Resumo: O presente estudo visa a analisar a possibilidade jurídica da autocomposição entre a administração pública e o proprietário de imóvel com construção irregular, com escopo de suprir a falta de licença para construir, mediante contrapartidas do particular. Analisa-se, ainda, quais seriam as condições para a validade de tal espécie de compromisso administrativo, bem como os requisitos procedimentais.
Para fins de direito, entende-se por construção toda realização material e intencional do homem, visando a adaptar o imóvel às suas conveniências.1 Estão abrangidos pelo conceito tanto a edificação ou a reforma, como a demolição, o muramento, a escavação, o aterro, a pintura2 e demais trabalhos destinados a beneficiar, tapar, desobstruir, conservar ou embelezar o prédio.3
O direito de construir encontra fundamento no direito de propriedade, na medida em que das faculdades de usar, gozar e dispor da coisa (art. 1.228, CC)4, decorre o direito de transformá-la e de beneficiá-la com todas as obras que lhe favoreçam a utilização ou lhe aumentem o valor econômico. Estes acréscimos decorrentes de obras podem caracterizar benfeitorias5 ou acessões voluntárias,6 a depender das circunstâncias.
A liberdade de construir é a regra, limitando-se tal apenas pelas imposições do direito de vizinhança7 ou pelos regulamentos administrativos, conforme preceitua o art. 1.299 do CC.8 Para fins do presente assunto, interessa analisar, apenas, as restrições ao direito de construir decorrentes dos regulamentos administrativos.
Estes regulamentos administrativos limitadores do direito de construir decorrem, na feliz expressão de José Cretella Júnior, do poder de polícia das construções – decorrente do poder “geral” de polícia. Para o autor:
“(…) cabe à polícia de construções, na salvaguarda dos interesses coletivos, fiscalizar, dentro dos limites consignados nas leis, regulamentos e posturas, as construções sob o prisma da segurança, da higiene, das dimensões, da estética, a fim de que a infração de um não constitua perturbações maiores ou menores à coletividade”9
A classificação e estratificação dos prismas de proteção das regras de polícia das construções têm extrema relevância para a análise do cabimento, ou não, de acordos na esfera administrativa e em matéria de licença edificações irregulares, pois a inobservância do regulamento administrativo do direito de construir, que seja fundamentado em exigências de segurança ou higiene, não admitirá qualquer espécie de acordo, pois não se transige com a vida (nas hipóteses de normas de segurança) e nem com a saúde (na hipótese de normas de higiene).
Constituem, portanto, nestes dois casos acima citados, vícios insanáveis, sujeitando-se a obra à necessidade de adequação ou, no caso de impossibilidade, à medida extrema de demolição.
Por outro lado, a não observância de normas administrativas, derivadas do poder de polícia de construções, fundamentadas em exigências de dimensões prediais10 ou estética predial11, podem ser objeto de compromisso entre a administração pública e particulares, sobretudo quando o direito fundamental à moradia e à dignidade de grandes grupos de pessoas confrontar-se com o interesse coletivo ao ordenamento urbanístico e proteção cultural. Se o suprimento é possível em determinadas situações, com regras legais de suporte, entende-se que tais hipóteses constituem meras irregularidades e não vícios insanáveis.
Ainda a título de delimitação do que se está tratando nesta breve análise, para que não se alargue demasiadamente as hipóteses sugeridas como passíveis de acordo administrativo, ressalta-se que pelo conceito de “restrições administrativas ao direito de construir”, pode-se fazer referências tanto às chamadas limitações administrativas quanto às servidões administrativas e desapropriações.
No presente escrito, analisa-se apenas o acordo derivado da inobservância das normas representativas de limitações administrativas, notadamente daquelas derivadas das regras municipais de regulamentação edilícia12 (Códigos de Edificações; leis de uso e ocupação do solo; leis de zoneamento urbano; entre outros regulamentos administrativos) e do plano diretor ou plano de desenvolvimento integrado.
Sobre o assunto, historicamente, já se considerou como hipótese de vício insanável qualquer inobservância das regras edilícias constantes dos regulamentos administrativos, excluindo-se em absoluto este objeto dos possíveis acordos firmados entre particular e administração pública.
A legislação mais contemporânea parece quebrar este paradigma e seguir no caminho aqui por nós delimitado.
A título de exemplo, cite-se a LC 507, de 17/11/04, do município de Santos – Estado de São Paulo, que “autoriza a regularização de construções que especifica e dá outras providências”.
Em consonância com tudo aquilo que se sustentou acima, perceba-se que os elementos cujos vícios a referida lei municipal tratou como passíveis de suprimento em âmbito administrativo foram exatamente aqueles relativos às dimensões prediais e estética predial, permitindo-se o suprimento de irregularidades decorrentes da inobservância aos regulamentos administrativos mediante a oferta de contrapartidas financeiras pelo particular:
Art. 1º Fica o Poder Executivo autorizado a regularizar, excepcionalmente, as construções e acréscimos executados em desacordo com a LC 312, de 24/11/98, no que concerne a recuos mínimos, taxa de ocupação e índice de aproveitamento, mediante contrapartida financeira.
§ 1º O valor da contrapartida financeira exigida para a regularização da obra será equivalente a 10% (dez por cento) do valor venal da construção correspondente a cada área irregularmente excedente da edificação.
(…)
Art. 2º A regularização prevista no artigo anterior aplica-se somente às construções ou acréscimos para os quais exista processo de regularização na prefeitura, requerido pelo interessado anteriormente a data da publicação desta LC.
Tratou-se, naquela época, de medida política com vistas a permitir a regularização de imóveis em desconformidade com a lei de uso e ocupação de solo que seis anos antes havia sido publicada no referido município litorâneo.
A mesma norma acima citada permitiu a regularização de edificações ou reformas de bens tombados ou gravados de outros níveis de proteção cultural, desde que houvesse, à época, manifestação favorável do Conselho local de Defesa do Patrimônio Cultural.
Seja qual for a razão motivadora da flexibilização, fato é que, a partir da análise de tal norma transitória de flexibilização, é possível ilustrar a tese gizada nas linhas acima, segundo a qual as limitações administrativas ao direito de construir, fundadas em exigências de dimensões prediais e de estética predial, não ostentam caráter absoluto, admitindo-se, em determinadas hipóteses, flexibilizações fundamentadas também no interesse coletivo.
Ainda citando exemplos de normas de flexibilização, em âmbito nacional, a lei 13.465/17 disciplinou o procedimento e criou requisitos especiais para a regularização fundiária (“Reurb”) de núcleos urbanos informais existentes até 22/12/16, que sejam irreversíveis ou de difícil reversão.
Para além dos instrumentos insuficientes de regularização fundiária até então previstos nos arts. 38 a 40 da lei Federal 6.766/79, a referida lei 13.465/17 criou um conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes.
Nessa direção, em atenção aos interesses existenciais dos ocupantes de tais núcleos urbanos informais, a referida lei permitiu a flexibilização da fração mínima de áreas públicas dentro de loteamentos, bem como a fração mínima de parcelamento (art. 11, §1º, da lei 13.465/17); contém autorização para regularização de loteamento em área ambientalmente protegida, desde que atendidos alguns requisitos (art. 4º, §§5º e 6º, do decreto 9.310/18); e, em matéria jurídica, permite a unificação de imóveis de proprietários diferentes, permitiu registro da Reurb com atribuição dominial aos ocupantes independentemente da existência de ônus e indisponibilidades (art. 74 da lei 13.465/17); ingresso do direito possessório no fólio real (arts. 16 e 17 da lei 13.465/17); entre outras regras de flexibilização.
O mais interessante, na conceituação destes núcleos urbanos informais, é que a lei deixou espaço também para regularização da construção de edifícios irregulares, consoante recorda Ana Paula Almada:
“(…) Além disso, dentro do espectro do núcleo informal, também se incluem os condomínios e conjuntos habitacionais irregulares, inovação que torna a Reurb um processo realmente condizente com a realidade”13
Em outras palavras, a regularização das obras clandestinas (sem comunicação e aprovação municipal) ou irregulares (com aprovação municipal, mas em desatenção às regras administrativas ou cujo registro seja inviabilizado por alguma outra restrição) que não atentem contra a segurança e à higiene das pessoas, mais do que um poder, constitui um dever da administração pública, devendo a prefeitura envidar esforços, por algum dos meios disponíveis, para proceder a tal regularização.
Destas duas leis de flexibilização acima referidas pode-se inferir mais um requisito para a regularização de edificações irregulares: A situação consolidada da construção.
Este último requisito destina-se a impedir o manejo indevido dos instrumentos de regularização por aqueles que pretendam construir em inobservância das regras edilícias.
Deste modo, da análise do conteúdo normativo destas e de outras normas de flexibilização, podemos citar condições comuns para a regularização imobiliária de edificações constituídas com inobservância dos regulamentos administrativos: (i) situação urbana já consolidada e (ii) inobservância de limitação administrativa que diga respeito apenas às normas de dimensão predial ou estética, sem afronta às condições de segurança e higiene da edificação.
Assim, as mesmas bases teóricas que justificam as hipóteses excepcionais e transitórias de regularização contidas em lei (regularizações de modo amplo e geral), devem autorizar, também, que a administração proceda à regularização em determinados casos de modo individualizados, quando, a despeito da ausência do mecanismo político de regularização de modo amplo (leia-se, a lei geral e abstrata), o particular, por si ou por intermédio de associações de moradores ou cooperativas, procure a via administrativa e apresente ao ente municipal pleito de regularização de seu prédio individualizado.
Para tanto, a administração deve observar as diretrizes gerais da lei Federal 13.140/15, que autoriza a resolução administrativa de conflitos envolvendo a administração pública e particulares, mediante autocomposição e atribui ao ente público a competência para celebração do termo de ajustamento de conduta (art. 32, II e III, L. 13.140/15).
Seguindo a mesma diretriz, a lei Federal 13.655, do ano de 2018, incluiu na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro o art. 26, que assim prevê:
Art. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial. (Incluído pela lei 13.655, de 2018) (Regulamento)
Portanto, a ressalva quanto à possibilidade de negociação e obtenção de consenso em matéria de licenças administrativas evidencia a possibilidade de tal objeto dentro do contexto do compromisso firmado entre particular e administração pública.
A novel lei apenas aclara que a Administração Pública também pode celebrar o instrumento de compromisso, há muito tempo positivado no CC como instrumento de solução de litígios mediante a autocomposição (art. 851, CC).
Obviamente, este termo de compromisso firmado pela administração, conquanto sujeito ao regime jurídico de direito privado contratual, sofrerá influxos do direito público, consoante exigências contidas no art. 26, §1º, do decreto-lei 4.657/42, incluído por força da lei 13.655, de 2018, e outras contidas no art. 10 do decreto 9.830/19, que, embora aplicável apenas no âmbito Federal, pode servir de direção ao ente estadual ou municipal que não tenha, em sua legislação local, um decreto regulamentador do instrumento compromissório previsto agora na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
Destaca-se, ainda, que apesar de a lei 13.655, de 2018, não ter criado a figura do compromisso ou mesmo inaugurado a sua possibilidade de utilização pela administração pública, a referência a tal instrumento jurídico em uma norma geral sobre outras normas (“lex legum”) traçou a ideia de que se trata de um instituto geral do direito, fomentando o seu uso e afastando qualquer indagação sobre a sua validade jurídica.
Os instrumentos existem, sendo imperativo maior esforço das autoridades para que mais pessoas alcancem o acesso à regularidade registral, consoante destaca José Renato Nalini:
“A moradia é direito fundamental e impõe contínuo esforço dos agentes de autoridade para a facilitação do acesso à regularidade registral, pressuposto à fruição desse direito primário sem o qual não existe verdadeira dignidade humana”14
Uma advertência, no entanto, é necessária. A negociação a respeito de licenças administrativas versa sobre matéria indisponível, embora, nestes casos acima tratados (questões afetas à dimensão predial e estética predial), sejam passíveis de transação, mediante contrapartidas do particular.
Em razão da indisponibilidade das normas que preveem as limitações administrativas ao direito de construir, o instrumento que resulte do consenso obtido pelas partes deverá ser homologado em juízo, com oitiva do órgão do MP, sob pena de nulidade, atendendo-se, assim, à prescrição do art. 3º da L. 13.140/15.
1 MEIRELES. Heli Lopes. Direito de Construir. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1979, p. 13.
2 Anota-se que a caracterização de pinturas como formas de “construção” não impede que, em determinados casos, tal atividade seja dispensada de licenças ou alvarás, a critério do município onde serão realizadas as atividades. A título exemplificativo, cita-se a LC 1.025, de 16/1/19, do município de Santos (Código Municipal de edificações), no litoral de São Paulo, pela qual é dispensada da licença administrativa a atividade de pintura que não dependa de andaime ou tapume, bastando, nestes casos, apenas a comunicação prévia ao órgão competente, a teor do art. 31 e parágrafos da citada LC.
3 TJSP, RT 251/256, 256/275
4 Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
5 Quando um bem móvel adere ao bem imóvel sem constituir objeto autônomo e distinto, mas criando opção de recreio ou deleite ao bem principal; aumentando ou facilitando o uso; ou conservando ou evitando que se deteriore o bem, a teor do art. 96 do Código Civil.
6 Quando, a teor do art. 1.253 do Código Civil, esta aderência do bem móvel (e.g., cimento e tijolos) ao bem imóvel (e.g., ao terreno) constituam obras distintas e dignas de consideração e valoração autônoma
7 Estas limitações estão previstas nos artigos 1.277 e seguintes do Código Civil.
8 Art. 1.299. O proprietário pode levantar em seu terreno as construções que lhe aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos.
9 CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado de direito administrativo: poder de polícia e polícia. 2. ed. Rio de Janeiro, Forense: 2006, v. 5, p. 195
10 Imposições de zoneamento, recuo, afastamento, altura, entre outras.
11 Cite-se, por exemplo, as exigências de manutenção de estética de imóveis tombados ou com níveis de proteção diversos assegurados por leis locais de proteção do patrimônio histórico e cultural da região.
12 A expressão edilícia, conforme relembra Hely Lopes Meireles, “originou-se da atividade dos Edis romanos incumbidos da administração da cidade, e que através de edictus dispunham sobre a urbe e suas construções. Daí as derivações correntes em nossa língua: Edil (vereador); Edilidade (Câmara de vereadores); Edilício (relativa a edil ou edilidade). Regulamentação edilícia, atualmente, abrange todas as normas municipais de ordenamento urbano, provenham da câmara ou do prefeito” (MEIRELES. Heli Lopes. Direito de Construir. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1979, p. 103)
13 ALMADA. Ana Paula P. L. In: GENTIL, Alberto [org.]. Registros Públicos. Rio de Janeiro: Método, 2023, p. 848
14 NALINI, José Renato; LEVY, Wilson (coords.). Regularização fundiária. Rio de Janeiro: Forense, 2013. Prefácio.
15 ALMADA. Ana Paula P. L. In: GENTIL, Alberto [org.]. Registros Públicos. Rio de Janeiro: Método, 2023, p. 848
16 CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado de direito administrativo: poder de polícia e polícia. 2. ed. Rio de Janeiro, Forense: 2006, v. 5.
17 LOUREIRO, Francisco Eduardo. In: Peluso, Cezar [org.]. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Manole, 2017
18 MEIRELES, Heli Lopes. Direito de Construir. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1979.
19 NALINI, José Renato; LEVY, Wilson (coords.). Regularização fundiária. Rio de Janeiro: Forense, 2013.
20 ZANELLA, Di Pietro. 34. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.
Fonte: Migalhas
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