A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado recebeu, nesta semana, especialistas em direito tributário para discutir o Projeto de Lei Complementar (PLP) 108/2024, que integra a segunda fase da reforma tributária. O foco das críticas foi a mudança no critério de cálculo do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), que passaria a ser feito com base em estimativas da prefeitura, e não no valor da transação declarado pelo contribuinte.

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Essa alteração, segundo juristas, fere decisões anteriores do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e pode provocar uma onda de ações judiciais em todo o país, além de aumentar a carga tributária sobre transações imobiliárias.

Valor estimado pela prefeitura pode gerar distorções

Projeto quer basear ITBI no valor venal do imóvel

O texto do PLP 108/2024 propõe que o ITBI seja calculado a partir do chamado valor venal de referência, que é uma estimativa do valor de mercado do imóvel feita pelo município. Esse valor seria obtido com base em dados de mercado, registros cartorários e padrões definidos por técnicos da prefeitura.

Contudo, críticos alertam que esse tipo de avaliação ignora as peculiaridades de cada negociação imobiliária, como urgência na venda, estado do imóvel, localização específica e condições de pagamento.

Avaliação subjetiva e falta de transparência

Para o advogado tributarista Breno Vasconcelos, a proposta subverte a lógica legal ao transferir ao contribuinte o ônus de contestar um valor arbitrado pelo município. “O poder público é incapaz de captar todas as variáveis que determinam o valor real de um imóvel. Se o contribuinte informa um valor, cabe ao município provar o contrário — não o inverso”, afirmou.

Ele também criticou o impacto potencial da medida sobre a arrecadação: “Ao estimar o valor antes mesmo da concretização da venda, a tendência é um aumento injustificado de receita pública”.

Proposta pode gerar aumento da judicialização

CBIC aponta risco de insegurança jurídica

O representante da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), Ricardo Lacaz Martins, alertou que a estimativa da prefeitura como base de cálculo do ITBI contraria decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e aumentaria a insegurança jurídica.

“A proposta vai na contramão de decisões do STF e tende a provocar uma avalanche de judicializações, minando a previsibilidade do mercado. Além disso, essa medida representa, na prática, um aumento da carga tributária”, declarou Martins.

Oposição parlamentar: senadores se mostram contrários

Izalci Lucas promete emendas ao projeto

O senador Izalci Lucas (PL-DF) foi um dos parlamentares que se posicionaram contra o texto atual. Ele afirmou que o projeto parece ter sido elaborado sem considerar a realidade prática das transações imobiliárias. “A impressão é que não ouviram quem está na ponta. Pretendo apresentar emendas para corrigir esses pontos críticos”, disse o senador durante a audiência pública na CCJ.

Especialistas apontam falhas técnicas e legais

Mudança na etapa de cobrança do ITBI preocupa juristas

Outro ponto polêmico do PLP 108/2024 é a proposta de permitir a cobrança com desconto do ITBI já na fase de escrituração do imóvel — o momento em que a escritura pública é lavrada em cartório de notas. Tradicionalmente, esse imposto é pago na fase de registro do imóvel, no cartório de registro de imóveis, que concretiza a transferência da propriedade.

A advogada Fernanda Foizer Silva Furiati lembra que esse tema já é objeto de disputa no Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2018. “O ideal seria o Legislativo pacificar essa questão e encerrar o contencioso”, opinou.

Possíveis brechas e estímulo à informalidade

O auditor fiscal Alberto Macedo, do município de São Paulo, alertou para o risco de estimular a informalidade caso haja diferença nas alíquotas entre a escritura e o registro. Segundo ele, o registro de imóveis já sofre com atrasos e omissões.

“Se a escritura tiver alíquota menor que o registro, será mais vantajoso não registrar o imóvel. Isso compromete o controle público e estimula a informalidade. O texto precisa deixar claro que a cobrança deve ocorrer após a efetiva transmissão do bem”, explicou Macedo.

Decisão do STJ estabelece diretriz contrária à proposta

Jurisprudência atual favorece o contribuinte

Em 2022, o STJ decidiu que o valor do ITBI deve ser baseado no valor real da transação, conforme declarado pelo contribuinte, e não no valor venal estimado. A decisão considerou que a administração pública não pode presumir um valor de mercado sem provas concretas de subfaturamento.

A proposta do PLP 108/2024 ignora essa jurisprudência e, segundo especialistas, cria um novo contencioso fiscal que poderá se arrastar por anos na Justiça brasileira.

Impacto nos tribunais: dados mostram lentidão processual

Justiça estadual concentra 86% dos casos de tributos

Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) indicam que a maioria das disputas sobre tributos como o ITBI está concentrada nas Justiças estaduais. Em 2022, 86% das ações judiciais sobre tributos tramitavam nesse nível.

Mais alarmante: apenas 10 em cada 100 processos de execução fiscal foram concluídos em 2021. Com a nova sistemática, especialistas preveem um aumento vertiginoso de processos e um sistema ainda mais sobrecarregado.

Conclusão: reforma pode agravar conflitos tributários

A proposta de alteração do cálculo do ITBI contida no PLP 108/2024 é vista com ceticismo por especialistas e parlamentares. A substituição do valor declarado na compra pelo valor venal estimado pelas prefeituras representa, para muitos, um retrocesso tributário, que desrespeita jurisprudência consolidada, amplia a insegurança jurídica e aumenta o risco de judicialização em massa.

A reforma tributária, que deveria simplificar e tornar mais justa a arrecadação, pode acabar gerando exatamente o oposto caso essa medida não seja revista. O momento atual exige sensibilidade técnica, diálogo com os setores envolvidos e, acima de tudo, respeito aos princípios constitucionais já afirmados pelos tribunais superiores.

Fonte: Seu Crédito Digital

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