O mestre de cerimônias, em tom grave, reunido ao casal, um japonês e sua esposa, pede-lhes que, com uma martelada, quebrem as alianças. Desse modo, inicia-se a cerimônia nipônica da separação, onde o encarregado dos divórcios organiza o ritual pelo qual, os divorciandos, com a quebra das alianças, exprimem seu desamor antes de se separarem.

 

De evidente, o paradigma do desamor é uma realidade antes vivenciada, no que importa a quebra da união existencial do casal, tornando certo que o rompimento das relações opera-se em um determinado curso temporal, como uma morte anunciada, sem surpresas, sem perplexidades.

 

De efeito, impõe-se, por inafastável atitude ética, um comportamento juridicamente relevante, de o(a) parceiro(a) — ao invés de um abandono súbito, não anunciado, feito ao apagar das luzes, se subtraindo, de repente e às pressas, da vida do outro — vir honestamente, anunciar a ruptura.

 

Opera-se, no caso, a adoção da alternativa do caspering, ou seja, a do “o desapontamento suave”, tratada em artigo de Marx Benwell no Le Guardian [1].

 

Em sentido contrário, reflita-se, porém, que um rompimento abrupto das relações afeto-familiares, sem os sinais vivenciais e pré-anunciados da falência afetiva, pode configurar um ato ilícito, a ilicitude civil do ghosting. Um ato contendo a particularidade da ruptura por aquele(a) que, em evidente abuso de direito, rompe a união através de uma sombria e súbita deserção, onde o “pronto abandono” acarreta considerável dano psicológico.

 

De fato, o abuso de direito também ocorre nas relações jurídicas disciplinadas pelo direito de família, quando alguém excede seu próprio direito, lesando, então, o direito de outrem. É significativo conferir hipóteses tais:

 

1) A separação repentina (ghosting) pode dar direito à reparação por danos morais: o juiz Paolo Pellegrini, da 1ª Vara de Iguape (SP), condenou um homem a pagar indenização à sua ex-companheira porque a expulsou de casa repentinamente;

 

2) O direito de vida em comum pode ser também abusado, por um deles, quando persevera em uma união ficta, diante de um vínculo afetivo que já se acha dissolvido unilateralmente (paradigma do desamor).

 

Em idêntica diretiva, quando por quebra de esponsais, de forma abusiva, o juiz Fernando Florido Marcondes, da 2ª Vara Cível de Presidente Prudente (SP), condenou um noivo que desistiu do casamento a pagar uma reparação de R$ 13 mil à ex-noiva a título de danos morais. O juiz entendeu ser “ato ilícito o rompimento sem justificativa de um noivado às vésperas do casamento, pois causa humilhação à vítima”.

 

Em todas as hipóteses de configuração, tem-se o elemento surpresa, o inesperado do agir, a reserva mental, a forma de ruptura em um agir egoístico, que menospreza a dignidade de outrem que se sinta, surpreendente e imotivadamente, rejeitado.

 

O término repentino de um relacionamento afetivo, “sem quaisquer explicações ou aviso”, mereceu o termo ghosting, alusivo à prática de quem desaparece do relacionamento como que fantasmagoricamente. Com seu emprego mais usual a partir de 2015, notadamente adotado nas mídias sociais, resultou incluído, naquele ano, no Collins English Dictionary.

 

Hoje tem sido expandido, em análise dos efeitos danosos do abuso emocional experenciado por aqueles que sofrem o ghosting, quando quem o pratica ghoster, sem pretender discutir, previamente, o fim da relação, não alcança a dimensão da ilicitude do ato agressivo e cruel do seu comportamento.

 

Induvidosamente, o sentimento de rejeição sem a explicação adequada, extraído da ruptura inopinada, acarreta um dano moral e psicológico a quem se coloca em posição passiva do abandono abrupto, o ghostee; suscetível, portanto, de aplicação do artigo 186 do Código Civil.

 

Não há negar que a responsabilidade afetiva no trato das relações afeto-familiares, obriga a todos, e quem dela não cuida, incide na irresponsabilidade relacional, de sorte que toda a irresponsabilidade é agressiva e ilícita.

 

É bem lembrar a frase exupériana: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. A esse propósito, lembra a psicóloga clínica Patrícia Gouveia (PE):

 

“Responsabilidade afetiva/emocional é assumir o seu lugar nas expectativas geradas numa relação. Existe sempre um acordo, independentemente do tipo de relacionamento”, a tanto que é tão importante verbalizar sentimentos quando ocorrem situações que não foram esclarecidas de forma efetiva” [2].

 

De fato. No trato do tema, a psicanalista e advogada de família, Giselle Groeninga (SP), especialista em terapia de casais, tem se debruçado, com reconhecido talento, sobre o fenômeno do ghosting, no plano de ambos os protagonistas, em análises percucientes do comportamento da falta de responsabilidade emocional e afetiva em casos que tais. Mesmo o desamor, desapartado da responsabilidade afetiva recíproca, impõe responsabilidades a quem deixou de amar (ou nunca verdadeiramente amou na relação).

 

O ghosting gera, por sua prática, um trauma e um dano permanentes. Aliás, tem sido afirmado, em diversas pesquisas no tema, que “a experiência de levar um ghosting traz um alto custo psicológico para quem sofre o abandono, impedindo-os de explorar novos relacionamentos” [3]. Serve a impedir uma abertura de futuro aos que precisam reconstituir a vida, diante dos reflexos da experiência traumática.

 

Embora o rompimento de um relacionamento afetivo não configure em regra dano moral, passível de compensação, porquanto a decisão de findar o relacionamento não constitua, em bom rigor, ato ilícito, mas uma faculdade conferida às pessoas envolvidas, retenha-se, entretanto, o alcance dos fatos concretos e peculiares, quando subsumidos no ghosting podem gerar indenização pertinente.

 

Com a devida adequação, torna-se necessário que o término da relação afetiva tenha ocorrido de forma anormal, abusiva, humilhante, expondo a pessoa à situação vexatória, para que se admita o rompimento indenizável. Neste sentido, o entendimento da 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (Apel. 1.0287.07.033666-7/0001, Rel. Des. José Arthur Filho, 2015).

 

Abandonos e perdas

 

Impõe-se, então, pensar o instituto jurídico do abandono, notadamente o abandono súbito, em sua maior dinamicidade, cujas consequências estão a exigir melhor tratamento da doutrina de família e novas dicções da jurisprudência. Mais precisamente: quando o abandono tem seu momento repentino, faz-se urgente refletir o fenômeno do fato.

 

À partida, há considerar o seguinte: 1) o divórcio, sem qualquer relevo à culpa, antes de representar dramas pessoais findos (autenticando uma travessia de vida), impõe um rito de passagem significativo com a quebra dos vínculos; 2) estes vínculos desfeitos constituem uma fronteira temporal da ruptura, mais das vezes firmada pelo abandono conjugal, certo que a deserção do cônjuge produzirá, sempre, efeitos jurídicos importantes.

 

Na ordem jurídica codificada, o abandono é instituto já tratado em diversos segmentos de direito, a exemplo: 1) a perda da propriedade por abandono (artigos 1.275, III, e 1.276, CC); 2) o abandono voluntário do lar, caracterizando impossibilidade da comunhão de vida (artigo 1.573, IV, CC); 3) a perda do poder familiar por deixar o filho em abandono (artigo 1.638, II, CC). Na jurisprudência, tem-se o abandono afetivo, com incidência do artigo 186 do Código Civil, à hipótese de responsabilização civil.

 

Pois bem. Certo que o abandono do lar, afetando cônjuge e filhos, representa fato jurídico relevante, destaca-se o julgamento onde resultou entendido que “marido que abandona lar não tem direito a partilha dos bens” [04].

 

Em julgado da 4ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, o relator Des. Eládio Torret Rocha, assinalou:

 

“(…) Em casos de prolongado abandono do lar por um dos cônjuges a doutrina e a jurisprudência consolidaram o entendimento de que é possível, para aquele que ficou na posse sobre o imóvel residencial, adquirir-lhe a propriedade plena pela via da usucapião, encerrando-se, excepcionalmente, a aplicação da norma que prevê a não fluência dos prazos prescricionais nas relações entre cônjuges”.

 

Induvidoso o acerto da decisão unânime que valorou, juridicamente, a posse exclusiva sobre o bem, quando a partilha não se fez instante à ocasião do divórcio, nele o réu, aliás, revel no processo. Aquele que abandonou o lar, não poderá reivindicar, ao depois, a meação dos bens, certo que tal pretensão protraída afigurar-se-á imoral e injusta [5].

 

A decisão catarinense vai além de uma dimensão espacial do imóvel, porquanto admitiu a usucapião como matéria de defesa suscitada pela família abandonada (mulher e sete filhos). No ponto, o alcance eloquente do direito diante da exceção substancial oferecida.

 

No mesmo sentido, recolha-se acórdão paradigma:

 

“Alimentos. Solidariedade familiar. Descumprimento dos deveres inerentes ao poder familiar. É descabido o pedido de alimentos, com fundamento no dever de solidariedade, pelo genitor que nunca cumpriu com os deveres inerentes ao poder familiar, deixando de pagar alimentos e prestar aos filhos os cuidados e o afeto que necessitavam em fase precoce do seu desenvolvimento” [6].

 

Mais precisamente: tendo o pai “falhado em relação aos deveres de sustento, guarda e educação dos filhos, bem como deixando de prestar-lhes atenção e afeto, não pode, agora, invocar a solidariedade familiar em seu benefício. Desarrazoado que venha buscar dos filhos o que lhes negou a vida inteira”.

 

Assinala-se, outrossim, acórdão do tribunal gaúcho que negou a determinação de partilha do imóvel, reconhecendo que o abandono de casa, por tempo prolongado, pelo marido, que desviou, inclusive, capitais da família, retira-lhe o direito de dispor da meação. O tribunal confrontou o valor do bem com o cálculo do sustento (alimentos) que foi negado à mulher e aos filhos e reconheceu que estes seriam os credores. O imóvel foi adjudicado à mulher [7].

 

Não custa lembrar, ademais, a Lei nº 12.424, de 16.06.2011, que introduziu o artigo 1.240-A ao Código Civil. Nele, em resumo, é previsto que aquele que abandonar o lar, deixando o cônjuge ou companheiro(a) na posse direta e exclusiva da moradia do casal (imóvel urbano de até 250m²), perderá a sua cotitularidade dominial em favor do outro, que ao cabo de dois anos da separação adquirirá o domínio integral do bem.

 

Pois bem. O abandono como fato jurídico está a sugerir novas construções da jurisprudência, não apenas a que não reconheceu ao pai que abandonou os filhos, material e afetivamente, o direito de reclamar alimentos em seu próprio favor, quando, adiante, idoso e incapacitado, veio a necessitá-los; tudo em leitura temperada do artigo 1.694 do Código Civil.

 

Situações mais frequentes são no contexto do artigo 1.723 do Código Civil, quando dentro da entidade familiar da união estável (para além da convivência pública, continua e duradoura), o objetivo necessário e já alcançado de constituir família, resta esse subitamente desconstruído e a família é interrompida pelo ghosting.

 

Como a figura do ghosting tem sido, reiteradamente, praticada, por quem, apesar de um pretenso período estabilizado do relacionamento, queda-se a praticar a ruptura abrupta da relação, sem qualquer recato, não há negar que abandonos e perdas, nessa hipótese, não apenas rompem uma relação dialogal de vida, entre os casais. São eles passíveis de responsabilização civil.

 

Assinala, a propósito, a jurista Fernanda Las Casas, integrante do IBDFAM, que “é importante compreender que sempre é exigida a boa-fé nas relações afetivas, a qual se transveste em um verdadeiro dever jurídico, que impõe um comportamento ético, coerente, sem criar falsas expectativas” [8].

 

Nesse cenário, cumpre-se verificar o dano gerado pelo comportamento contraditório, diante das expectativas geradas, a saber que toda a ruptura e o abandono não previstos, surpreendem e podem configurar contradição de condutas. Todo relacionamento pessoal exige respeito, dado ínsita uma responsabilidade afetiva inerente a quem há de se responsabilizar pelo sentimento e pelas expectativas criadas. Responsabilidade emocional que tanto se espera nas relações de afeições ou nas de desafeições [9].

 

Há um inegável imperativo ético-jurídico a nortear as responsabilidades afetivas e emocionais, jurídicas e éticas, em torno de uma vida a dois, mormente quando de sua finalização. Não importa o nível de afetividade que reúna os casais. Antes, importa, que a desconstrução não envolva comportamentos que o bom-senso comum repudia; como se observa na incidência do abandono pela figura do ghosting quando dos desfazimento das relações.

 

Reclama-se, portanto, a atenção do direito na esfera da responsabilidade civil, em sistema de proteção a valores jurídico-sociais prevalecentes.

 

Fonte: Conjur

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