A lei 9.514/97, sobre alienação fiduciária, não aborda adequadamente imóveis rurais, deixando lacunas na posse e restituição desses bens. A alienação fiduciária garante a propriedade ao credor até o pagamento da dívida, enquanto o arrendamento rural é um contrato para exploração agrícola ou pecuária de imóveis
A alienação fiduciária na forma delineada na lei 9.514/97, é voltada a aplicação em imóveis urbanos, conforme foi concebida em seu início, e mesmo com as alterações subsequentes, com a inclusão de qualquer tipo de imóvel e outros direitos imobiliários, nem todas as regras foram ajustadas para esta nova realidade e nesta prévia análise, observamos que a Lei não alberga as variáveis inerentes aos imóveis rurais.
Partindo, da premissa de que o legislador se mostrou omisso ao tratar da posse de bens imóveis rurais alienados fiduciariamente, bem como da hipótese de restituição desta posse ao fiduciário ou ao adquirente do imóvel em leilão, frente as peculiaridades e desdobramentos fáticos que a posse de imóvel rural manifesta.
Sendo interessante para o entendimento dos institutos jurídico ora analisados, a respectiva conceituação, onde na alienação fiduciária, o devedor (fiduciante), sendo proprietário de um imóvel, aliena-o ao credor (fiduciário) a título de garantia; a propriedade assim adquirida tem caráter resolúvel, vinculada ao pagamento da dívida, pelo que, uma vez verificado o pagamento, opera-se a automática extinção da propriedade do credor, com a consequente reversão da propriedade plena ao devedor-fiduciante, enquanto, ao contrário, se verificado o inadimplemento contratual do devedor-fiduciante, opera-se a consolidação da propriedade plena no patrimônio do credor-fiduciário1.
No arrendamento rural temos uma espécie de locatio rei e se conceitua como contrato agrário pelo qual uma pessoa se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso e o gozo do imóvel rural, parte ou partes deles, incluindo ou não outros bens, benfeitorias ou outras facilidades, com o objetivo de nele ser exercida atividade de exploração agrícola, pecuária, agroindustrial, extrativa ou mista, mediante certa retribuição ou aluguel, observados os limites percentuais do Estatuto da Terra.2
Assim, quando se trata do uso dos imóveis rurais alienados fiduciariamente e seus respectivos desdobramentos, há que se analisar a lei 9.514/97 conjuntamente com normativos específicos, como Estatuto da Terra, além do próprio Código Civil face as omissões da lei3.
Bem, caracterizada a mora contratual e frustrada a condição para aquisição da propriedade pelo fiduciante, consolida-se a propriedade a favor do fiduciário, mediante averbação na matrícula do imóvel, caso o devedor não purgue a mora no prazo da intimação que receber do credor fiduciário, na forma do art. 26, § 7º da lei 9.514/97.
Após a consolidação da propriedade em nome do fiduciário, este deve promover leilão público do imóvel, nos trintas dias subsequentes, contados do registro da consolidação da propriedade, ocasião em que o imóvel poderá ser adquirido por terceiro em leilão, caso o fiduciante, não exerça o seu direito de preferência até a data do segundo leilão.
De qualquer forma, o art. 30 da lei 9.514/97, estabelece que em não havendo desocupação voluntária do imóvel quando da consolidação da propriedade, estará caracterizado o esbulho, ao determinar que o fiduciário pedirá “a reintegração na posse do imóvel, que será concedida liminarmente, para desocupação em sessenta dias”.
Ocorre que a Lei em voga, em nenhum momento disciplina como se dará o prazo de desocupação para imóveis rurais, onde as situações são mais complexas, e nem sempre será possível a aplicação de uma lei específica, visto o inevitável conflito de normas.
Em especial temos a hipótese da posse de imóvel rural após a consolidação da propriedade em nome do fiduciante e ou da arrematação em leilão, no caso de pender sobre o respectivo imóvel rural, contrato de Arrendamento Rural, onde a exploração da área esteja em curso e pendente a colheita de seus frutos. A lei de forma simples, determina que estando a posse com o fiduciante e havendo a consolidação da propriedade em favor do fiduciário, deve esta, ser imediatamente devolvida, porém, como se dará tal devolução em caso em que haja lavoura instalada no imóvel, onde o plantio foi efetuado quando a posse era mansa e pacífica e não havia qualquer notícia a respeito da mora contratual por parte do fiduciante?
Diante das peculiaridades fáticas e jurídicas da referida hipótese, tenho que o operador do direito deve construir a sua interpretação4 sob o aspecto da amplitude de normas afetas a política agrícola nacional, iniciando-se pela Constituição Federal em seu art. 187, que trata da importância desta como política de Estado5, e de forma complementar sob à Luz do Código Civil, Estatuto da Terra, seu regulamento e mesmo da lei do agro (lei 13.986/20, que na exposição de motivos da MP que lhe deu origem, diz “…as alterações propostas no ordenamento legal do crédito se impõem, sobretudo, pela necessidade de alavancar as contratações de financiamento que, por consequência, contribuem para a retomada sustentável do crescimento econômico, além de fortalecer o setor rural”.
A existência de contrato de arrendamento rural sobre o imóvel que foi objeto da consolidação da propriedade em nome do fiduciário, precisa ser entendida sob a perspectiva constitucional em harmonia com o art. 186 da CF, “A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:”, visto que além dos interesses privados do Fiduciante e fiduciário, há o interesse do Estado de manter as terras produtivas, e o arrendamento rural, vem a cumprir tal desígnio de função social, ao efetivar a produção da terra.
Partindo para a aplicação do Código Civil sob a existência do arrendamento rural sobre o imóvel consolidado em nome do fiduciário, o art. 1.214 caput, diz, “o possuidor de boa-fé tem direito, enquanto ela durar, aos frutos percebidos.”, porém, a partir do momento em que o possuidor deixa de ter boa-fé, os frutos pendentes deverão ser restituídos a quem de direito, descontados as despesas da produção e custeio, vide parágrafo único do referido artigo.
Ocorre que a simples aplicação desta regra, poderá causar grandes tumultos jurídicos, visto que o Código Civil é mais amplo e genérico, e não se prevê no referido diploma legal as situações específicas do meio rural.
Ressaltando, que no momento do início da vigência do contrato de arrendamento rural, não havia mora do fiduciante, e a este cabia o gozo e o uso do imóvel, bem como a posse plena deste, figurando a perda da posse após a inadimplência e a consequente consolidação da propriedade em nome do fiduciário, fato que em regra se dá de forma mais célere do que o fim do contrato de arrendamento rural, bem como a colheita da safra pendente. E sobre o arrendamento que se iniciou antes do vencimento da dívida, não se pode dizer que o Arrendatário não está de boa-fé e muito menos é razoável exigir do mesmo que não houvesse o plantio, que em regra possui uma pequena janela para a execução e conservação da produção.
Ainda, que se considere que após a mora o fiduciante seja considerado possuidor de má-fé, conforme arts. 26 e 30 da lei 9.514/97, os efeitos em face do Arrendatário, se dá por construção jurídica, e não por conduta dolosa deste, assim, a aplicação do Estatuto da Terra, por analogia, pode tornar a solução mais justa e juridicamente viável. Sendo o possuidor direto arrendatário, a aplicação do Estatuto da Terra, norma específica e imperiosa, e o parágrafo quinto do art. 92 da lei 4.504/64 – Estatuto da Terra – dispõe que: “a alienação ou a imposição de ônus real ao imóvel não interrompe a vigência dos contratos de arrendamento ou de parceria ficando o adquirente sub-rogado nos direitos e obrigações do alienante.”
A primeira situação verificável onde não vejo muitos subterfúgios jurídicos, é a de que havendo contrato de arrendamento registrado na matrícula do imóvel ao tempo da contratação da alienação fiduciária, presume-se que o fiduciário estava ciente da posse direta do Arrendatário, e o mesmo deve ser respeitado na forma como fora originalmente acordado, em respeito ao § 5º do art. 92 da lei 4.504/64.
Assim, se eventualmente, o prazo do arrendamento ou da parceria ultrapassar o prazo de alienação fiduciária, não prosperará a má-fé presumida pelo art. 30 da lei 9.514/97, haja vista que a situação era pré-existente e conhecida6. E caso ocorra a mora do fiduciante e haja a necessidade de leilão do imóvel, é imprescindível que a existência da posse direta advinda de contrato de arrendamento rural, seja comunicada no edital do leilão, para que interessados fiquem cientes da existência de possuidor de boa-fé e da extensão da respectiva posse.
Porém, no segundo caso, onde o contrato de arrendamento for firmado após a constituição da alienação fiduciária sobre o imóvel rural, teremos duas hipóteses:
Primeiro é quando o contrato de arrendamento é firmado com a anuência do fiduciário. Neste aspecto, o contrato será válido em sua integralidade, mesmo que ultrapasse o prazo de alienação fiduciária, vez que houve a participação no pacto do fiduciante, fiduciário e do arrendatário. O que o torna equivalente ao contrato pré-existente e deve ser cumprido até o final, devendo, em caso de leilão, ser comunicado de forma descritiva sua existência.
A segunda hipótese, é quando o fiduciante firma diretamente com o arrendatário o contrato de arrendamento rural, sem a anuência do fiduciário, sendo tal hipótese, plenamente executável, visto que o fiduciante fica com a posse direta e pode fazer dela o pleno uso, ressaltando, que como arrendar não é ato translativo de propriedade, mas somente de transmissão de posse, o fiduciante pode firmar contrato de arrendamento durante a vigência da alienação fiduciária.
Neste caso, os limites são restritos ao contrato que originou a alienação fiduciária, em especial sobre o prazo de duração, aplicando-se o disposto no inciso I do art. 95 e inciso I do art. 96, do Estatuto da Terra, o término deve ser no final da safra anterior ao vencimento do débito, a fim de que evitem maiores problemas de ordem jurídica. Ocorre, que em caso de desrespeito a esta regra, e o arrendatário implantar nova safra, pode ser impelido por exegese do Estatuto da Terra, a pagar a renda até o final da colheita e desocupar o imóvel imediatamente após a finalização desta.
Não se pode ainda desconsiderar a questão do prazo mínimo legal de vigência do contrato de arrendamento rural de 3 anos, estipulado no inciso II, do art. 13 do decreto 59.566/66, que regulamenta o Estatuto da Terra, onde não aprofundaremos nas discussões específicas a respeito da aplicação peculiar do referido prazo, sendo incontestável, que se o arrendatário se enquadrar nos limites do art. 8º do decreto 59.566/66, o prazo mínimo de três anos deverá ser respeitado.
Surgindo a questão determinante, se o fiduciante e o arrendatário contratarem sem a aquiescência do fiduciário, com data de vencimento do contrato de arrendamento em data posterior ao vencimento do débito, tal ato pode ser interpretado como má-fé, desde o seu início, sendo certo, que quem age com má-fé não pode pretender se beneficiar sobre o ato, eis que a boa-fé objetivo é um princípio basilar de direito.
Portanto, é certo que o fiduciante pode arrendar o imóvel alienado fiduciariamente sem o conhecimento ou anuência do fiduciário, desde que as condições contratuais e os prazos estipulados no pacto de alienação fiduciária sobre o imóvel rural sejam respeitados. E todo contrato de arrendamento rural firmado com a expressa anuência do fiduciário, seja, por este ter se realizado anteriormente ao contrato de alienação fiduciária do imóvel rural, ou por ter sido colhida a anuência do fiduciário no arrendamento que se deu em momento posterior a alienação fiduciária, deve ser respeitado em sua integralidade, tanto pelo fiduciário, tanto por eventual arrematante em leilão, em caso de mora do fiduciante.
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1 Chalnub, Melhim Namem – Alienação Fiduciária: Negócio fiduciário – 6. Ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019, pag. 266.
2 Optiz, Silvia C. B. Curso Completo de Direito Agrário – 6ª ed. Ver. E atual. – São Paulo: Saraiva, 2012, pag. 381.
3 Poletti, Claudinei Antonio; Jabbar, Munir Yusef, Poleti, Henrique Dall Agnol. Alienação Fiduciária de Besn Imóveis e o Agronegócio – 1ª ed. Campo Grande: Contemplar 2019, pag. 97.
4 H.A. compartilha da opinião de quem escreve uma concepção realista da interpretação, que parte da distinção entre disposições normativas e normas. As normas são, desse ponto de vista, não o objeto da interpretação, mas seu produto: isto é, são os significados que os intérpretes atribuem às disposições normativas – ou melhor, como diz H.Á., “constroem” ou “reconstroem” a partir dessas. As normas, em resumo, não preexistem à interpretação, mas dessa dependem. Ricardo Guastini – Prólogo da Ed. Italiana de Teoria dos Princípios da definição à aplicação dos princípios jurídicos – 17 a edição, revista e atualizada – São Paulo: Malheiros, 2016.
5 PEREIRA, Lutero de Paiva. Agricultura, uma política de estado. Curitiba: Ed. Íthala, 2020.
6 Poletti, Claudinei Antonio; Jabbar, Munir Yusef, Poleti, Henrique Dall Agnol. Alienação Fiduciária de Besn Imóveis e o Agronegócio – 1ª ed. Campo Grande: Contemplar 2019, pag. 102
Fonte: Migalhas
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