A introdução a este breve estudo não poderia ser mais significativa do que as palavras a respeito, proferidas por prestigiosa pensadora: “A evicção, como visto, é tema praticamente abandonado pelos estudiosos do direito brasileiro (com poucas e honrosas exceções)” [1].

Noções introdutórias sobre o sistema jurídico

O Direito contém imenso universo de Institutos e só o domínio destes permitirá boa segurança, nos negócios jurídicos.

Ademais, neste imenso país, há situações peculiares, envolvendo a aquisição de imóveis rurais, que exigem atenção quanto aos fenômenos jurídicos, como a subsunção (incidência do fato sobre a norma).

Sem maiores delongas, nesta fase introdutória, lembramos que, em 09 de março de 2022, no Senado da República, foi iniciada a tramitação do Projeto de Lei nº 486, que propõe mudança na legislação federal, diante do uso desvirtuado do Cadastro Ambiental Rural (CAR), que vem servindo aos grileiros e aos envolvidos em grilagem de terras. A proposta pretende transformar em crime o uso do CAR em inscrições ilegais. Em outras palavras, pretende tipificar o crime de inscrição fraudulenta no cadastro rural [2].

É mais uma intenção de se coibir o que se insere no contexto daquilo conhecido por grilagem de terras, sob nossa definição, como:

“Um ou mais procedimentos de irregular ou ilegal ocupação de terra pública, com o objetivo da sua apropriação privada. Consideramos duas situações: 1) não ser legitimamente terra de particular aquela usurpada por terceiro ou pelo próprio e 2) não ser terra pública apenas precariamente ocupada e sim, em verdade, objeto de tentativa de indevida apropriação — como domínio. Do parágrafo anterior desdobraremos a ideia de que a terra pública devoluta só pode ser objeto de ‘tentativa de indevida apropriação’, já que o ato nulo  não convalesce com o decurso do tempo (CC/2022, artigo 169)” [3].

A proposta do Senado enfrenta algo que já havíamos identificado, em idos de 2017, quando escrevemos artigos a respeito, como os intitulados “O Novo Código Florestal Rearma a Velha Grilagem de Terras” [4] e “Grilagem e Cadastro Ambiental Rural: uma análise, para que o Cadastro Ambiental Rural não seja desvirtuado e sirva à grilagem” [5].

Nosso alerta se traduz em percepção do alcance da Grilagem de Terras e da sua forma de agir nas sombras. A odiosa grilagem é fenômeno histórico, real, concreto e cruel. Já foi objeto de CPIs, teses, monografias, matérias em jornais e obras sob vários enfoques, sendo objeto dos nossos estudos há mais de 20 anos. Já o enfrentamos em palestras em congressos [6] e seminários internacionais [7] e nacionais [8], em aulas, artigos e em dois livros específicos sobre a natureza do tema e sua categorização, causas e consequências.

O Cadastro Ambiental Rural (CAR) se faz por autodeclaração, tal qual ocorria com o Registro Paroquial [9], introduzido pela Lei de Terras de 1850 [10] — curiosa coincidência. O Sistema Jurídico foi traído por aqueles que desvirtuaram os dois institutos, sendo crível que a Grilagem de Terras corrompa a legalidade, a segurança jurídica, a paz no campo e subtraia do povo brasileiro e da Nação a destinação adequada do patrimônio público.

A doutrina e a jurisprudência já fixaram a tese de que negócio fraudulento não é justo título. Como já dissemos, o papel aceita qualquer coisa que nele se escreva. Título aquisitivo é o “fundamento do Direito” revelado pelo documento. Nessa linha já se falou que “título não é o documento, mas sim o fundamento do direito, o fato que justifica a aquisição deste […] o justo título deve ser efetivo e não putativo” [11]. No mesmo sentido já decidiu o Superior Tribunal de Justiça — STJ: “Negócio fraudulento não é justo título” [12].

O sistema de registro imobiliário é causal, o que significa que não é abstrato, autônomo e válido por si mesmo, sendo sempre decorrente de um título aquisitivo. Se a causa é antijurídica e nula, por falsidade documental ou outro vício, o registro imobiliário que dele decorra também será viciado.

A respeito, melhor e mais profundamente explicamos na obra Grilagem das Terras e da Soberania, inclusive com referência ao direito comparado e à pensamentos da Escola dos Pandectistas alemães [13], bem como no artigo “Usucapião Tabular, análise sistêmica”, publicado pela revista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro [14].

Pelo sistema legal brasileiro, o ato nulo não se corrige e não produz efeito. A nulidade é declarada pelo juiz e retroage à data do ato. É o que se chama de eficácia retroativa ex tunc.

Mesmo figuras como a usucapião tabular [15] não resolvem todos os casos. Tal figura não é aquisição originária da propriedade e, portanto, nem usucapião é, embora conste no Parágrafo Único, do artigo 1.242, do Código Civil. É mera (e derivada) convalescença registral, na qual se prevê a possibilidade de se usucapir o imóvel cujo registro vigeu por cinco anos, antes de ser cancelado e se o imóvel foi adquirido “com base no registro”.

Ora, não se adquire com “base no registro”, mas com “base em bom título aquisitivo”! Caberia para vícios do registro. Contudo, se o registro foi cancelado por vício de nulidade no título de origem, esta (nulidade) não é passível de convalescença (CC, artigo 169).

Por isso, mesmo o registro imobiliário decorrente da sentença judicial que declare a usucapião tabular é passível de cancelamento, como prevê a Lei 6.739/79, em seu artigo 8o-B: “Verificado que terras públicas foram objeto de apropriação indevida por quaisquer meios, inclusive decisões judiciais” [16].

É o próprio Sistema Jurídico se defendendo de eventual lei que ache que possa corrigir o que o Sistema expurga.

O Sistema Jurídico é, como já dissemos, uma teia de aranha [17], onde tudo está interligado. Não subsiste algo autonomamente, se não estiver de acordo com o todo. Como já se disse: “a ordenação das coisas é sempre resultante do estabelecimento livre de um fim que as concilie” [18].

Evicção
Há, contudo, a possibilidade de que o prejudicado pela fraude e pela grilagem possa reaver o investimento e os prejuízos daí decorrentes, através de específica responsabilização do vendedor, pelo instituto jurídico da evicção, previsto na legislação e que deverá estar expresso no título de transmissão.

Como se vê, as questões são complexas e exigem análise jurídica cautelosa e pormenorizada, sob pena de dificuldades maiores no futuro.

A evicção é tratada no Código Civil. O instituto tem origem romana, pelo qual se alvitrava que o vendedor fosse “obrigado a entregar a coisa como própria, de modo que também o comprador pudesse tê-la e dela gozar como própria. Daí a ideia de garantia prestada pelo vendedor para assegurar ao adquirente um título de gozo oponível a terceiros, que desse estabilidade na aquisição” [19].

Portanto, pela evicção, o vendedor é levado a indenizar o comprador pela perda da coisa, por vício no negócio.

O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que deva ocorrer a integral restituição do valor. Nesse sentido: “A orientação jurisprudencial desta Terceira Turma é no sentido de que, pela perda sofrida, tem o evicto direito à restituição do preço, pelo valor do bem ao tempo em que dele desapossado, ou seja, ao tempo em que se evenceu” (REsp 132.012/SP, Rel. Min. WALDEMAR ZVEITER, DJ de 24.5.1999). 4. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no AREsp 363.825/SP, relator ministro Raul Araújo, 4ª T, j. 18/03/2014, DJe 25/04/2014).

No mesmo sentido: “A jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de que o evicto tem o direito à restituição integral do valor do bem, calculado ao tempo que evenceu” (Superior Tribunal de Justiça, AgInt no AgInt no AREsp Nº 1587124 — MG, j. 21/09/2020.

Alertamos para o fato de que a evicção deva estar expressa nas escrituras, pois já vimos caso em que havia má origem da documentação remota, o que levou certo vendedor a não incluir tal cláusula na escritura de compra e venda, o que prejudicou o adquirente, no futuro, privado que ficou de buscar tal reparação junto ao vendedor. A propósito, se tratava de área imensa, com algumas dezenas de milhares de hectares…

Além da questão prática conhecida, que nos motiva a sustentar o que antes falamos, já se escreveu que “essa responsabilidade especial pode ser perfeitamente afastada, majorada ou reduzida pelas partes” [20].

Não obstante, há respeitável posicionamento doutrinário no sentido de que “o adquirente não pode demandar pela evicção se sabia que a coisa era alheia ou litigiosa”, acrescentando que “o artigo 457 aplica-se em qualquer hipótese, haja ou não cláusula expressa de exclusão da garantia” [21].

Podemos entender que “a garantia por evicção pode ser vista no direito brasileiro como um sistema de responsabilidade contratual por descumprimento de atribuição translativa, que se diferencia contudo do sistema geral de responsabilidade negocial” [22].

Observemos, contudo, que é uma obrigação peculiar e autônoma e que é invocável mesmo diante da hipotética declaração de nulidade do negócio jurídico, por Sentença Judicial. Não é uma responsabilização apenas pela lesão da obrigação de transferência da propriedade, pois decorre de um dever maior que qualifica essa responsabilidade em torno da Evicção –  a de garantir a venda como boa e por isso fortalecer no adquirente a ideia, com boa-fé, de que faz um bom negócio jurídico.

Ademais, o atual Código Civil, de 2002, valorizou o instituto da Evicção,

“Por força da norma que, nas bases da teoria dos efeitos externos do contrato, estendeu essa particular responsabilidade aos alienantes anteriores da cadeia de alienação (alienantes mediatos), sujeitando-os à pretensão do adquirente-evicto. É essa dimensão da novel disposição constante do artigo 456, caput, do Código Civil, que faculta ao adquirente notificar do litígio o alienante imediato ou qualquer dos anteriores” [23].

Como se vê, a cadeia sucessória pode ser chamada à lide.

Por qual motivo? Ora, o alienante, que descumpre a obrigação de fazer boa a translação do domínio, ofende não apenas ao comprador/adquirente-evicto: lesa o próprio Sistema Jurídico. Nesse sentido, tem a Evicção um tom além da Obrigação, com o sentido de um Dever Jurídico.

Com isso, envolvidos neste ideal de responsabilidade pela Evicção estarão tanto o vendedor imediato (que vendeu ao adquirente-evicto) quanto os anteriores titulares do domínio (vendedores mediatos), na cadeia sucessória e histórica de titularidades.

Percebendo o quanto isso se reflete no sistema causal do registro de imóveis é que a Lei nº 6.739/79 permite o cancelamento do ato administrativo do registro imobiliário e da matrícula do imóvel, retroagindo com eficácia ex tunc, até a origem do vício.

Afeta o adquirente e o vendedor próximos, assim como os adquirentes e vendedores remotos.

A questão jurídica é que, por se tratar de autotutela dos atos administrativos (já que os registros são atos administrativos), questão já sumulada pelo STF, é sabido que essa retroatividade tem eficácia ex tunc e que, portanto, dela nada remanesce, pois os registros e matrículas cancelados têm a natureza de ato antijurídico inexistente, sendo mais do que nulos, porque deles nada remanesce e efeito algum se produz.

É como se nunca tivesse existido de fato, já que juridicamente nunca existiu e tanto assim é que os seus efeitos caem como dominó, em sequência.

O prazo prescricional seria de dez anos (CC, 205). No entanto, o Superior Tribunal de Justiça tem aplicado o prazo prescricional de três anos (Recurso Especial Repetitivo 1.390.969-RS c/c REsp 1.577.229-MG).

Apesar da controvérsia quanto ao prazo prescricional, fundamental é que se considere devidamente o seu termo inicial. Contar-se-á este da data da escritura ou a data em que ocorrer a privação do pleno direito ao adquirente-evicto?

Não estamos falando em direito potestativo, cujo marco temporal é fixado pela própria norma jurídica.

Estamos falando em prescrição, que San Tiago Dantas bem definia como a “convalescença da lesão do direito pelo não exercício da ação” [24]. Portanto, é do momento da “lesão ao direito” que se conta o termo a quo.

Noutras palavras, o termo inicial será aquele em que o adquirente-evicto conheça da privação e do prejuízo ou impedimento ao pleno exercício dos atributos do bem adquirido e, a partir daí, se iniciará a contagem do prazo prescricional.

Detalhe fundamental é que o Superior Tribunal de Justiça tem entendido que é exatamente desse momento que se contará o termo a quo e que nem precisa ter ocorrido o trânsito em julgado da decisão que prejudica o adquirente-evicto, mas apenas o fato ensejador dessa lesão:

“3) A perda do bem por vício anterior ao negócio jurídico oneroso é fator determinante da evicção, tanto que há situações em que, a despeito da existência de decisão judicial ou de seu trânsito em julgado, os efeitos advindos da privação do bem se consumam, desde que, por óbvio, haja a efetiva ou iminente perda da posse ou da propriedade, e não uma mera cogitação da perda ou limitação desse direito” (STJ, REsp 1.332.112 — GO, relator ministro Luis Felipe Salomão, j. 21.03.2013).

O tema é mais cotidiano do que se pensa e a realidade nos exige atenção aos detalhes das relações jurídico-materiais, na constituição das avenças e elaboração dos contratos e escrituras, prevendo as áleas possíveis de ocorrer e, portanto, previsíveis, além das formas de responsabilização.

compliance na aquisição do imóvel rural é providência fundamental. A busca da origem fundiária do imóvel é medida necessária. Até cunhamos a expressão “Inventário da Raiz Fundiária” [25], para categorizar tal complexo de providências. Esse investimento não é gasto. Isso só ocorre quando se consome recursos em dinheiro para depois se tentar corrigir situações, que poderiam ter sido evitadas.

Em último caso, a evicção é o instrumento hábil a permitir que o adquirente-evicto possa recuperar o investimento junto ao vendedor que lhe causou danos, por ter sido prejudicado em aquisição de imóvel rural sem boa origem documental, mesmo que possuidor de longa cadeia sucessória de adquirentes, como acima analisamos.

 

Fonte: Conjur

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