Retomamos os comentários à proposta de reforma do Código Civil, desta vez direcionando nosso enfoque ao direito de família, com ênfase especial na questão patrimonial. Neste artigo, analisaremos o regime de bens e as possibilidades trazidas pelos pactos conjugais ou convivenciais. A reforma propõe inovações significativas nesse campo, visando proporcionar maior flexibilidade e autonomia às partes envolvidas, sempre respeitando os princípios fundamentais do ordenamento jurídico. Exploraremos as implicações dessas mudanças, destacando como elas podem influenciar a dinâmica das relações familiares e a gestão patrimonial dos cônjuges e companheiros.
O regime de bens é um componente essencial do direito de família, exercendo impacto direto sobre a administração patrimonial de cônjuges ou companheiros. O propósito deste artigo é analisar as alterações no regime de bens sob a égide do CC de 2002 e de seu projeto de reforma, com ênfase nos elementos históricos que impulsionaram tais mudanças legislativas.
O regime de bens regula as relações patrimoniais entre os cônjuges, definindo como será a administração, o uso e a divisão do patrimônio adquirido antes e durante o matrimônio. Historicamente, no Brasil, o regime de bens sofreu várias transformações, refletindo as mutações sociais, econômicas e culturais. A implementação do CC de 2002 introduziu inovações significativas, adaptando-se às realidades e necessidades emergentes dos casais modernos.
O CC de 1916 representa um marco inicial significativo, estipulando quatro regimes de bens: A comunhão universal, a comunhão parcial, a separação de bens e o regime dotal.1 Predominantemente, o regime de comunhão universal refletia a percepção do casamento como uma união perpétua, com a mulher desempenhando um papel secundário na gestão patrimonial. Com a promulgação da lei do divórcio, na ausência de um pacto antenupcial, o regime de comunhão parcial de bens tornou-se o padrão.
As transformações sociais significativas, como o aumento da participação feminina no mercado de trabalho e a valorização da autonomia individual, culminaram na necessidade de reformas no regime de bens. A promulgação da Constituição Federal de 1988, que enfatiza a igualdade e a dignidade da pessoa humana, catalisou significativamente a reformulação do Código Civil.
O CC de 2002 trouxe inovações importantes no que diz respeito ao regime de bens. Uma alteração significativa foi a possibilidade de modificação do regime de bens durante o casamento mediante autorização judicial.2 Antes dessa mudança, o regime de bens escolhido no ato do casamento era considerado imutável, com exceções muito limitadas. No entanto, a modificação introduzida pelo § 2º do art. 1.639 do Código Civil permite a alteração do regime de bens mediante autorização judicial, desde que ambos os cônjuges a solicitem com justificativas plausíveis e que não prejudiquem terceiros.
A mudança do regime de bens após o casamento, portanto, não é absolutamente livre. Requer a aprovação judicial baseada numa solicitação conjunta dos cônjuges, independentemente da duração do matrimônio, e deve haver motivos substanciais para tal alteração. O juiz responsável irá considerar as razões apresentadas e, constatando a inexistência de prejuízos a terceiros, poderá autorizar a modificação, expedindo uma ordem ao Registro Civil das Pessoas Naturais que efetuou o assento do casamento para realizar a devida averbação. Cabe ao oficial do registro civil verificar o trânsito em julgado da sentença antes de proceder à averbação.
Embora o parágrafo único do art. 1.640 do Código Civil exija uma escritura pública para qualquer escolha de regime de bens diferente do padrão legal, as modificações do regime de bens após o casamento dispensam tal formalidade, pois a sentença judicial substitui a necessidade de um instrumento público para a escolha de regimes distintos da comunhão parcial de bens ou da separação obrigatória. No entanto, é permitido lavrar uma escritura pública para a mudança de regime de bens, desde que haja autorização judicial.3
A averbação da mudança do regime de bens não corrige um erro no registro, mas visa modificar o status quo, produzindo efeitos a partir da data da alteração. Dado que a mudança no regime de bens não possui efeito retroativo, é imperativo que o oficial de registro civil indique na certidão a alteração, mencionando o regime de bens vigente na data do casamento e a respectiva modificação, além da data em que a averbação foi realizada. A falta dessa informação pode resultar em registros imprecisos sobre o regime de bens no momento do casamento.
É importante destacar que foi um dos objetivos da Comissão de Reforma do Código Civil de 2002 a redução de burocracias, promovendo, assim, a desjudicialização dos processos. A análise inicia com o exame das modificações do art. 1.639 do Código Civil, cuja redação foi alterada para permitir que “aos cônjuges ou conviventes, antes ou depois de celebrado o casamento ou constituída a união estável, seja lícita a livre estipulação quanto aos seus bens e interesses patrimoniais”.
Note-se que, além de contemplar a união estável, essa redação possibilita a alteração do regime patrimonial de forma extrajudicial após a celebração do casamento ou a constituição da convivência. Dada a jurisprudência consolidada que não reconhece eficácia retroativa à escritura pública que altera o regime de bens, o art. 1.653-A, também revisado pela Comissão, estabelece que “não se admitirá eficácia retroativa ao pacto conjugal ou convivencial que sobrevier ao casamento ou à constituição da união estável”, e o § 2º do art. 1.639 reitera que “o regime de bens pode ser modificado por escritura pública e só produz efeitos a partir do ato de alteração, ressalvados os direitos de terceiros.”4
Partindo do princípio de que “quem pode o mais, também pode o menos”, o casamento e sua dissolução podem ocorrer extrajudicialmente, permitindo que a alteração do regime de bens seja realizada por escritura pública perante o Tabelionato de Notas, sem necessidade de intervenção judicial. Ademais, o art. 734 da codificação processual civil, que regulamenta o procedimento para a modificação do regime de bens mediante petição ao juiz, foi objeto de revisão na III Jornada de Direito Processual Civil de 2023, resultando no enunciado 177, que limita a intimação do Ministério Público nos casos previstos nos arts. 178 e 721 do CPC.5 Com isso, optou-se pela revogação expressa do art. 734 do Código de Processo Civil.
A fim de proporcionar maior autonomia na gestão de questões pessoais e experiências relacionadas ao direito de família, a Comissão de Juristas do Senado introduziu a chamada “sunset clause” ou cláusula de caducidade. Por meio dessa estipulação negocial, oriunda da experiência anglo-saxônica, a doutrina explica que “prevê-se um termo ou uma condição resolutiva, que opera a alteração de uma situação jurídica ou a extinção dos seus efeitos. Encerra-se um panorama ou horizonte jurídico, para iniciar-se outro, como se dá, diariamente, após o pôr-do-sol, daí derivando a origem da expressão “sunset clause””.6
As sunset clauses são frequentemente incorporadas em legislações e contratos como um mecanismo de controle temporal. Sua adoção pode ser motivada por diversas razões, incluindo a necessidade de revisões periódicas, a avaliação da eficácia de uma legislação ou a prevenção de efeitos adversos a longo prazo. No direito de família, essas cláusulas podem desempenhar um papel vital, garantindo que acordos de custódia, pensão alimentícia e outros arranjos sejam atualizados conforme mudam as necessidades das partes envolvidas.7
Nesse sentido, além da modificação do regime de bens por escritura pública, nos termos do art. 1.653-A, também será possível a sua alteração por cláusula prévia estabelecida no contrato entre cônjuges ou companheiros, por pacto antenupcial ou convivencial celebrado sempre por escritura pública, sob pena de nulidade absoluta. O art. 1.653-B permite que, no pacto antenupcial ou convivencial, se estipule a alteração automática do regime de bens após um período de tempo predeterminado, sem efeitos retroativos, resguardando os direitos de terceiros. A título ilustrativo, duas pessoas podem acordar que, durante os primeiros três anos de casamento ou união estável, as responsabilidades financeiras e os lucros serão divididos igualmente. Após esse período, se a parceria for considerada bem-sucedida, poderão optar por um modelo onde as contribuições e os lucros são repartidos proporcionalmente ao investimento de cada um. Esta cláusula visa proteger os interesses de ambos os parceiros durante o período inicialde adaptação, garantindo conformidade com as normas obrigatórias e de ordem pública, conforme preconizado pela reforma legislativa.
Em suma, as reformulações propostas ao regime de bens refletem um esforço significativo para modernizar e desburocratizar aspectos do direito de família, alinhando-os com as necessidades contemporâneas e promovendo maior autonomia entre os cônjuges ou conviventes. Tais mudanças, se adotadas, poderão alterar a maneira como os bens são administrados dentro das relações familiares, oferecendo flexibilidade e adaptabilidade a situações variadas.
Em um próximo artigo, exploraremos outra proposta da Comissão de Juristas: A eliminação da separação obrigatória de bens e da participação final dos aquestos. Discutiremos os potenciais impactos dessas mudanças, que prometem reconfigurar ainda mais as normativas patrimoniais e as dinâmicas financeiras entre os cônjuges, especialmente em contextos de uniões formadas em circunstâncias específicas ou por indivíduos de certas faixas etárias.
Sejam felizes!
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1 Arts. 256 a 314 do Código Civil de 1916.
2 KÜMPEL, Vitor Frederico, FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais, v.2, 29 ed., São Paulo, YK Editora, 2022.
3 KÜMPEL, Vitor Frederico, FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral: Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais, v.2, 29 ed., São Paulo, YK Editora, 2022.
4 (…) CELEBRAÇÃO DE ESCRITURA PÚBLICA DE INCOMUNICABILIDADE PATRIMONIAL COM EFICÁCIA RETROATIVA. IMPOSSIBILIDADE, POIS CONFIGURADA A ALTERAÇÃO DE REGIME COM EFICÁCIA EX-TUNC, AINDA QUE SOB O RÓTULO DE MERA DECLARAÇÃO DE
FATO PRÉ-EXISTENTE. (…) 6- Em razão da interpretação do art. 1.725 do CC/2002, decorre a conclusão de que não é possível a celebração de escritura pública modificativa do regime de bens da união estável com eficácia retroativa, especialmente porque a ausência de contrato escrito convivencial não pode ser equiparada à ausência de regime de bens na união estável não formalizada, inexistindo lacuna normativa suscetível de ulterior declaração com eficácia retroativa. (…)” (STJ – REsp: 1845416 MS 2019/0150046-0, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 17/08/2021, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe. 24/08/2021)
“(…) AGRAVO INTERNO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE DIVÓRCIO. UNIÃO ESTÁVEL CONFIGURADA. AUSÊNCIA DE DEFICIÊNCIA NA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. CASAMENTO. PACTO ANTENUPCIAL. SEPARAÇÃO TOTAL DE BENS. EFICÁCIA EX NUNC. SÚMULA 83 DO STJ.
(…) 2. “Conforme entendimento desta Corte, a eleição do regime de bens da união estável por contrato escrito é dotada de efetividade ex nunc, sendo inválidas cláusulas que estabeleçam a retroatividade dos efeitos patrimoniais do pacto.” (AgInt no AREsp n. 1.631.112/MT, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 26/10/2021, DJe de 14/2/2022).” (Agravo Interno no Recurso Especial 2023/0292022-7, Rel. Min. MARIA ISABEL GALLOTTI (1145), T4 – QUARTA TURMA, j. 04/12/2023, DJe. 07/12/2023).
5 Art. 178. O Ministério Público será intimado para, no prazo de 30 (trinta) dias, intervir como fiscal da ordem jurídica nas hipóteses previstas em lei ou na Constituição Federal e nos processos que envolvam: I – interesse público ou social; II – interesse de incapaz; III – litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana. Parágrafo único. A participação da Fazenda Pública não configura, por si só, hipótese de intervenção do Ministério Público.
Art. 721. Serão citados todos os interessados, bem como intimado o Ministério Público, nos casos do art. 178, para que se manifestem, querendo, no prazo de 15 (quinze) dias
6 GAGLIANO, Pablo Stolze, A cláusula do pôr-do-sol (Sunset Clause) no Direito de Família, disponível aqui.
7 Nos termos da Revisão da Comissão Australiana de Reforma da Lei do Sistema de Direito da Família, ao dispor sobre a “sunset clause” consideraram o seguinte: “In addition to considerations of timing, independent legal advice and full financial disclosure, New York attorneys advocated the insertion of a ‘sunset clause’ when drafting a prenup. The effect of a sunset clause is that once a defined period of time has elapsed, the award to the non-moneyed spouse increases, or alternatively the prenup is no longer enforceable. Several attorneys felt that this clause represented a compromise between the parties, as the non-moneyed spouse will not waive his or her equitable distribution rights if the marriage lasts, yet the moneyed spouse’s assets are protected in the short term. Other attorneys, however, preferred to avoid the insertion of sunset clauses, as they had been involved in multiple cases where the moneyed spouse ended the marriage before the clause came into effect. Indeed, one attorney felt that the true effect of sunset clauses is to cause spouses to re- evaluate their marriage and think about divorce.” [Além de considerações de tempo, aconselhamento jurídico independente e divulgação financeira completa, os advogados de Nova York defenderam a inserção de uma ‘cláusula de caducidade’ ao redigir um acordo pré-nupcial. O efeito de uma cláusula de caducidade é que, uma vez decorrido um período de tempo definido, a sentença ao cônjuge sem dinheiro aumenta ou, alternativamente, o acordo pré-nupcial não é mais aplicável. Vários advogados sentiram que esta cláusula representava um compromisso entre as partes, já que o cônjuge sem dinheiro não renunciará a seus direitos de distribuição equitativa se o casamento durar, mas os bens do cônjuge com dinheiro são protegidos no curto prazo. Outros advogados, no entanto, preferiram evitar a inserção de cláusulas de caducidade, pois estiveram envolvidos em vários casos em que o cônjuge endinheirado terminou o casamento antes que a cláusula entrasse em vigor. De fato, um advogado sentiu que o verdadeiro efeito das cláusulas de caducidade é fazer com que os cônjuges reavaliem seu casamento e pensem em divórcio.] [tradução nossa]. Australian Law Reform Commission Review of the Family Law System-Issues Paper (IP 48) Submission of Written Evidence Dr S Thompson, Cardiff University, UK. Disponível aqui. GAGLIANO, Pablo Stolze, A cláusula do pôr-do-sol (Sunset Clause) no Direito de Família, disponível aqui.
Fonte: Migalhas
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