A filiação socioafetiva é um conceito que se baseia no cuidado e afeto, não excluindo a ascendência biológica. A doutrina considera que existe quando há posse de estado de filiação, comportamento notório e contínuo de cuidado e afeto entre o filho e o genitor, mesmo sem vínculo biológico ou registro

 

A filiação socioafetiva, que é instituto diverso da multiparentalidade e não exclui a ascendência biológica, inexistindo, infelizmente, os objetivos para definir os critérios de socioparentalidade. Em muitos casos, há um linha tênue que separa o carinho e o cuidado, do parentesco por afeto.

 

Logo, pela doutrina atual, eis que não há legislação a respeito, há consenso que haverá filiação socioafetiva quando houver posse de estado de filiação. Para Conrado Paulino Rosa: “a posse do estado de filiação abriga os chamados filhos de criação, quando o genitor, apesar da ausência de vínculo biológico e registro, propaga e comporta-se como pai, quanto o filho também se comporta como descendente, restando presente o vínculo da afetividade”1.

 

Maria Berenice Dias, fazendo referência a Zeno Veloso, assevera que: “Se um homem, além de um comportamento notório e contínuo, confessa, reiteradamente, que é o pai daquela criança, propaga esse fato no meio em que vive, qual a razão moral e jurídica para impedir que esse filho, não tendo sido registrado como tal, reivindique, judicialmente, a determinação de seu estado?” 2.

 

Em verdadeira lição que parece feita sob medida ao presente caso, Gustavo Tepedino e Ana Carolina Teixeira definem a filiação socioafetiva:

 

A constituição da filiação socioafetiva não é calcada na “mera expressão de sentimento de amor ou afeto por si só”. Mais do que isso, “o que realmente cria o liame civil entre pais e filhos é o exercício da autoridade parental, ou seja, a real e efetiva prática das condutas necessárias para criar, sustentar e educar os filhos menores, nos exatos termos do art. 229, primeira parte, da CF, com o escopo de edificar sua personalidade, independentemente de vínculos consanguíneos que geram essa obrigação”. Ou seja, para a configuração do vínculo de filiação, é necessário muito mais do que os aspectos subjetivos sentimentais; faz-se importante a exteriorização de comportamentos de cuidado com a criação e educação daquele que se tem como filho.3

 

Inclusive, o Enunciado 256, do CJF, é categórico ao reconhecer que, caso se tenha “posse do estado de filho”, poder-se-ia pensar em parentalidade socioafetiva: “A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil.”

 

Vê-se, portanto, que para o reconhecimento de eventual filiação socioafetiva, é de se ter a vontade clara e inequívoca do ascendente, bem como existir a denominada posse de estado de filho, que se refere a exterioridade à comunidade e à família, somado ao tratamento pessoal.

 

O STJ, quando do julgamento do Agravo Interno em REsp 1.520.454, da 4ª turma, relatado pelo desembargador Convocado Lázaro Guimarães, julgado em 22/3/18:

 

AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DECLARATÓRIA. RECONHECIMENTO DE FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA. ADOÇÃO PÓSTUMA. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. INEQUÍVOCA MANIFESTAÇÃO DE VONTADE DO ADOTANTE FALECIDO. AGRAVO INTERNO PROVIDO PARA DAR PROVIMENTO AO RECURSO ESPECIAL.

 

Em que pese o art. 42, § 6º, do ECA estabelecer ser possível a adoção ao adotante que, após inequívoca manifestação de vontade, vier a falecer no curso do procedimento de adoção, a jurisprudência evoluiu progressivamente para, em situações excepcionais, reconhecer a possibilidade jurídica do pedido de adoção póstuma, quando, embora não tenha ajuizado a ação em vida, ficar demonstrado, de forma inequívoca, que, diante de longa relação de afetividade, o falecido pretendia realizar o procedimento.

 

Segundo os precedentes desta Corte, a comprovação da inequívoca vontade do falecido em adotar segue as mesmas regras que comprovam a filiação socioafetiva: o tratamento do adotando como se filho fosse e o conhecimento público dessa condição. Nesse sentido: REsp 1.663.137/MG, rel. ministra NANCY ANDRIGHI, 3ª turma, julgado em 15/8/17, DJe de 22/8/17; REsp 1.500.999/RJ, rel. ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, 3ª turma, julgado em 12/4/16, DJe de 19/4/16.

 

A posse do estado de filho, que consiste no desfrute público e contínuo da condição de filho legítimo, foi atestada pelo Tribunal de origem diante das inúmeras fotos de família e eventos sociais, boletins escolares, convites de formatura e casamento, além da robusta prova testemunhal, cujos relatos foram uníssonos em demonstrar que os adotandos eram reconhecidos como filhos, tanto no tratamento como no sobrenome que ostentavam, e assim eram apresentados ao meio social.

 

Afastada a impossibilidade jurídica do pedido, na situação concreta o pedido de adoção post mortem deve ser apreciado, mesmo na ausência de expresso início de formalização do processo em vida, já que é possível extrair dos autos, dentro do contexto de uma sólida relação socioafetiva construída, que a real intenção do de cujus era assumir os adotandos como filhos.

 

Agravo interno provido para dar provimento ao recurso especial.

 

No precedente, percebe-se que, para se reconhecer a filiação socioafetiva, deve existir a real intenção de que a pessoa integre o seio familiar, com a utilização de sobrenome, reconhecimento da família e das pessoas no entorno.

 

O relator daquele feito, inclusive, assevera que:

 

A posse do estado de filho, que consiste no desfrute público e contínuo da condição de filho legítimo, foi atestada pelo Tribunal de origem diante das inúmeras fotos de família e eventos sociais, boletins escolares, convites de formatura e casamento, além da robusta prova testemunhal, cujos depoimentos, mesmo na qualidade de informantes, foram uníssonos no relato de que os adotandos eram reconhecidos como filhos, tanto no tratamento como no sobrenome que ostentavam, e assim eram apresentados ao meio social.

 

Os elementos dos autos são concretos e robustos para a comprovação da filiação socioafetiva, distinguindo o caso, sobremaneira, de outras situações de guarda fática como mero auxílio econômico.

 

Não basta o mero auxílio econômico, sendo impositiva a postura de mãe/pai.

 

Inclusive, a ministra Maria Isabel Gallotti, vogal naquele precedente, apresenta voto, sustentando que a, na filiação socioafetiva, deve ter intenção inequívoca, especialmente nos reconhecimentos post mortem.

 

É de se repetir, para enfatizar: só existirá filiação socioafetiva quando houver manifestação inequívoca do pai, além de conhecimento público do fato pelos demais, além da posse do estado de filho. Eventual generosidade demonstrada, especialmente de cunho financeiro para a educação, não pode ser classificada com intenção de adotar a posse do estado de filho.

 

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1 Direito de Família Contemporâneo, 11ª ed, Editora Juspodium, pag. 471.

 

2 Manual de Direito das Famílias, 16ª ed, Editora Juspodium, pag. 263.

 

3 Fundamentos de Direito Civil – Volume 6 – Direito de Família. 1ª ed, Editora Forense, pag. 229.

 

Fonte: Migalhas

 

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