Nos últimos meses, os leitores desta coluna puderam acompanhar algumas das controvérsias relacionadas aos contratos de afretamento de embarcação, abrangendo, entre outros temas, a obtenção do Certificado de Autorização de Afretamento – CAA; o excesso de consumo de combustível pela embarcação afretada e o período de indisponibilidade da embarcação.
A série de artigos sobre Controvérsias em Contratos de Afretamento não estaria completa sem abordar outra questão que frequentemente emerge nos Tribunais: O repasse de multas impostas por terceiros à empresa fretadora da embarcação, em especial, as sanções pecuniárias aplicadas por autarquias e agências reguladoras. Essas multas, que podem atingir valores expressivos, são relativamente frequentes nos contratos de afretamento envolvendo atividades offshore.
Esse é o caso de multas impostas por entidades como a ANP, a Anvisa – Agência Nacional de Vigilância Sanitária, o Ibama – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis e a ANTAQ – Agência Nacional de Transportes Aquaviários. Essas penalidades, aplicadas com base em alegações de infrações às normas técnicas, ambientais ou de segurança, frequentemente ensejam controvérsias sobre os limites da alocação de responsabilidades previstas nos contratos de afretamento.
Em contratos complexos como esses, em que a responsabilidade pelas operações e pela manutenção da embarcação possui obrigações atribuídas contratualmente ora à afretadora, ora à fretadora, surgem dúvidas e questionamentos sobre qual das partes, ao fim e ao cabo, deve arcar com os custos resultantes de eventuais penalidades impostas por essas entidades.
Em situações como essas, a análise detalhada do contrato e das condições que levaram à infração se mostra essencial para a identificação da parte responsável. Primeiramente, é importante ter em mente que multas administrativas são, geralmente, associadas a irregularidades em aspectos técnicos e operacionais da embarcação ou ao descumprimento de obrigações regulatórias durante as operações de exploração offshore. Por exemplo, uma multa pode decorrer da falta de documentação obrigatória de segurança da embarcação ou por alguma falha no cumprimento de normas regulamentares.
É comum, nesse contexto, a prática da afretadora de repassar tal ônus financeiro à fretadora, desde que seja possível contratualmente imputar a multa a alguma falha ou descumprimento regulatório ou contratual desta última. Por outro lado, também se observa a postura da fretadora de argumentar que a multa decorre de questões operacionais ou decisões tomadas unilateralmente pela afretadora, ou, ainda, que o valor da multa tem caráter personalíssimo, devendo recair apenas sobre a afretadora. Esse impasse é amplamente observado em disputas judiciais e arbitrais envolvendo grandes players do setor marítimo e da indústria offshore.
A título de exemplo, confira-se, abaixo, julgado no qual, em sede de agravo, o TJ/RJ, embora mantendo a possibilidade de repasse para a afretadora da multa imposta que havia sido imposta à fretadora, entendeu que parte do valor da multa não poderia ser repassado. Em outras palavras, o repasse integral de multa aplicada (no caso em exame, pela ANP) não foi autorizado, em razão de circunstâncias específicas atribuídas à fretadora. Confira-se:
AGRAVO DE INSTRUMENTO INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DO CPC/73. AÇÃO CAUTELAR INOMINADA. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO. OPERAÇÃO DE PLATAFORMA DE EXPLORAÇÃO DE PETRÓLEO E GÁS. ACIDENTE OCORRIDO EM SONDA EXPLORATÓRIA QUE RESULTOU NO FALECIMENTO DE TÉCNICO OPERADOR. MULTA APLICADA PELA AGÊNCIA NACIONAL DO PETRÓLEO (ANP) À PETROBRAS, CUJO VALOR DE R$11.368.000,00 FOI REPASSADO À AUTORA, POR MEIO DE COMPENSAÇÃO, CONSOANTE CLÁUSULA CONTRATUAL. INDEFERIMENTO DA LIMINAR PELO JUÍZO A QUO. INCONFORMISMO DA AUTORA QUE SUSTENTA ILEGALIDADE DA REFERIDA COMPENSAÇÃO, PRETENDENDO QUE A RÉ SE ABSTENHA DE EFETUAR O REPASSE. DE REGRA, O TRIBUNAL NÃO ESTÁ AUTORIZADO A INTEFERIR NA FORMAÇÃO DA COGNIÇÃO DO JUIZ, A TEOR DA SÚMULA TJRJ 58. COM EFEITO, AS PROVAS DOS AUTOS DEMONSTRAM INEQUIVOCAMENTE QUE A MULTA APLICADA PELA ANP À PETROBRÁS FOI MAJORADA POR CARACTERÍSTICAS E SITUAÇÕES JURÍDICAS PRÓPRIAS DA PETROBRAS, TAIS COMO, A SUA CONDIÇÃO ECONÔMICA E SEUS ANTECEDENTES PERANTE A AGÊNCIA REGULATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE DE REPASSE INTEGRAL DE TAL VALOR À AGRAVANTE. PRESENÇA DE REQUISITOS PARA A CONCESSÃO DA MEDIDA LIMINAR – FUMUS BONI JURIS E PERICULUM IN MORA. DECISÃO SUJEITA À CLÁUSULA REBUS SIC STANTIBUS DE MODO QUE O JUIZ ESTÁ AUTORIZADO, A QUALQUER TEMPO, A MODIFICÁ-LA OU REVOGÁ-LA, CASO OS ELEMENTOS DOS AUTOS VENHAM A DIRECIONAR NESSE SENTIDO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO PARA DETERMINAR QUE A PETROBRAS DEPOSITE EM JUÍZO OS VALORES RELATIVOS À PRETENDIDA COMPENSAÇÃO. [grifo nosso]
(Processo 0060792-90.2015.8.19.0000 – AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). INÊS DA TRINDADE CHAVES DE MELO – Julgamento: 6/7/16 – TERCEIRA CÂMARA DE DIREITO PUBLICO (ANTIGA 6ª CÂMARA CÍVEL)
Como se verifica, no entendimento do Tribunal, a multa aplicada pela agência reguladora teria sido majorada em razão de características personalíssimas da afretadora, tais como a sua condição econômica e antecedentes perante a ANP. Com base nesse entendimento, o acórdão concluiu pela impossibilidade de repasse integral do valor da multa à fretadora, admitindo apenas o repasse do valor principal da multa sem as agravantes.
Também é interesse notar que alguns contratos de afretamento preveem que as multas administrativas podem ser objeto de contestação, mas que, até a resolução do litígio ou do processo administrativo correspondente, a responsabilidade inicial pelo pagamento é atribuída à parte que tenha descumprido suas obrigações. Apesar de parecer simples, essa definição de responsabilidade é frequentemente questionada, especialmente em casos em que as obrigações contratuais das partes se sobrepõem.
Um exemplo prático disso pode ser visto em situações em que ANP aplica penalidades relacionadas à operação da embarcação, como a realização de atividades fora dos limites estabelecidos no contrato de concessão ou a ausência de relatórios obrigatórios. Embora a fretadora seja responsável pela embarcação em si, as ordens para essas atividades partem da afretadora, trazendo dúvidas quanto a qual das partes deverá suportar o ônus da multa.
Nesse cenário, o litígio sobre o repasse de multas muitas vezes alcança níveis ainda mais elevados de complexidade quando estão em jogo valores significativos, que podem impactar diretamente a viabilidade econômica do contrato. Considerando que tais multas costumam ser repassadas pela afretadora à fretadora, descontando-se o valor dos recebíveis contratuais da fretadora, é comum o surgimento de uma questão que enseja o perigo da demora na solução da controvérsia.
No julgado acima citado, tal questão foi debatida tendo o Tribunal determinado o depósito dos valores relativos à pretendida compensação, cabendo se ponderar, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, se essa determinação terá sido suficiente, ou não, suficiente para resguardar a viabilidade econômica do contrato.
O repasse de multas importas por terceiros, como se nota, é um tema sensível no âmbito dos contratos de afretamento, refletindo a complexidade e os desafios inerentes às operações offshore no Brasil. Embora existam mecanismos para mitigar o impacto financeiro de tais penalidades, as dúvidas quanto às responsabilidades pelo ônus do pagamento da multa, a possibilidade de desconto parcial ou integral do seu valor, a necessidade de impugnação administrativa da multa, dentre outros aspectos, acabam gerando impasses e, por vezes, disputas judiciais e arbitrais complexas e relevantes entre as partes envolvidas.
Em conclusão, é importante que as partes contratantes invistam tempo e recursos em um acompanhamento diligente da execução do contrato e em um diálogo constante para minimizar os riscos de penalidades regulatórias. Além disso, a busca pela solução de disputas por meio da cooperação e da boa-fé contratual ainda se mostra o requisito mais eficaz e essencial para mitigar os impactos financeiros e operacionais dessas penalidades no setor marítimo.
Fonte: Migalhas
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