No dia 08/11/24 o Banco Central colocou para consulta pública duas propostas de regulação para o mercado de ativos virtuais com o objetivo1 de buscar mais informações e opiniões para propostas de regulamentação.
A proposta de Resolução estabelece diretrizes específicas para determinados ativos digitais, mas exclui de seu escopo, os ativos projetados sob a forma de tokens não fungíveis (NFTs), os instrumentos financeiros tokenizados, como ativos financeiros e valores mobiliários, e os bens móveis ou imóveis submetidos a processos de tokenização, mesmo quando concebidos com fins de investimento.
Ainda assim, com a exclusão do processo de tokenização de imóveis, a atenção do mercado imobiliário é válida diante do panorama desenhado pelas resoluções.
Este artigo não busca esgotar o tema, tampouco adentrar propriamente dito na análise de artigo por artigo das propostas das resoluções, mas sim fomentar reflexões sobre os obstáculos e oportunidades que a regulamentação de ativos virtuais da CVM pode representar. Além disso, objetiva alertar o mercado para a importância de se engajar nas discussões regulatórias e analisar as implicações práticas que essa nova estrutura normativa pode trazer para os setores imobiliário e tecnológico.
Papel regulamentador da CVM
Cumprindo seu papel regulamentador trazido na lei 6.385/76, a CVM traz à tona consulta para manifestações do público em geral, consulta a fim de assegurar um ambiente juridicamente seguro, garantir a solidez, a eficiência e o regular funcionamento das sociedades prestadoras de serviços de ativos virtuais e demais instituições integrantes do mercado de ativos virtuais, além de dispor sobre aspectos relacionados aos riscos e às vulnerabilidades identificadas nesse mercado.
A consulta pública 109/2024 propõe regulamentar os serviços de ativos virtuais previstos no art. 5º da lei 14.478/22, abordando a constituição e funcionamento das sociedades prestadoras desses serviços e definindo as instituições autorizadas pelo Banco Central para operá-los, além das tarifas aplicáveis.
A proposta ainda classifica essas sociedades em três modalidades: intermediárias, que negociam e distribuem ativos virtuais; custodiantes, responsáveis pela guarda dos ativos; e corretoras, que acumulam as funções de intermediação e custódia.2
A consulta pública 110/243 apresenta proposta de regulação a partir de processos de autorização para o funcionamento de sociedades corretoras de câmbio, corretoras e distribuidoras de títulos e valores mobiliários, além das prestadoras de serviços de ativos virtuais. Entre os principais pontos abordados estão: (1) a unificação e atualização das regras de autorização para atuação no mercado de ativos virtuais por diferentes segmentos, visando maior clareza e segurança regulatória; (2) a inclusão de requisitos mínimos de capacidade financeira, técnica e operacional para funcionamento das entidades, bem como critérios para seus administradores e controladores; e (3) o ordenamento das condições de entrada e saída do mercado regulado.
Nesse contexto, emerge o questionamento sobre os impactos que a presente regulamentação proposta pode gerar na crescente prática da tokenização imobiliária, uma inovação que vem ganhando destaque no Brasil. Trata-se de uma atividade que alia tecnologia blockchain ao mercado imobiliário, proporcionando novas possibilidades de negócios e investimentos, mas que também traz desafios regulatórios significativos.
Ativos virtuais e operações imobiliárias
Quanto a ativos virtuais o conceito é demasiadamente amplo que vai além de uma mera conjectura de uma moeda virtual. Conforme definido pela FATF (Financial Action Task Force), ativo virtual é uma representação digital de valor que pode ser transferida ou transacionada eletronicamente, sendo utilizada como meio de pagamento ou para fins de investimento. Pode-se dizer que ativo virtual é gênero do qual moedas virtuais (bitcoin, alt-coins e as stablecoins) e os NFT (non-fungible tokens) são espécies.
Para a Resolução derivada da consulta pública 109/24, ativo virtual4 é a representação digital de valor que pode ser negociado ou transferida por meios eletrônicos, a exemplo de sistema baseado na tecnologia dos registros distribuídos (DLT – Distributed Ledger Technolagy) ou similar e que pode ser utilizada para realização de pagamentos ou com o propósito de investimento, conforme o art. 3º da lei 14.478/22.
Para efeitos da resolução, a tokenização de ativos5 é o processo de transformação da representação de um instrumento ou ativo qualquer em token no formato digital, com a realização de seu registro em sistema baseado na tecnologia de registros distribuídos ou similar, com a possível incorporação de outros elementos característicos de ativos virtuais.
A tokenização imobiliária abrange diversas características de negócio, funcionando mais como um gênero do que uma espécie propriamente dita, dado que há diferentes modelos de negócios associados bens imóveis.Exemplos incluem tokens para prestadores de serviços como construtores, arquitetos, engenheiros e corretores como remuneração do trabalho desenvolvido no imóvel; ou tokens de pagamento projetados para facilitar transações financeiras com referência no mercado imobiliário vinculado ao mercado secundário; ou tokens atrelados à locação de imóveis, que distribuem rendimentos proporcionais aos investidores; e tokens de pagamento vinculados a operações imobiliárias, como garantias em contratos de compra e venda, assim como outros modelos de negócios.
Embora à primeira vista a proposta de resolução exclua determinados casos de sua aplicabilidade, o debate pode permanecer e, eventualmente, se intensificar. Isso porque, caso um modelo de negócio específico não seja claramente identificado como não abrangido pela exclusão da resolução, poderá ser automaticamente enquadrado como ativo virtual regulado, gerando incertezas, sanções e ainda mais conflitos no âmbito da CVM.
A regulação dos ativos virtuais e o entendimento sobre valores mobiliários
No atual contexto, quando se fala de regulação dos mercados de valores, o objetivo não é eliminar os riscos inerentes aos investimentos, como aqueles relacionados ao desempenho do capital investido, que depende diretamente dos resultados financeiros das empresas.
A regulação busca, na verdade, mitigar os riscos decorrentes de falhas de mercado, prevenindo e reprimindo comportamentos ilícitos, obrigando os emissores a divulgar todas as informações relevantes e combatendo o uso de informações privilegiadas.6
O fortalecimento da regulação no mercado de capitais é hoje, mais essencial do que nunca, especialmente em um cenário de globalização e avanços tecnológicos que tornam a economia cada vez mais complexa. Ao estabelecer as “regras do jogo”, a regulação contribui para a estabilidade do mercado, tornando-o mais confiável e seguro para os investidores.
Essa segurança não apenas incentiva a participação nas operações de compra e venda de valores mobiliários, mas também reduz custos de transação e de acesso à informação, criando um ambiente mais eficiente. Como resultado, há um aumento no capital circulante, favorecendo o crescimento econômico das empresas que operam nesse mercado e, consequentemente, impulsionando o desenvolvimento econômico do país.
No Brasil, a delimitação legal sobre “valor imobiliário” experimentou significativo alargamento desde a promulgação da lei 3875/76, modificando de concepção nas últimas décadas, quando a lei 10.198/01 no seu art. 1º introduz no direito brasileiro uma definição abrangente, “títulos ou contratos de investimentos coletivos, os títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros.”
Aplicando-se oHowey Test7, devemos analisar os 4 requisitos para saber se o token deve ser considerado como um valor mobiliário. Os elementos são: 1) Oferta Publica; 2) Aquisição em pecúnia ou através qualquer bem com valor econômico; 3) Expectativa de Lucro; 4) o ganho econômico seja resultado de esforço de terceiro ou do investido.
No parecer de orientação 40/22, a CVM – Comissão de Valores Mobiliários discorreu um pouco mais sobre o requisito “esforço de empreendedor ou de terceiro”, que pode ser considerado presente quando, a título de exemplo, “a criação, aprimoramento, operação ou promoção do empreendimento dependam da atuação do promotor ou de terceiros”8
Dessa forma, podemos idealizar que os tokens lastreados em bens imóveis negociados publicamente, por meio da rede mundial de computadores, adquiridos em pecúnia com expectativa de lucro, em função de um ganho econômico fruto de esforço de empreendedor oudeterceiroé considerado como valor mobiliário.
O fato de a proposta de resolução excluir os bens imóveis objeto de processos de tokenização não afasta a natureza jurídica de ativo virtual e, possivelmente ser considerado como valor mobiliário caso possua os elementos do Howey Test.
Interpretação da CVM sobre a tokenização
Em 2022 diversos projetos ligados ao setor de tokens9 enfrentaram stop orders emitidos pela entidade reguladora, sob a alegação de serem confundidos com valores mobiliários que deveriam estar sob sua regulamentação e supervisão.
A ausência de uma regulamentação específica para o mercado de tokens tem dificultado sua expansão e crescimento, pois muitos projetos acabam sendo interrompidos ou barrados pela Comissão de Valores Mobiliários, criando incertezas e obstáculos para empreendedores e investidores do setor.
Após diversos casos e debates na entidade, a decisão de um token ser ou não um valor mobiliário acaba se tornando dividida. Enquanto alguns diretores entendem que esses ativos devem ser enquadrados como valores mobiliários, por exercer um papel central e preponderante para o sucesso do negócio e, consequentemente para a valorização do token, devendo submeter-se à regulamentação da CVM10; outros defendem que sua classificação deve considerar as características e funcionalidades específicas do token, respeitando a natureza inovadora do mercado e buscando evitar barreiras desnecessárias ao desenvolvimento tecnológico.11
Caso a caso a CVM vem interpretando os diversos modelos metodológicos que vem se aplicado no mercado, e rotineiramente necessita emitir circular a fim de trazer clareza12 de que determinadas modalidades de investimento em direitos creditórios podem se caracterizar como valores mobiliários.
O que se percebe é que a ausência de legislação específica gera insegurança jurídica, agravada pelo posicionamento da CVM de que a caracterização de um ativo como valor mobiliário não depende de sua manifestação prévia.13
Assim, enquanto não houver regulamentação clara para a tokenização de ativos, os riscos tanto para o adquirente, que pode investir sem acesso às informações exigidas em ofertas públicas, quanto para o emissor, que pode enfrentar sanções pela ausência de registro prévio na CVM permanecem.
Conclusão
Embora a consulta pública exclua, de forma imediata, os bens imóveis objeto de tokenização de sua aplicabilidade, percebe-se um indício de que a CVM reconhece a necessidade de regulamentações específicas para esses ativos no futuro.
Essa exclusão, ao invés de afastar a supervisão regulatória, destaca as particularidades jurídicas e econômicas inerentes à tokenização imobiliária, sinalizando um possível caminho para uma regulamentação progressiva e mais detalhada, que leve em conta as especificidades desse mercado emergente.
Essa atenção torna-se ainda mais relevante à medida que conceitos e diretrizes começam a ser delineados no mercado, com estruturações em fase inicial que podem moldar a regulamentação futura de ativos digitais. A tokenização de bens imóveis, assim como o uso de NFTs nesse contexto, encontra-se em um estágio embrionário, mas sua crescente relevância no mercado aponta para a necessidade de um acompanhamento mais próximo e eventual formalização normativa.
É fundamental monitorar as movimentações regulatórias, pois elas poderão impactar diretamente os modelos de negócios relacionados à tokenização. A ausência de regulamentação específica atualmente não significa que esses ativos estejam isentos de supervisão no longo prazo, mas sim que a CVM e outras entidades reguladoras reconhecem a complexidade do tema e a importância de abordagens que combinem inovação tecnológica, desenvolvimento e segurança jurídica para o mercado.
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1 Disponivel aqui.
2 “Virtual asset” as a digital representationofvaluethatcanbedigitallytradedortransferredandcanbeused for paymentorinvestmentpurposes. FATF – Financial Action Task Force. Guidance for a Risk-Based Approach to Virtual Assetsand Virtual Asset Service Providers. 2019. p. 13. – Disponivel aqui.
3 Disponivel aqui.
4 Art. 2º inciso II da Proposta de Resolução da Consulta Publica 109/2024 da CVM. Proposta de regulamentação da prestação de serviços de ativos virtuais (PSAVs)
5 Art. 2º inciso XX da Proposta de Resolução da Consulta Publica 109/2024 da CVM. Proposta de regulamentação da prestação de serviços de ativos virtuais (PSAVs)
6 JAKOBI, F.; RIBEIRO, G. A regulação do mercado de capitais no Brasil: perspectivas e desafios. 2014, p. 99.
7 Conheça mais sobre o Howey Test: Dispoível aqui.
8 COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS. Parecer de Orientação CVM 40, de 11 de outubro de 2022. Os CriptoAtivos e o Mercado de Valores Mobiliários. São Paulo, 2022, p. 09.
9 Disponível aqui.
10 Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Processo Administrativo CVM 19957.014289/2022-97. Disponível aqui. Acesso em: 15/11/2024
11 Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Parecer Técnico SSE 60/2023-CVM/SSE/GSEC-1. Processo Administrativo CVM 19957.014289/2022-97. Disponível aqui. Acesso em: 16/11/2024.
12 Disponivel aqui.
13 COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS. Ofício-Circular no 4/2023/CVM/SSE, de 04 de abril de 2023. Caracterização dos “tokens de recebíveis” ou “tokens de renda fixa” como valores mobiliários. São Paulo, 2023, p. 2.
Fonte: Migalhas
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