Governo do menor país do mundo se alinha com alguns dos maiores e regula inteligência artificial dentro do território e das zonas extraterritoriais.
Depois da União Europeia ter aprovado o regulamento de IA do bloco, em maio do ano passado, vários países passaram a desenvolver seus próprios regulamentos, a maioria inspirados ou semelhantes ao “Artificial Intelligence Act” da UE. Também o fez o Estado do Vaticano, em vigor a partir deste mês de janeiro, somando-se à lista que já conta com os Estados Unidos, China e Reino Unido.
O decreto da Pontifícia Comissão para o Estado da Cidade do Vaticano é composto por três capítulos e quinze artigos, em que se dividem disposições gerais, princípios aplicáveis a áreas específicas e disposições finais.
Capítulo I. Disposições gerais
O art. 1 define as finalidades e o âmbito de aplicação das diretrizes, determinando que os princípios estabelecidos buscam orientar a utilização da inteligência artificial de forma ética e transparente, em conformidade com a dignidade humana. O artigo especifica que as diretrizes se aplicam às atividades de pesquisa, desenvolvimento e implementação de sistemas e modelos de inteligência artificial realizadas no território do Vaticano, o que abrange organismos operacionais, científicos, órgãos judiciais e o pessoal administrativo, além de fornecedores e operadores econômicos.
O art. 2 apresenta definições-chave utilizadas no decreto. Define “inteligência artificial” como sistemas automatizados que processam dados, aprendem a partir deles, tomam decisões e executam tarefas tipicamente associadas à inteligência humana. Estabelece também o que constitui um “sistema de inteligência artificial”, “modelos de inteligência artificial”, “dados”, “dados biométricos” e “risco”, fixando, assim, os parâmetros técnicos e jurídicos para interpretação e aplicação das normas.
O art. 3 descreve os princípios fundamentais que devem nortear o uso da inteligência artificial no Vaticano. Exige conformidade com padrões éticos e legais, segurança, transparência e proporcionalidade nas ações. Os sistemas devem ser projetados e aplicados de forma a garantir a proteção dos dados pessoais, a segurança do Estado e a não discriminação. Institui a responsabilidade dos organismos operacionais, científicos e judiciais em monitorar os processos envolvendo inteligência artificial, para que os resultados obtidos sejam confiáveis e alinhados aos objetivos do decreto.
O art. 4 lista as práticas proibidas, quais sejam, o uso de sistemas que criem discriminação, manipulem pessoas ou grupos de forma subliminar, limitem o acesso de pessoas com deficiência ou violem a dignidade humana. Veda ainda o uso de sistemas que comprometam a segurança do Vaticano e incentivem condutas delituosas. O artigo assegura que a inteligência artificial não seja empregada para finalidades que contrariem as diretrizes estabelecidas no decreto.
Capítulo II. Princípios gerais por matéria
O art. 5 trata das normas relacionadas à informação e ao tratamento de dados. O uso de sistemas de inteligência artificial nesse contexto deve garantir a integridade das informações, assegurando que a circulação de dados não resulte em prejuízo à veracidade, liberdade de expressão, imparcialidade ou imagem do Vaticano. As disposições incluem a aplicação de linguagem clara e objetiva nas comunicações e a possibilidade de oposição por parte dos titulares em caso de tratamento inadequado dos dados pessoais. Também há previsões específicas para o uso de dados biométricos, que exigem supervisão criteriosa.
O art. 6 aborda a pesquisa científica e a saúde. O texto permite a utilização de inteligência artificial para aprimorar os serviços de saúde e a gestão sanitária, desde que sejam estabelecidos procedimentos que garantam a segurança e confiabilidade das ferramentas. Os pacientes devem ser devidamente informados sobre a aplicação de inteligência artificial nos serviços utilizados e as tecnologias empregadas – que devem passar por revisões periódicas – não podem interferir nas decisões tomadas por profissionais médicos.
O art. 7 regula o uso de inteligência artificial no campo do direito autoral. Obras geradas por sistemas inteligentes devem ser identificadas com o acrônimo “IA”. O Estado do Vaticano mantém direitos exclusivos sobre conteúdos produzidos com inteligência artificial dentro de seu território. Além disso, a utilização dessas criações não pode comprometer o prestígio ou a imagem do chefe de Estado ou do próprio Estado.
O art. 8 estabelece diretrizes para o uso de inteligência artificial na gestão dos bens culturais do Vaticano: Sistemas automatizados podem ser empregados na conservação, restauração e organização do patrimônio cultural, desde que não prejudiquem a integridade dos objetos nem conflitem com as normas técnicas de restauro. A exploração econômica de bens culturais por meio de inteligência artificial segue as regulamentações já existentes para proteção desse patrimônio.
O art. 9 dispõe sobre infraestrutura e serviços. A inteligência artificial pode ser aplicada em projetos de construção e manutenção para garantir maior eficiência e sustentabilidade. Com efeito, as decisões estratégicas e operacionais devem permanecer sob a responsabilidade dos gestores – humanos – designados e o uso de sistemas automatizados no tratamento de dados técnicos e operacionais deve observar as normas de segurança e confidencialidade.
O art. 10 regula o emprego da inteligência artificial em procedimentos administrativos. Sistemas automatizados podem ser utilizados para otimizar processos e reduzir o tempo de tramitação, mas as decisões finais continuam sob responsabilidade humana. Antes da implementação, deve-se realizar uma análise detalhada de impacto regulatório, e os efeitos dessas medidas são avaliados após seis meses.
O art. 11 define os parâmetros para o uso de inteligência artificial no ambiente de trabalho. A tecnologia pode ser utilizada em treinamentos e para melhorar as condições de segurança. Nos processos de seleção de pessoal, os sistemas devem operar de forma transparente e evitar discriminações de candidatos ou comprometer decisões humanas. A gestão administrativa e organizacional do trabalho continua sob controle humano, e o uso de dados trabalhistas por sistemas automatizados está sujeito às regulamentações vigentes.
O art. 12 limita o uso de inteligência artificial na atividade judicial às tarefas de organização, pesquisa jurisprudencial e doutrinária. O texto reforça que todas as decisões judiciais, interpretações legais e análises de provas são competências exclusivas dos magistrados, não podendo, de forma alguma, serem relegadas ao sistema automatizado.
O art. 13 estabelece que os princípios relacionados à segurança física e cibernética do Estado do Vaticano, incluindo o uso de inteligência artificial, serão detalhados em posteriores regulamentações específicas.
Capítulo III. Disposições finais
O art. 14 prevê a criação da Comissão sobre IA, composta por cinco membros nomeados pelo presidente do Governatorato, sob a presidência do secretário-geral. A comissão é formada por dois funcionários do Departamento Jurídico, dois da Direção de Telecomunicações e Sistemas Informáticos e um da Direção de Serviços de Segurança e Proteção Civil. A comissão tem a responsabilidade de elaborar os regulamentos complementares, emitir pareceres sobre propostas relacionadas à aplicação de sistemas de inteligência artificial no território do Vaticano, monitorar os riscos associados ao uso dessa tecnologia e apresentar relatórios semestrais avaliando o impacto da inteligência artificial no Estado e nas áreas previstas no Tratado de Latrão.
O art. 15 determina que, no prazo de doze meses a partir da entrada em vigor do decreto, sejam adotadas as leis e regulamentos necessários para assegurar a implementação plena das diretrizes estabelecidas, já que atualmente o decreto implementa apenas sob a forma de “guidelines”.
Fonte: Migalhas
Deixe um comentário