Sempre são lembrados aqueles casos com aderência à área jurídica, relatados por pessoas ou até mesmo pela própria imprensa que, mesmo com o passar do tempo, ficam marcados de forma indelével em nossas mentes e, quando os temas vêm à baila, sempre carregam novas interpretações em razão da dinâmica do Direito.
Aproveitando a cunha aberta, lembro – ainda quando exercia o cargo de promotor de Justiça no Estado de São Paulo – de ter lido um caso de adoção post mortem do adotado, que muito me sensibilizou, tanto pelas circunstâncias da narrativa, como, também, pela aplicação da lei por analogia para realizar a justiça mais adequada e recomendada. O tema da adoção sempre carrega interesse, tanto pela sua peculiaridade como pela sua complexidade. Isto porque, em razão do afeto, que é a essência motivadora nele contido, ultrapassa até os ditames da lei e alcança situações até então não previstas, mas que exigem uma definição jurídica.
Em rápido relato, como se tratava de um processo com tramitação em segredo de Justiça, poucas informações foram obtidas, mas suficientes para entender a intrincada questão. Uma menina foi abandonada pelos pais logo após o nascimento, em precário estado de saúde, pois era portadora de síndrome de Down, lesão neurológica, mosaicismo, hipotonia, sucção débil, cardiopatia congênita e síndrome de West. Todo este quadro desanimador era indicativo de que a criança seria abandonada à sua triste sorte e figuraria na escala daqueles que não são aquinhoados com direitos iguais, mesmo não sendo responsável pela sua situação.
Mas há pessoas dotadas de uma sensibilidade estremada, que se posicionam na escala superior de outras e que são detentoras do senso voltado para a prática do bem e vocação para a solidariedade. Assim é que uma pedagoga, solteira, candidatou-se à adoção e inicialmente pleiteou a guarda provisória, que lhe foi conferida. Quatro meses após, no entanto, ainda no curso do processo, a criança faleceu, mas não desencorajou a pretendente à adoção de levar adiante o pedido, que foi julgado procedente posteriormente.
No caso em questão, trata-se de adoção unilateral, prevista em lei. A legislação que trata da questão é o Estatuto da Criança e do Adolescente. A lei menorista, em diversas oportunidades, faz ver que toda criança ou adolescente deve ser criado ou educado no seio da família natural. A adoção, portanto, é uma medida excepcional.
Por outro lado, há o permissivo de adoção post mortem do interessado que falecer durante a tramitação do pedido, desde que comprovada a posse de estado de filho. Porém, com relação à adoção post mortem do adotado a mesma lei silencia a respeito. E até com certa razão, pois cessa o interesse do pedido em razão do falecimento daquele cuja adoção é pretendida, ainda mais sem qualquer reflexo patrimonial e direitos sucessórios. Afinal, mors omnia solvit (a morte apaga tudo), diziam os romanos.
Ora, não é preciso caminhar muito para se chegar à conclusão de que a pedagoga, pela sua corajosa conduta inicial, pretendia levar adiante sua pretensão. O que se leva em consideração nos casos de adoção é justamente o afeto, o pertencimento, o envolvimento emocional que impulsiona as pessoas que participam do relacionamento familiar afetivo. O tempo de convivência, por menor que seja, estabelece uma coexistência toda especial. Tamanha é sua força que se encarrega de romper todas as regras previamente estabelecidas. É o caso típico da menina Marcela, muito comentado pela imprensa da época, diagnosticada como anencéfala, que viveu durante um ano e oito meses, contrariando as previsões médicas. Este tempo de vida pode ser compatível com o de qualquer outra criança sem a malformação. Afinal, em um momento se vive uma vida, na fala de Al Pacino, no filme Perfume de Mulher.
A lei é um instrumento social de enorme valia. Justifica-se por si só, vez que dita as regras que devem ser observadas no relacionamento entre as pessoas, tudo visando a um convívio social harmônico. Porém, apesar de trazer uma regra mandamental, vem despojada de sentimento. A lei é ordem e uma boa lei é uma boa ordem, já sentenciava Aristóteles. É um corpo sem alma e cabe ao intérprete fazer o ajustamento adequado. Ela brota no mundo jurídico com a finalidade de atender determinada situação, mas nada impede que, dando a ela uma extensão mais dilatada, alcance outra situação que seja semelhante.
O Direito coloca à disposição do intérprete a analogia, que vem a ser a aplicação de uma determinada regra nos mesmos moldes de outra utilizada em caso semelhante, para fazer prevalecer a igualdade jurídica. Quer dizer, espécies semelhantes reguladas por normas semelhantes (analogia legis). “O manejo acertado da analogia, adverte Maximiliano, exige, da parte de quem a emprega, inteligência, discernimento, rigor de lógica; não comporta uma ação passiva, mecânica. O processo não é simples, destituído de perigos; facilmente conduz a erros deploráveis o aplicador descuidado”.1
A Justiça, desta forma, se apoia numa construção intelectual aliada a um sentimento que vem a ser a expressão dos princípios básicos que revelam as ações humanas altruístas, impulsionadas por sentimentos de afeto pelo próximo.
1 Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e a aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 172.
Fonte: Migalhas
Deixe um comentário