A usucapião e a adjudicação extrajudicial modernizam a regularização imobiliária e abrem espaço para a escolha estratégica do interessado

Introdução

O crescente movimento de desjudicialização de procedimentos no ordenamento jurídico brasileiro tem ensejado significativas transformações na forma de regularização dominial de imóveis. Entre as inovações que se consolidaram nesse cenário, destacam-se a usucapião extrajudicial, instituída pela lei 13.105/15, no seu art. 1.071, e regulamentada pelos provimentos CNJ 65/17 e 121/21, e a adjudicação compulsória extrajudicial, introduzida pela lei 14.382/22 e regulamentada pelo provimento CNJ 150/23, todos esses provimentos foram incorporados posteriormente ao provimento CNJ 149, que instituiu o Código Nacional de Normas – Foro Extrajudicial – da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Corregedoria.

Com efeito, as duas vias conferem ao interessado a possibilidade de alcançar a titulação imobiliária por meio de procedimento célere, direto e menos oneroso que o processo judicial.

A despeito de partirem de pressupostos jurídicos distintos – sendo a usucapião modalidade de aquisição originária da propriedade e a adjudicação compulsória, forma de aquisição derivada -, as duas figuras têm se apresentado, na prática, como alternativas funcionais à regularização imobiliária. Nesse contexto, surge uma indagação relevante, ainda pouco enfrentada pela doutrina e pela jurisprudência: poderia o interessado optar livremente entre um e outro instituto, à luz de critérios de conveniência ou estratégia jurídica, quando ambos se mostram viáveis?

O presente artigo busca refletir sobre a existência – ou não – de um verdadeiro direito de escolha por parte do requerente no âmbito dos procedimentos extrajudiciais de regularização imobiliária.

Características e diferenças de cada instituto

A usucapião e a adjudicação compulsória extrajudiciais se caracterizam como mecanismos facultativos de regularização imobiliária, inseridos no movimento contemporâneo conhecido por desjudicialização – também denominado de compartilhamento da Justiça -, o qual tem por escopo transferir determinados procedimentos, outrora de competência exclusiva do Poder Judiciário, para a via extrajudicial, promovendo maior celeridade, eficiência e desoneração do aparato judicial.

Ressalte-se, contudo, que esses instrumentos não devem ser manejados como meio de subversão do sistema notarial, registral ou tributário, sob pena de desvirtuamento de sua finalidade legítima (Art. 410 § 2º, do provimento CNJ 149/23) e deverão, obrigatoriamente, ser instruídos por ata notarial lavrada por Tabelião de Notas. (Art. 401 c/c Art. 402 e Art. 440-F do referido provimento).

Ademais, os dois institutos atendem aos mandamentos constitucionais consagrados pela EC 26/00, a qual elevou o direito à moradia à categoria de direito social, e pela EC 45/04, que, ao instituir a reforma do Poder Judiciário, introduziu o inciso LXXVIII ao art. 5º da CF/88, assegurando a todos a razoável duração do processo e os meios que garantam a sua celeridade.

A usucapião, instituto de matriz romano-germânica e previsto nas Ordenações Filipinas sob as formas de prescrição aquisitiva e extintiva, foi incorporada ao ordenamento brasileiro pelo CC de 1916 e reafirmada pelo CC/02, tendo por finalidade assegurar segurança jurídica a situações de fato consolidadas pela posse contínua, mansa e pacífica, diante da inércia do titular do domínio. Trata-se, reitere-se, de forma de aquisição originária da propriedade, aplicável a bens móveis e imóveis, sem incidência de imposto de transmissão; contudo, o reconhecimento extrajudicial limita-se atualmente aos bens imóveis, uma vez que inexiste autorização legal para o seu processamento extrajudicial no âmbito de outros órgãos públicos e demais entidades.

Por sua vez, a adjudicação compulsória teve origem no ordenamento jurídico brasileiro no ano de 1937, com o decreto-lei 58, editado durante o governo de Getúlio Vargas. O referido diploma teve por objetivo coibir práticas abusivas de loteadores e incorporadores, que se valendo da cláusula de arrependimento, prevista no art. 1.088 do CC de 1916, desfaziam unilateralmente os negócios jurídicos. O decreto-lei 58/1937 criou no sistema jurídico brasileiro a figura do compromisso de compra e venda (contrato preliminar impróprio) e a adjudicação compulsória, como forma de proteger o promissário comprador.

Assinale-se, mais uma vez, que a adjudicação compulsória configura modalidade de aquisição derivada da propriedade, razão pela qual atrai a incidência do respectivo tributo. Embora a lei 14.382/22 estabeleça, como requisito para o procedimento, a comprovação do recolhimento do imposto devido, o provimento 149/23 do CNJ atenuou essa exigência, admitindo, nos termos do art. 440-AL, que o pagamento do imposto seja realizado em momento posterior, desde que anteceda o registro, na hipótese de deferimento do pedido de adjudicação compulsória pela via extrajudicial.

Com o advento do CPC/15, instituiu-se a possibilidade de requerimento da usucapião diretamente no âmbito do registro de imóveis, inovação que foi acompanhada da introdução do art. 216-A na lei de registros públicos (lei 6.015/1973), viabilizando, assim, a sua tramitação extrajudicial.

Somente em 2022, com a promulgação da lei 14.382, é que se passou a admitir a via extrajudicial para a adjudicação compulsória, por meio da inserção do art. 216-B na lei de registros públicos.

Tanto a usucapião, quanto à adjudicação compulsória, em sua forma extrajudicial, foram objeto de regulamentação pelo CNJ. A usucapião foi disciplinada pelos provimentos 65/17 e 121/21, ao passo que a adjudicação compulsória foi normatizada pelo provimento 150.

Os provimentos acima mencionados, em harmonia com a resolução CNJ 35, conferem maior flexibilidade interpretativa à norma legal, objetivando a sua efetiva aplicação. Nesse mesmo sentido, dispositivos da lei de registros públicos (§§ 15 e 17 do art. 176) e do provimento CNJ 149/23 (§ 2º do art. 440-E, § 1º, do art. 440-AF) outorgam aos registradores imobiliários e tabeliães de notas maior autonomia na análise dos requisitos de especialidade, com vistas a viabilizar a regularização fundiária e a contribuir para a diminuição da judicialização.

Possibilidade de o interessado optar entre a usucapião e a adjudicação compulsória extrajudicial

No acórdão exarado no processo 0101669-64.2018.8.19.0001, de 08.11.2018, abaixo em análise, o TJ/RJ afirma o entendimento de que o interessado pode validamente optar entre as vias da usucapião extrajudicial e da adjudicação compulsória, não cabendo ao registrador indeferir o pedido de reconhecimento da usucapião com base apenas na existência de alternativa jurídica disponível.

Então, confira-se:

“EMENTA:

APELAÇÃO. DÚVIDA REGISTRAL. USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL. EXIGÊNCIAS: NOTIFICAÇÃO DOS ENTES PÚBLICOS, PUBLICAÇÃO DE EDITAL E JUSTIFICATIVA À NÃO ESCRITURAÇÃO CORRETA DAS TRANSAÇÕES E AO NÃO AJUIZAMENTO DE ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA. ART. 216-A, LEI 6.015/73. PROVIMENTO CNJ 65/2017. EXEGESE. PROCEDÊNCIA PARCIAL DA DÚVIDA.CONFIRMAÇÃO DA SENTENÇA.

(….)

II) Espécie em que, porém, o Oficial rejeitou, com espeque no art. 13, § 2º, do Provimento CNJ 65/2017, a justificação da interessada pela opção da via da usucapião extrajudicial em detrimento da adjudicação compulsória.

III) Com efeito, “em qualquer dos casos, deverá ser justificado o óbice à correta escrituração das transações para evitar o uso da usucapião como meio de burla dos requisitos legais do sistema notarial e registral e da tributação dos impostos de transmissão incidentes sobre os negócios imobiliários, devendo registrador alertar o requerente e as testemunhas de que a prestação de declaração falsa na referida justificação configurará crime de falsidade, sujeito às penas da lei” (art. 13, § 2º, Prov. CNJ 65/2017).

IV) Nada obstante, o simples rito – extrajudicial ou judicial – não tem o condão de interferir sequer minimamente na essência do direito material, de maneira que, se idêntico direito pode ser, em tese, reconhecido pela via judicial, não há sentido em se proscrever sua obtenção extrajudicialmente, na contramão, aliás, do intuito legislativo, que concebeu uma opção à parte, célere e igualmente eficaz, desafogando-se o Judiciário.

V) Se, pois, a parte preenche os requisitos à aquisição da propriedade por usucapião – e a presente dúvida suscitada não verticaliza tais circunstâncias -, é-lhe facultado promover assim a demanda de usucapião como requerer sua declaração extrajudicial, nos termos da novel legislação de regência, sem que, com base apenas nessa lícita eleição, se cogite de burla fiscal, até porque, tendo, em tese, adquirido

originariamente a propriedade, não lhe é mandatório que se valha de mecanismos próprios da aquisição derivada; máxime no caso dos autos, em que a parte interessada sequer logrou localizar a vetusta proprietária registral do imóvel.

RECURSO DESPROVIDO. SENTENÇA CONFIRMADA.”

Os principais fundamentos da decisão supramencionada são os que se seguem:

  • Equivalência das vias judicial e extrajudicial – A decisão enfatiza que o rito (judicial ou extrajudicial) não altera a natureza do direito material. A usucapião, enquanto aquisição originária da propriedade, prescinde de qualquer título anterior, sendo cabível a sua declaração sempre que preenchidos os requisitos legais, independentemente da existência de promessa de compra e venda ou da viabilidade de adjudicação compulsória;
  • Escolha legítima do interessado – Desde que preenchidos os pressupostos legais da usucapião, não cabe ao registrador ou ao juízo questionar a motivação da parte na escolha por uma via em detrimento da outra, salvo se houver indícios de fraude ou de tentativa de burla tributária – o que não se constatou no caso concreto;
  • Finalidade da via extrajudicial – O acórdão reconhece que a criação da usucapião extrajudicial, pela lei 13.105/15 (art. 216-A da LRP), visa justamente oferecer uma alternativa célere e eficaz, em consonância com o movimento de desjudicialização. Negar a sua aplicação com base apenas na existência de outro procedimento possível (como a adjudicação compulsória) comprometeria o espírito da norma;
  • Ausência de burla fiscal – Rejeita-se o argumento de que a escolha pela usucapião representaria fraude aos tributos incidentes na aquisição derivada, pois a usucapião constitui forma de aquisição originária, em que não há incidência do imposto de transmissão, seja entre vivos, seja causa mortis.

O Tribunal concluiu que, uma vez preenchidos os requisitos da usucapião, a parte pode validamente eleger a via extrajudicial para o reconhecimento de seu direito, não sendo exigível a prévia tentativa de adjudicação compulsória nem se podendo presumir má-fé ou burla fiscal a partir dessa escolha legítima. Assim, a rejeição do pedido com base exclusivamente na existência de outra via legal foi indevida, motivo pelo qual a sentença que admitiu a usucapião foi mantida.

É certo que o acórdão acima citado foi proferido em momento anterior à vigência da lei 14.382/22, a qual passou a prever expressamente a possibilidade de adjudicação compulsória de bem imóvel por via extrajudicial. Todavia, os fundamentos expostos na aludida decisão permanecem íntegros e aplicáveis, de modo que a superveniência da referida norma não afasta a sua razão de decidir.

Fonte: Migalhas

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