A decisão do STJ limita a competência do Juízo da recuperação à substituição de penhoras sobre bens de capital essenciais, excluindo valores.

A competência do Juízo da recuperação judicial para determinar a substituição de penhoras está restrita a bens de capital essenciais à atividade empresarial. O art. 6º, § 7º-B, estabelece que, em casos de constrição sobre bens de capital, cabe ao Juízo da recuperação a responsabilidade de determinar a substituição por outros ativos, mediante pedido de cooperação. Contudo, a delimitação da competência do Juízo da recuperação e a exclusão de certos bens, como créditos cedidos fiduciariamente, suscitam debates sobre os limites da atuação judicial em processos de recuperação, em caso de penhora de valores.

A recuperação judicial é um mecanismo jurídico fundamental para a preservação de empresas em dificuldades financeiras, permitindo que elas reestruturem suas dívidas e continuem suas atividades. A lei 11.101/05, que regula a recuperação judicial e a falência no Brasil, passou por significativas alterações com a promulgação da lei 14.112/20, que introduziu novos dispositivos e esclareceu a atuação dos juízos envolvidos. Um dos pontos relevantes dessa alteração é a competência do Juízo da recuperação judicial para determinar a substituição de penhoras que recaem sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial.

Recentemente, no julgamento do conflito de competência 196.553/PE, o STJ se debruçou sobre essa questão, estabelecendo que, quando a constrição recai sobre bens de capital, cabe ao Juízo da recuperação a responsabilidade de determinar a substituição por outros ativos, conforme previsto no art. 6º, § 7º-B, da lei 11.101/05. Essa decisão é crucial, pois visa garantir que a empresa em recuperação possa continuar suas operações, evitando a drástica redução de seu patrimônio e comprometendo o cumprimento de seu plano de recuperação.

O artigo 6º, § 7º-B, da lei 11.101/05, introduzido pela lei 14.112/20, estabelece que, em casos de execuções fiscais, a constrição sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial deve ser tratada pelo Juízo da recuperação. Essa norma é clara ao afirmar que, se a constrição recair sobre bens de capital, o Juízo da recuperação pode determinar a substituição por outros bens, mediante pedido de cooperação jurisdicional. Essa interpretação é respaldada pela jurisprudência do STJ, que tem se posicionado no sentido de que “bens de capital” referem-se a bens corpóreos, móveis ou imóveis, que são utilizados no processo produtivo da empresa (entre outros, o AgInt no CC 182.059/PE, relator ministro Marco Aurélio Bellizze, Segunda seção, julgado em 15/2/22, DJe de 21/2/22).

Contudo, ao tempo em que o conflito de competência 196.553/PE reafirma a importância da continuidade das atividades empresariais, reconhecendo que a penhora de bens essenciais pode inviabilizar a recuperação da empresa, a decisão pretendeu criar um critério objetivo sobre o que poderá ser considerado como “bem de capital” e, como consequência disso, limitar a competência do Juízo da recuperação judicial. A definição de “bens de capital”, conforme interpretado pelo STJ, refere-se a bens corpóreos, móveis ou imóveis, que não são perecíveis ou consumíveis e que são utilizados no processo produtivo da empresa. Essa conceituação é crucial, pois delimita a competência do Juízo da recuperação, que se restringe a bens que se enquadram nessa categoria. Assim, valores em dinheiro não são considerados bens de capital, o que impediria a atuação do Juízo da recuperação prevista no art. 6º, § 7º-B, da LREF para determinar a substituição de atos de constrição que recaem sobre esses valores.

A lei 11.101/05, ao excluir expressamente os créditos de titularidade de bens imóveis ou móveis cedidos fiduciariamente dos efeitos da recuperação judicial (art. 49, §3º), reforça a ideia de que apenas os bens de capital essenciais à atividade empresarial permanecem sob a posse da recuperanda durante o stay period. Portanto, a retenção de créditos cedidos fiduciariamente pelo Juízo recuperacional, sob a alegação de que tais bens são essenciais, não se sustenta, uma vez que a definição de “bens de capital” deve ser objetiva e não deve esvaziar a garantia fiduciária. A delimitação foi tida como essencial para garantir que a recuperação judicial não prejudique os direitos dos credores não concursais, a fim de manter um equilíbrio entre a proteção da empresa em dificuldades e a preservação dos interesses dos credores da recuperanda.

Em uma curta descrição, o critério de corte para a formação do conceito de “bem de capital” (e, diga-se de passagem, a delimitação da competência) foram:

Natureza dos bens: Os “bens de capital” são definidos como bens corpóreos, móveis ou imóveis, que são utilizados no processo produtivo da empresa e que não são perecíveis ou consumíveis. Por sua vez, os créditos cedidos fiduciariamente são bens incorpóreos e fungíveis, o que os exclui da definição de “bens de capital”;

Posse e utilização: Para que um bem seja classificado como “bem de capital”, ele deve estar na posse da empresa recuperanda e ser utilizado diretamente em seu processo produtivo. Os créditos cedidos fiduciariamente não estão na posse da empresa, pois foram transferidos ao credor fiduciário como garantia, o que significa que a empresa não pode utilizá-los para suas operações;

Esvaziamento da garantia fiduciária: Considerar os créditos cedidos fiduciariamente como “bens de capital” poderia esvaziar a garantia fiduciária. Isso porque, ao permitir que a empresa utilizasse esses créditos durante o período de recuperação, a restituição ao credor fiduciário ao final do stay period seria comprometida, desvirtuando a finalidade da garantia;

Proteção legal ao credor fiduciário: A legislação estabelece que os créditos cedidos fiduciariamente estão excluídos dos efeitos da recuperação judicial, garantindo que o credor fiduciário possa exercer seus direitos sobre esses créditos sem interferência do Juízo da recuperação. Isso reforça a ideia de que esses créditos não se enquadram na categoria de “bens de capital” que poderiam ser protegidos durante a recuperação.

Porém, há uma questão relevante no julgamento e que merece atenção, especialmente pelo alcance do que foi decidido (ratio decidendi). Para a fixação de um critério objetivo de “bem de capital”, o voto do ministro relator Ricardo Villas Bôas Cueva tomou como fundamento um acórdão que discutia, especificamente, créditos cedidos fiduciariamente (o REsp 1.758.746/GO, relator ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira turma, julgado em 25/9/18, DJe de 1/10/18). É notório o fato de que a construção argumentativa do voto do ministro relator tinha como contexto de justificação a natureza excepcional do crédito em relação aos efeitos do processo recuperacional (pautado naquele caso). No inteiro teor do acórdão esta distinção ficou silenciada. Ora, há uma diferença abissal entre os valores cedidos através de garantias fiduciárias (e que não estão em posse da recuperanda) e os valores que se encontram em posse da recuperanda (no caso em análise, penhoradas pelo fisco), não excepcionados pela regra do art. 49, §3º.

Já o voto-vista do ministro Marco Aurélio Belizze fez uma espécie de “terraplanagem argumentativa” e desconsiderou, completamente, o contexto da discussão que já havia sido inaugurada pelo STJ no julgamento de referência, tomado como parte do fundamento da decisão no voto do ministro relator Ricardo Villas Bôas Cueva (o REsp 1.758.746/GO). A conclusão do voto-vista foi, expressamente, a de que “pecúnia não se insere no conceito técnico-jurídico de ‘bem de capital’, não passível, por isso e nos termos da lei, de controle do Juízo recuperacional”. O “silêncio eloquente do julgador” deixa dúvida sobre o alcance do que fora decidido (se obiter dictum ou ratio decidendi) e, apesar da tentativa do estabelecimento de um critério formal, o acórdão é argumentativamente inconsistente, já que não se debruçou, de forma suficiente, sobre a generalidade pretendida (a formação de um critério), se considerado o ponto de partida estritamente particular do qual foi construído.

Ainda que o crédito fiscal não se submeta aos efeitos do art. 6º, por previsão expressa de seu §7º-B (“o disposto nos incisos I, II e III do caput deste artigo não se aplica às execuções fiscais”), bem como não se tratando de casos de cessão fiduciária de crédito, a decisão preocupa pela “eliminação compulsória” da competência do Juízo recuperacional para análise da essencialidade do “bem de capital” (ou, no caso do fisco, a sua substituição). Este ponto, inclusive, foi destaque no voto vencido do ministro Moura Ribeiro: “A essencialidade de bens ou valores deve ser avaliada pelo magistrado que conduz o procedimento, auxiliado pelo administrador judicial, caso a caso”. Conforme razões do voto vencido, “não é possível retirar do magistrado a análise da essencialidade dos bens porque se mostra temerário fixar uma regra geral para todos os casos, baseando-se no entendimento de que bem de capital seria apenas e tão-somente o bem corpóreo (móvel ou imóvel), utilizado no processo produtivo da empresa recuperanda”.

Bem ou mal, a questão que se coloca, daqui para diante, é que, imediatamente, está afastada a competência do Juízo da recuperação judicial para decidir sobre a penhora de valores quando se tratar de créditos extraconcursais. A partir da decisão do conflito de competência 196.553/PE, “valores em dinheiro não constituem bens de capital a inaugurar a competência do Juízo da recuperação prevista no art. 6º, § 7º-B, da LREF para determinar a substituição dos atos de constrição”.

Fonte: Migalhas

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