, nas palavras de Orlando Gomes, “de enriquecer o donatário a expensas próprias” [4]. Nesse sentido, “Traço decisivo da doação é a liberalidade, a vontade desinteressada de fazer benefício a alguém, empobrecendo-se ao proporcionar à outra parte uma aquisição lucrativa causa” [5]. Daqui se separa a doação dos demais atos de liberalidade, como o comodato, mandato gratuito, renúncia, depósito, etc. Todos são atos de liberalidade, mas somente a doação é praticada com animus donandi, ou seja, com intenção de doar.

 

A doação pura, desta forma, é o contrato por meio do qual uma pessoa, com animus donandi, se obriga a transmitir de seu patrimônio qualquer bem passível de alienação a outra pessoa, mediante, em regra, a sua aceitação.

 

(In)compatibilização entre a liberalidade e sua exigibilidade

 

O contrato de promessa de doação seria, assim, o ajuste entre duas partes que se obrigam a celebrar uma doação futura. Em outras palavras, uma parte obrigar-se-ia a transferir de seu patrimônio, em momento futuro e com animus donandi, algum bem à outra parte, que deveria aceita-lo.

 

Em um lado haveria o compromisso de transferir o bem e, de outro, o de aceita-lo, cumprindo os requisitos da doação. Nesse sentido objetivo não parece haver grandes dificuldades, uma vez que não parece extrapolar os limites da autonomia privada ajustar tais condutas. A dificuldade parece surgir quando se tenta compatibilizar o elemento subjetivo e essencial da doação com a ideia de se comprometer.

 

Posso me obrigar a praticar um ato de liberalidade futuro? Posso garantir, sob pena de perdas e danos ou execução própria, que irei transferir com animus donandi um bem de meu patrimônio ao donatário? A doutrina, de uma maneira mais prática, pergunta se é possível requerer perdas e danos ou mesmo execução própria caso não se honre a promessa de doação.

 

A parcela que entende pela negativa, notadamente encabeçada por Caio Mário da Silva Pereira [6], sustenta que a natureza da doação não se compatibiliza com a possibilidade de exigir seu cumprimento. Em outras palavras, não é coerente que se obrigue alguém a praticar um ato de liberalidade com animus donandi, já que a intenção de doar pode não mais existir posteriormente. Essa incoerência geraria uma figura de “doação por coação”, na qual obrigar-se-ia alguém a praticar um ato de pura liberalidade. Além disso, haveria incompatibilidade entre as perdas e danos e a gratuidade inerente da doação.

 

Já outros [7] defendem que não existe no direito brasileiro qualquer óbice para a promessa de doação, na medida em que nenhum princípio ou regra de direito estaria sendo violada. Sustenta-se, nesse sentido, que não existe nas regras do contrato preliminar qualquer vedação quanto a sua aplicabilidade aos contratos, ou seja, ele pode utilizado a qualquer um, bem como, em relação ao direito comparado, a figura da promessa de doação existe expressamente no direito alemão.

 

Há parcela da doutrina [8] que entende que tanto é possível a promessa de doação quanto a sua exigibilidade, mas tão somente quanto às perdas e danos. Entende-se que a obrigação de indenizar se sustenta na quebra da legítima expectativa criada com a promessa, mas não extrapola a nível de obrigar o promitente-doador a transferir a coisa objeto da promessa em execução específica.

 

Na jurisprudência se verifica a possibilidade da promessa de doação nos casos em que ela faz parte de acordo na separação ou divórcio. Nesse caso específico, afastando-se em tese o fundamento da liberalidade, ou seja, considerando que essa promessa não se origina puramente da liberalidade, torna-se possível a execução da promessa, inclusive pelo próprio beneficiário [9].

 

Conclusão

 

Viu-se que, por meio de um contrato preliminar, duas partes podem se obrigar a celebrar um contrato futuro quando presentes condições fáticas favoráveis a essa celebração.

 

Mostrou-se que o contrato de doação é um instrumento para formalizar o intuito de transferência gratuita de um bem a outrem sem qualquer contraprestação.

 

Percebe-se que a junção desses institutos encontra problemas que pendem de resolução, tendo a doutrina e a jurisprudência encontrado diferentes soluções para esse entrave.

 

Parece que a promessa de doação traz alguns interessantes problemas cujas soluções não estão muito claras. Existe a ideia de que não se pode prometer doar porque: (1) a liberalidade é incompatível com a exigibilidade posterior; (2) o animus donandi deve ser contemporâneo à doação e não anterior.

 

Com a devida vênia, parece haver alguma imprecisão na ideia de liberalidade e no que é preciso subjetivamente no momento de doar. Parece-me que é possível, dentro do ordenamento, se comprometer a realizar uma doação futura, por meio de promessa de doação, conscientemente se vinculando às consequências patrimoniais caso não seja cumprida.

 

Em primeiro, não parece incompatível a promessa, pois, se alguém pretende se desfazer de parte de seu patrimônio gratuitamente em favor de outrem, pode ele também prometer que irá fazê-lo em momento posterior, inclusive arcando com perdas e danos em caso da quebra de expectativa. Em segundo, caso na promessa exista o animus donandi e no contrato definitivo não haja, no caso, por exemplo, em que o promissário-doador desista da doação, pois seus motivos mudaram, o contrato de doação não poderá existir, tal qual na promessa de venda na qual, ao final, o promitente-comprador não consiga mais arcar com as prestações a que se vinculou por falta de capital. Em ambos os casos a teoria geral das obrigações resolve os problemas. Em terceiro, parece que a liberalidade deve existir no momento de promessa de doação, para que ela exista, e que ela se estende no tempo até o momento do contrato definitivo. O que há é um comprometer-se a sustentar a liberalidade.

 

É claro que, ao fazer essa reflexão, se está tocando no conceito próprio de liberalidade, que não está perfeitamente claro e acabado na doutrina. Dessa forma, faz-se a tentativa conceitual da liberalidade como o aceitar uma prestação sem contraprestação equivalente. Já o motivo, que é irrelevante para o direito, pode ser beneficência, vaidade, prestígio, estratégia política, etc. Todos, portanto, fora da ideia de liberalidade. Assim considerada, não parece haver entrave em se obrigar a sustentar essa aceitação até o momento de celebração do contrato definitivo.

 

Em caso de descumprimento, não parece realmente que a promessa de doação tenha o condão de obrigar a entrega da coisa, como nas promessas em caso de transação em divórcios, mas parece perfeitamente razoável que se resolva em perdas em danos pela quebra da justa expectativa da transferência da propriedade de determinado bem.

 

Destarte, a promessa de doação, a despeito de enfrentar os justos obstáculos da doutrina e jurisprudência, não parece inviável de ser celebrada na realidade jurídica, revestida de validade e eficácia, mas parece se deparar com a impossibilidade de execução própria, restando, em caso de descumprimento, a resolução em perdas e danos.

 

Fonte: Conjur

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