O instituto do bem de família, protegido pela Lei nº 8.009/1990, é um dispositivo essencial para assegurar a moradia, sendo reconhecido como um dos instrumentos relevantes para a promoção dos direitos fundamentais no Brasil.
Este artigo analisa a decisão proferida pela 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Agravo Interno no AREsp 2.360.631-RJ, relatado pelo ministro Herman Benjamin, que reafirmou e ampliou a proteção ao bem de família ao reconhecer a possibilidade de impenhorabilidade de imóveis formalmente registrados em nome de pessoas jurídicas quando destinados exclusivamente à moradia de seus sócios.
Bem de família no ordenamento jurídico brasileiro
O conceito de bem de família foi introduzido no Brasil pela Lei nº 8.009/1990, que o define como o imóvel utilizado como residência permanente da entidade familiar, garantindo-lhe proteção contra penhoras e execuções, salvo em hipóteses excepcionais previstas na própria norma. O artigo 1º da referida lei dispõe:
“O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.”
Essa proteção reflete princípios constitucionais de relevância social, como a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da Constituição Federal), a propriedade e que essa atenderá a sua função social (artigo 5º, XXII e XXIII, da Constituição). A legislação objetiva assegurar o direito à moradia e evitar que dívidas pessoais ou empresariais comprometam a estabilidade do núcleo familiar.
Contexto do caso e fundamentos jurídicos da decisão
O caso analisado no AgInt no AREsp 2.360.631-RJ envolvia embargos de terceiro interpostos por um sócio que residia em um imóvel transferido para a titularidade de uma sociedade empresária familiar. O imóvel havia sido alvo de decretação de indisponibilidade em ação cautelar, com o argumento de que, por se tratar de um bem registrado em nome de pessoa jurídica, não poderia ser reconhecido como bem de família e, portanto, estaria sujeito à penhora.
A sentença de primeiro grau julgou os embargos improcedentes, sustentando que a titularidade empresarial do imóvel afastaria a proteção conferida pela Lei nº 8.009/1990. Contudo, a 2ª Turma do STJ reformou a decisão, afirmando que a titularidade formal do imóvel em nome da sociedade empresária não exclui, por si só, a aplicação do regime de impenhorabilidade. A decisão fundamentou-se em dois pilares:
Prevalência da função social da propriedade: a proteção jurídica conferida pelo bem de família deve atender ao seu objetivo principal, que é assegurar a moradia digna e inalienável da família, independentemente de questões formais relacionadas à titularidade do bem e; proteção à dignidade da pessoa humana: a análise do caso concreto deve priorizar a função social e a destinação residencial do bem, afastando a incidência de penhora sempre que demonstrada a finalidade de moradia exclusiva.
Vejamos trecho da decisão:
“4. Enfim, a Lei 8.009/1990, estabelecida tendo em vista proteção à dignidade da pessoa humana, é norma cogente, que contém princípio de ordem pública, não se admitindo, assim, interpretações extensivas às exceções à garantia legal da impenhorabilidade. Assim, entendo que a simples comprovação de que o imóvel constitui moradia é suficiente para lhe conferir a proteção legal. A confusão entre a moradia da entidade familiar com o local de funcionamento da empresa não constitui requisito para o reconhecimento da proteção do imóvel”
A decisão ressalta que a confusão entre a moradia e o patrimônio da pessoa jurídica não pode ser utilizada como pretexto para negar proteção ao bem de família quando este é comprovadamente destinado à habitação dos sócios.
Análise da Lei nº 8.009/1990 e jurisprudência correlata
A Lei nº 8.009/1990 apresenta uma lista taxativa de exceções à impenhorabilidade, como débitos tributários incidentes sobre o próprio imóvel, hipotecas constituídas anteriormente e dívidas originadas de obrigações alimentares. Fora dessas hipóteses, a proteção deve ser aplicada de forma ampla para garantir o direito à moradia.
Em decisões anteriores, o Superior Tribunal de Justiça já havia se posicionado no sentido de estender a proteção ao bem de família para situações não previstas explicitamente pela lei, desde que observada sua destinação. No julgamento do REsp 1.935.563/SP, o ministro Ricardo Villas Bôas Cuevas destacou que a separação jurídica entre a pessoa física e a pessoa jurídica não deve ser um entrave para a aplicação da norma, especialmente em sociedades familiares e de pequeno porte, onde a confusão patrimonial é comum:
“O imóvel no qual reside o sócio não pode, em regra, ser objeto de penhora pelo simples fato de pertencer à pessoa jurídica, ainda mais quando se trata de sociedades empresárias de pequeno porte. Em tais situações, mesmo que no plano legal o patrimônio de um e outro sejam distintos, é comum que tais bens sejam utilizados indistintamente pelos dois”.
Na decisão, ainda é exposto o que lecionou o ministro Luiz Edson Fachin:
“A impenhorabilidade da Lei nº 8.009/90, ainda que tenha como destinatários as pessoas físicas, merece ser aplicada a certas pessoas jurídicas, às firmas individuais, às pequenas empresas com conotação familiar, por exemplo, por haver identidade de patrimônios.” (FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, pág. 154)
Esse entendimento reflete uma abordagem principiológica, priorizando a proteção social e os direitos fundamentais, uma vez que o objetivo principal da Lei 8.009/90 é a proteção ao direito de moradia.
Implicações para o planejamento patrimonial
A decisão do STJ amplia o alcance do bem de família, proporcionando maior segurança jurídica para famílias que residem em imóveis de titularidade empresarial. Contudo, é necessário cautela na gestão patrimonial para evitar fraudes ou simulações que possam frustrar direitos de credores legítimos.
Critérios de comprovação
A jurisprudência ressalta a importância de robusta comprovação de que o imóvel é utilizado exclusivamente para moradia. Documentos como registros imobiliários, contas residenciais e declarações fiscais podem ser utilizados como elementos probatórios.
Prevenção de fraudes
Embora a decisão seja um avanço em termos de proteção social, ela exige do Poder Judiciário uma análise cuidadosa dos casos concretos para identificar situações em que a titularidade empresarial seja utilizada como artifício para blindagem patrimonial e possíveis fraudes contra credores.
Conclusão
Pois bem, o julgamento do AgInt no AREsp 2.360.631-RJ representa um marco na evolução jurisprudencial do bem de família, ao reforçar que a proteção da moradia deve prevalecer sobre formalidades como a titularidade do imóvel, desde que demonstrada sua destinação exclusiva à habitação familiar. Esse entendimento reafirma o compromisso do STJ com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da função social da propriedade, promovendo um equilíbrio entre a garantia de direitos fundamentais e a segurança jurídica.
Por outro lado, a decisão exige cautela na sua aplicação prática, de modo a evitar que essa proteção seja desvirtuada para fraudes patrimoniais ou simulações destinadas a frustrar legítimos direitos de credores. O caso revela, assim, a importância de uma análise criteriosa e fundamentada, com base em provas robustas e contextos específicos, para assegurar que a norma alcance sua finalidade essencial de proteção à moradia e à estabilidade familiar.
Ao flexibilizar a titularidade formal para preservar valores fundamentais, o STJ demonstra a capacidade do Direito de se adaptar às complexidades e dinâmicas da vida contemporânea, sem perder de vista a centralidade da dignidade humana.
Fonte: Conjur
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