O adiantamento da herança. Valores recebidos. Dever de levar a juízo a importância atualizada até a data da abertura da sucessão. Promoção da igualdade dos quinhões, sob pena de sonegação

Analisa-se no presente artigo o adiantamento da herança em face de quantia recebida por herdeiro mediante cheque, transferência bancária e outras formas de recebimento de valores, bem como o dever de levar a juízo a importância recebida de forma atualizada até a data da abertura da sucessão para a promoção da igualdade dos quinhões, sob pena de sonegação.

A colação na sucessão legítima constitui um relevante instituto do Direito das Sucessões, cujo escopo primordial reside na promoção da igualdade entre os herdeiros necessários, notadamente os descendentes, no momento da partilha dos bens deixados pelo de cujus.

Trata-se do meio pelo qual os herdeiros descendentes restituem aquilo que receberam em vida pelo “de cujus”.

Conforme a definição clássica de Itabaiana de Oliveira, citada por Euclides de Oliveira, a colação é o “ato pelo qual os herdeiros descendentes, concorrendo à sucessão do ascendente comum, são obrigados a conferir, sob pena de sonegação, as doações e os dotes que dele em vida receberam, a fim de serem igualadas as respectivas legítimas”.

Este mecanismo legal, disciplinado nos arts. 2002 a 2012 do Código Civil e nos arts. 639 a 641 do CPC, encontra seu fundamento na presunção de que as liberalidades feitas em vida pelo ascendente aos seus descendentes configuram, em regra, um adiantamento da legítima, e não uma dispensa da colação ou uma doação da parte disponível, salvo expressa manifestação em contrário do doador, que deve constar do testamento ou do próprio título da liberalidade, conforme preceitua o artigo 2006 do Código Civil.

A igualdade dos quinhões hereditários é um princípio basilar, como bem analisa Caio Mario da Silva Pereira, ao explicar que “quando o ascendente beneficia um descendente, seja com uma doação, seja com a constituição de um dote, seja com a provisão de fundos com que pagar suas dívidas, estará rompendo aquela par conditio, e desfalcando o monte em detrimento dos demais, mesmo que não haja ultrapassado a metade disponível aos herdeiros. Presume-se que a liberalidade teve caráter de antecipação de seu quinhão, salvo declaração expressa em contrário, da parte do doador”.

A obrigação de colacionar surge, portanto, sempre que um herdeiro necessário descendente recebe doação ou dote do ascendente comum, visando recompor o monte hereditário para fins de cálculo e igualização das legítimas. Esta obrigação se estende a quaisquer bens ou valores recebidos que configurem uma liberalidade, independentemente da forma como foram transmitidos.

No contexto das relações patrimoniais contemporâneas, é comum que tais liberalidades ocorram mediante a entrega de quantias em dinheiro, seja por meio dos clássicos cheques ou transferências bancárias. Tais operações financeiras, quando desprovidas de causa onerosa e configurando verdadeiro adiantamento da legítima, devem ser trazidas à colação pelo herdeiro beneficiado no processo de inventário ou arrolamento, sob pena de caracterização de sonegação de bens.

Questão relevante que se apresenta, ocorre especialmente quando a liberalidade consiste em quantias monetárias recebidas em momentos distintos ao longo da vida do de cujus, refere-se ao valor a ser conferido na colação.

O CPC, em seu art. 639, parágrafo único, estabelece que “Os bens que devem ser conferidos na partilha, assim como as acessões e as benfeitorias que o donatário fez, calcular-se-ão pelo valor que tiverem ao tempo da abertura da sucessão”.

Citado comando, em consonância com o art. 1014, parágrafo único, do CPC/1973, que possuía redação idêntica, determina que a avaliação dos bens a serem colacionados deve considerar o seu valor na data do falecimento do autor da herança, o que também guarda sintonia com o enunciado 644 da VIII Jornada de direito civil, que assim prescreve:

Enunciado 644

Os arts. 2003 e 2004 do Código Civil e o art. 639 do CPC devem ser interpretados de modo a garantir a igualdade das legitimas e a coerência do ordenamento. O bem doado, em adiantamento de legítima, será colacionado de acordo com seu valor atual na data da abertura da sucessão, se ainda integrar o patrimônio do donatário. Se o donatário já não possuir o bem doado, este será colacionado pelo valor do tempo de sua alienação, atualizado monetariamente.

O STJ, ao julgar o recurso especial 1.166.568-SP em 12/12/17 decidiu que tendo sido aberta a sucessão na vigência do Código Civil de 2002, deve-se observar o critério estabelecido no art. 2004 do referido diploma, que modificou o art. 1014, parágrafo único, do CPC de 1973, pois a contradição presente nos diplomas legais, quanto ao valor dos bens doados a serem trazidos à colação, deve ser solucionada com observância do princípio de direito intertemporal tempus regit actum e nesse caso, o valor de colação dos bens deverá ser aquele atribuído ao tempo da liberalidade, corrigido monetariamente até a data da abertura da sucessão.

No caso de quantias em dinheiro, o valor recebido pelo herdeiro em vida deve ser monetariamente corrigido desde a data do recebimento até a data da abertura da sucessão, a fim de preservar o seu poder de compra e garantir a efetiva igualdade entre os quinhões hereditários, isso porque ignorar a correção monetária implicaria em beneficiar o herdeiro donatário em detrimento dos demais, pois o valor nominal recebido em data pretérita teria um poder aquisitivo significativamente maior do que o mesmo valor nominal na data do óbito, especialmente em períodos de inflação.

Sobre a atualização monetária, destaca-se a lição de Caio Mario da Silva Pereira que assim leciona:

“Determinando que se apure o valor que os bens trazidos à colação tinham “ao tempo da liberalidade” (art. 2004, § 1º), o Código, todavia, não deve ser interpretado no sentido de que prevaleça o valor nominal ou histórico, da doação. A avaliação, nesse caso, é “retrospectiva”, mas encontrado aquele valor, procede-se à sua atualização monetária, sem a qual será impossível compará-lo aos dos demais bens, avaliados no curso do inventário, e, em consequência, repartir igualitariamente o patrimônio hereditário.” (In Instituições de Direito Civil, Vol. VI, 21ª ed., Ed. Forense, 2014, p. 386).

Com a mesma linha de entendimento, a jurisprudência do TJ/SP no julgamento do agravo de instrumento 2192746-31.2018.8.26.0000 decidiu que os valores e quantias recebidas em cheque pelo herdeiro devem ser trazidos à colação, com a devida correção monetária até a data da abertura da sucessão, nos exatos termos do art. 639, parágrafo único, do CPC. No mesmo julgado, restou assentado que o valor colacionado poderá ser deduzido do quinhão hereditário a ser recebido pelo herdeiro beneficiado, promovendo assim a equalização das legítimas.

Em outro caso levado à Corte Bandeirante, agravo de instrumento 2275016-44.2020.8.26.0000, ao tratar da conferência de bens na partilha, reafirmou que tanto os bens em si quanto as acessões e benfeitorias realizadas pelo donatário devem ser calculados pelo valor que possuírem ao tempo da abertura da sucessão.

Referidos posicionamentos guardam consonância e coerência com o enunciado 119 da Jornada de Direito Civil, que busca harmonizar a aplicação do art. 2004 do Código Civil com o princípio da vedação ao enriquecimento sem causa e a igualdade das legítimas.

O enunciado dispõe que, para evitar o enriquecimento sem causa, a colação será efetuada com base no valor da época da doação, nos termos do caput do art. 2004, exclusivamente na hipótese em que o bem doado não mais pertença ao patrimônio do donatário. Contudo, se o bem ainda integrar seu patrimônio, a colação se fará com base no valor do bem na época da abertura da sucessão, nos termos do art. 639 do CPC/15, de modo a preservar a quantia que efetivamente integrará a legítima quando esta se constituiu, ou seja, na data do óbito.

Esta interpretação sistemática do art. 2004 e seus parágrafos, juntamente com os arts. 1832 e 884 do Código Civil, visa garantir que a partilha reflita a realidade patrimonial na data em que a herança se torna disponível aos herdeiros.

Embora o Enunciado trate de bens imóveis ou móveis que ainda integrem o patrimônio do donatário, a ratio decidendi subjacente – a preservação do valor real para fins de igualização das legítimas na data do óbito – aplica-se perfeitamente às quantias em dinheiro (cheques, aluguéis, transferências bancárias etc), cujo valor nominal se deprecia com o tempo, exigindo correção monetária para manter seu poder aquisitivo.

Em reforço a tal premissa, a necessidade de colacionar o valor corrigido até a data da abertura da sucessão foi também analisada e confirmada pelo TJ/SP no julgamento do agravo de instrumento 2128467-36.2018.8.26.0000, cuja ementa se destaca a seguir:

INVENTÁRIO E PARTILHA. LEVANTAMENTO DE VALORES. Insurgência dos herdeiros agravantes contra decisão que determinou o cálculo conforme o tempo de abertura da sucessão. Decisão mantida. Aplicação do art. 693 do CPC, que prevê que o valor dos bens trazidos à colação devem ser calculados com base na data da abertura da sucessão. Solução, ainda que considerada a aplicação das disposições do Código Civil, que não seria diversa. Enunciado 119 do CJF. Aplicação do art. 2.004 do CC somente às hipóteses em que o bem doado não mais integre o patrimônio do donatário. Imóveis, no caso em tela, que ainda pertencem aos herdeiros agravantes. Entendimento que privilegia a igualização das legítimas, evitando o enriquecimento sem causa dos donatários. Agravo desprovido. (TJ/SP; Agravo de Instrumento 2128467-36.2018.8.26.0000; Relator (a): Carlos Alberto de Salles; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Foro de Jacareí – 2ª Vara de Família e Sucessões; Data do Julgamento: 16/8/18; Data de Registro: 16/8/18).

Extrai-se, portanto, do ordenamento jurídico que a realização do cálculo do valor dos bens trazidos à colação com base na data da abertura da sucessão reforça a interpretação de que o objetivo da colação é garantir a igualdade real entre os herdeiros no momento da partilha, evitando que a defasagem monetária beneficie indevidamente aquele que recebeu a liberalidade em vida.

Em suma, a colação de quantias recebidas por herdeiro descendente mediante cheque ou transferência bancária ou ainda outras formas, configurando adiantamento da legítima, é um dever legal imposto pela necessidade de igualar os quinhões hereditários.

A quantia a ser trazida à colação não é o valor nominal recebido em vida, mas sim este valor devidamente corrigido monetariamente desde a data do recebimento até a data da abertura da sucessão, conforme determina o art. 639, parágrafo único, do CPC, entendimento este corroborado pela jurisprudência do STJ, do TJ/SP e no enunciado 119 da Jornada de Direito Civil, que busca evitar o enriquecimento sem causa e garantir que a partilha reflita o valor real dos bens e valores na data em que a herança se consolida.

Portanto, o herdeiro descendente que recebeu quantia em vida do ascendente, com ressalva das exceções legais, deve ficar atento com o dever de colacionar o valor corrigido, sob pena de configurar sonegação de bens e enriquecimento sem causa, com as consequências legais daí decorrentes, reforçando a importância da transparência e da correta aplicação das normas sucessórias para a justa distribuição do patrimônio deixado pelo de cujus.

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Conselho da Justiça Federal. VIII Jornada de Direito Civil. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/1183. Acesso em: 28.abr.2025.

Conselho da Justiça Federal. I Jornada de Direito Civil. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/762#:~:text=Para%20evitar%20o%20enriquecimento%20sem,perten%C3%A7a%20ao%20patrim%C3%B4nio%20do%20donat%C3%A1rio. Acesso em: 28.abr.2025.

BRASIL. Agravo de Instrumento nº 2192746-31.2018.8.26.0000. Tribunal de Justiça de São Paulo. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cposg/search.do?conversationId=&paginaConsulta=0&cbPesquisa=NUMPROC&numeroDigitoAnoUnificado=2192746-31.2018&foroNumeroUnificado=0000&dePesquisaNuUnificado=2192746-31.2018.8.26.0000&dePesquisaNuUnificado=UNIFICADO&dePesquisa=&tipoNuProcesso=UNIFICADO. Acesso em: 30. abr. 2025.

BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 29. abr.2025.

BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 17 mar. 2015. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 29 abr. 2025.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.166.568 – SP. Relator: MINISTRO LÁZARO GUIMARÃES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 5ª REGIÃO). Julgamento: 12/12/2017. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=%28RESP.clas.+e+%40num%3D%221166568%22%29+ou+%28RESP+adj+%221166568%22%29.suce. Acesso em: 28.abr.2025.

ITABAIANA DE OLIVEIRA, apud OLIVEIRA, Euclides de. Inventários e Partilhas. 16. ed. São Paulo: Livraria e Editora Universitária de Direito, 2003, p. 375.

PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. 21. ed. Vol. VI. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2014, p.386.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: direito das sucessões. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 404.

Fonte: Migalhas

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