Há no Brasil um novo movimento tendente a (des)estruturar o virtuoso sistema de segurança jurídica notarial e registral

 

O verbo liquidar na língua portuguesa pode significar “destruir algo”. Modernidade líquida é o termo cunhado pelo filósofo Zygmunt Bauman (1925-2017) para sintetizar os movimentos desestruturantes das relações sociais na atualidade. Não é dado conformar-se com o tédio. Ainda que renda bons frutos, o clássico e o secular não são desejáveis para essa modernidade. Tudo se torna fluido.

 

Há no Brasil um novo movimento tendente a (des)estruturar o clássico sistema de segurança jurídica notarial e registral. A pretensão de se estender a elaboração dos extratos para registro aos agentes econômicos externos ao SFI/SFH[1], em total desprestígio à função notarial e registral, tem sido uma das prioridades no lobby[2] das empresas atuantes no setor financeiro e imobiliário. A regulamentação da Lei nº 14.382/2022 pelo Conselho Nacional de Justiça, especificamente do fenômeno denominado “extratificação”[3], é iminente e tem suscitado debate entre os acadêmicos.[4]

 

Apontada como cara e ineficiente, advoga-se a tese de que não é necessária a qualificação jurídica de notários e registradores “em contratos de garantia e demais contratações padronizadas”. É o que afirma o ilustre advogado Dr. Fabio Rocha Pinto e Silva em artigo publicado neste portal[5]. Segundo ele: “(…) a função do notário nas compras e vendas puras e simples, nos contratos de garantia e demais contratações padronizadas, em um mundo interligado e digital, tende a perder relevância.”

 

Desconhece-se o que seria uma “compra e venda pura e simples”. Talvez o autor se refira à compra e venda “sem cláusulas especiais”, na forma prevista pela novel legislação, que encurtou o prazo para registro dessa espécie de instrumento. Mais provável, porém, que a referência seja aos contratos de compra e venda com alienação fiduciária em garantia que, embora dotados dessa característica especial e complexa, são unilateralmente impostos pelas instituições financeiras.

 

A autossuficiência jurídica das instituições financeiras na cobrança de dívidas criadas e documentadas pelos próprios agentes econômicos – fenômeno conhecido como negativação direta, que é promovida por meio de seus próprios tentáculos (“birôs de crédito”) – também tem sido apontada por seus lobistas como prova de que o mercado é capaz de se organizar com sucesso, sem a necessidade de agentes imparciais. E isso é dito com toda pompa, em que pese a gigantesca indústria dedicada a combater negativações indevidas e o número já assustador e crescente de processos judiciais gerados, grande parte ajuizada por beneficiários da chamada “justiça gratuita”.[6]

 

De novo com garbo, escritura pública, protesto notarial, registro de imóveis, registro de títulos e documentos, tudo isso seria um sistema desnecessário e caro, algo arcaico, sendo que tudo poderia ser resolvido por um clique no computador entre pessoas capazes, com a ajuda no máximo de um sistema autenticador e perpetuador: tokenização, smart contract, blockchain. Chega-se a denominar a atuação de notários e registradores como “atraso”, em uma ideia de que haveria um futuro virtuoso impedido por “interesses puramente financeiros ou corporativos”, novamente na visão maniqueísta (não Waratiana[7]) exposta pelo Dr. Fabio Rocha Pinto e Silva.

 

Não é raro deparar-se com argumentos igualmente apaixonados no sentido de que a dispensa da escritura pública agraciada às instituições financeiras foi uma conquista da sociedade[8], ao permitir a esses agentes lavrar os próprios contratos entabulados com seus mutuários, tudo “com efeitos de escritura pública” (Lei nº 9.514/97). Defende-se que tudo isso deveria ser possível também às incorporadoras e loteadoras, de forma ampla, pelo menos na relação com seus consumidores, ao que se concluiria que esses players não deveriam ficar de fora da produção dos extratos de seus instrumentos autorais.

 

Parece sedutor o discurso, sobretudo se o leitor mais ingênuo acreditar que a dispensa da escritura no SFI/SFH trouxe mais celeridade aos negócios ou mesmo reduziu os custos de transação no país, o que sabemos não aconteceu. E nem vai acontecer porque o modelo sugerido pelo Dr. Fabio Rocha Pinto e Silva, aquele dos EUA, já se provou muito mais caro e ineficiente. Tanto é assim que a China, após muito estudo, optou recentemente pela adoção do modelo de notariado latino, idêntico ao brasileiro. Adotam o mesmo modelo de notariado que o Brasil outros 87 países, 22 dos 28 países da União Europeia, 15 dos 20 países componentes do G-20, sete entre as dez maiores economias do mundo.[9]

 

Todas essas nações parecem conhecer o óbvio ululante: se a vontade dos indivíduos deixa de ser documentada e registrada com imparcialidade por um agente do Estado, apolítico, técnico e independente, a autenticação e o assessoramento não desaparecem, passam a ser realizados por agentes privados (seguradoras e advogados). Além do aumento do custo[10], a falta de orientação imparcial faz eclodir abusos perpetrados por agentes econômicos, o que pode levar o Poder Judiciário, ou mesmo o governo, a relativizar a força obrigatória desses contratos.

 

Em um cenário de crise econômica aguda, não haveria motivo plausível para se respeitar contratos feitos pelo banco, para o banco, e que o consumidor simplesmente não foi assessorado, não compreendeu ou sequer leu o documento antes de assiná-lo. Anote-se: não há direito adquirido ou ato jurídico perfeito em caso de suposta inexistência de vontade, podendo uma sentença, lei ou até mesmo uma medida provisória fulminar esse tipo de contratação.

 

E isso não acontece apenas com os consumidores incautos e menos escolarizados. Há empresas brasileiras de grande porte que tomaram créditos em renomados bancos de investimento no passado, cujas operações estruturadas continham fórmulas complexas de variação cambial (v.g. TRS – total return swaps, swaps cambiais, entre outros). Pois bem, a estupidez dessas contratações ficou tão evidente que tudo indica que esses instrumentos foram firmados sem que os tomadores do risco compreendessem os possíveis cenários a que estavam sujeitos.

 

Mesmo nos casos de variação sutil do dólar, tanto para cima, quanto para baixo em relação à moeda brasileira as perdas ao mutuário eram sempre gigantescas. Foram apostas que de tão malucas nem mesmo a roleta de um cassino está acostumada em receber. Talvez o tenham feito acreditando na seriedade do agente de crédito, regulado que é pelo Banco Central, já que ninguém imaginava estar dentro de um cassino. Fato é que pouco tempo depois essas dívidas tomaram proporções gigantescas e estas empresas quase quebraram. Até hoje nem os próprios acionistas dessas empresas entenderam por que ou como aquilo aconteceu.

 

Com a intervenção notarial, o tabelião tem que entender a fórmula avençada para transcrevê-la na escritura. Afinal, a atividade está sujeita a um regime severo de responsabilidade civil e disciplinar, não podendo lavrar atos “sob minuta”. Ao compreendê-la, o tabelião é obrigado a explicá-la às partes de forma didática. Após o assessoramento neutro, as partes podem refletir e negociar melhores condições naquele ou em outros bancos, o que torna o mercado mais competitivo e justo ao consumidor.[11]

 

Mas seriam os notários e o registradores livres e independentes os agentes públicos capazes de evitarem esses desmandos? Ou apenas o Poder Judiciário poderia evitar uma catástrofe ex post facto?

 

Em tempos de normalidade econômica, é correto dizer que a relativização da força obrigatória de um outro contrato não traz maiores danos sociais, sobretudo com a presença de instituições fortes como o Poder Judiciário, Afinal, não são todos que levam a um juiz de direito esse tipo de questão. Os contratantes tendem a respeitar a validade do instrumento em sua essência, insurgindo-se muitas vezes apenas contra aspectos pontuais do pacto (juros, correção etc.). Os danos por conta dessas abusividades têm sido apresentados ao Poder Judiciário, a rigor, de forma individual por cada consumidor lesado, embora não se negue a existência de direitos difusos e coletivos atingidos.[12]

 

Se uma determinada cláusula a ser inserida em milhares de contratos padronizados aumentará o lucro e os bônus dos executivos de uma empresa, ainda que possivelmente ilegal, não há razão crível para que os diretores deixem de impor unilateralmente essa cláusula, sabedores de que os consumidores em regra não têm capacidade de compreender ou questionar aquele item. Anote-se que os processos judiciais levarão anos para aparecer e mais de uma década para serem julgados definitivamente, período este em que esses recursos obtidos ilicitamente trarão rendimentos vultosos às companhias.

 

A história é conhecida: uma enxurrada de questionamentos acaba por desaguar no Poder Judiciário, trazendo custos até mesmo ao contribuinte, como já aconteceu: cláusula-mandato, tarifa por liquidação antecipada, venda casada, anatocismo não autorizado em lei etc. Nessa linha, defende o Dr. Fabio Rocha Pinto e Silva a elaboração de extratos voltados ao registro por loteadoras e incorporadoras, as mesmas responsáveis, bem ou mal, por Taxa SATI, exoneração de responsabilidade em caso de atraso de obra, modificação do projeto da obra após contratação, retenção abusiva de valores pagos, entre outras barbáries contratuais que inundaram o Judiciário no passado. A falta de regulação mínima desse mercado fez nascer no passado criatividades infinitas, muitas aberrantes.[13] É certo que tudo isso não foi capaz de gerar grandes crises no Brasil, mas isso graças ao cenário econômico favorável do setor nas últimas décadas.

 

Ocorre que essa relativa estabilidade jurídica só existe se o Poder Judiciário não estiver sobrecarregado. Notários e registradores existem justamente para reduzir a quantidade de litígios submetidos ao Poder Judiciário. Instado a decidir tudo, o magistrado não é capaz de decidir nada. Por meio do assessoramento imparcial ou da qualificação do instrumento ou da dívida, garante-se o esclarecimento dos agentes envolvidos e o cumprimento à lei, o que praticamente elimina a alegação de erro, fraude ou vício na vontade. Notários e registradores também são capazes de coibir falsidades e outras condutas potencialmente lesivas aos consumidores.

 

Nesse particular, extratos produzidos pelos próprios players do mercado podem esconder disposições contratuais abusivas, impossibilitando qualquer tipo de controle prévio pelos agentes da justiça preventiva. Ainda que se diga que não há efeito para terceiros daquilo que não foi levado ao extrato, e que a eficácia entre as partes poderá ser discutida se houver ilegalidade no instrumento, fato é que o crédito ou recurso será liberado, securitizado, ofertado ao público, passará, enfim, a circular.

 

Não convence o argumento de que a utilização de um contrato padrão previamente aprovado pelo registrador poderia dispensar a atuação notarial nos casos de extratos advindos de loteamento ou incorporação, uma vez que há possibilidade de inserção de cláusulas outras no decorrer do empreendimento, inclusive alteração na forma de garantia, correção, juros. Mais do que isso, é possível que o notário atuante seja capaz de persuadir o usuário a não adquirir o bem daquele empreendedor ou loteador, ao menos não na forma constante do contrato padrão, seja porque a modalidade de garantia por ele adotada é agressiva para pessoas com rendas instáveis, seja porque a taxa de juros ou correção monetária aplicadas podem vir a se tornar abusivas em um cenário econômico provável. Há casos em que a loteadora passa por dificuldades financeiras durante o empreendimento e o notário tem a capacidade de verificar e antever possíveis problemas na entrega das obras.

 

Por mais que tudo isso pareça improvável ao advogado de uma grande banca da capital do Estado, é comum que o consumidor menos endinheirado procure o notário de sua confiança antes da sua compra, já que acostumado com a necessidade da escritura pública[14]. Após ser esclarecido pelo notário acerca dos riscos de uma alienação fiduciária, por exemplo, poderá optar por adquirir o bem de outro empreendedor, alguém que não exija de maneira irredutível a mesma modalidade de garantia. É por isso que a atuação do notário é recomendável em qualquer negócio jurídico, por ser capaz de regular o mercado em sua faceta jurídica, trazendo competitividade entre os agentes do mercado em temas como a justa formação do contrato e a boa-fé objetiva. É bem verdade que lamentavelmente não foi essa a opção do legislador no que toca à alienação fiduciária em garantia no sistema do SFI/SFH, mas isso não justifica uma interpretação extensiva de algo que se coloca como exceção. Aliás, o sistema de segurança jurídica posto só tem demonstrado bons resultados porque a regra não é a dispensa da escritura pública.[15]

 

Ressalte-se que em caso de fraude ou vício na vontade da contratação pelo consumidor junto a uma loteadora ou incorporadora, é provável que aquela empresa (a rigor SPE) nem sequer exista ou tenha patrimônio no futuro para responder pelas indenizações, em total desamparo aos prejudicados. Por isso, deve ser festejada a tese do Prof. Ricardo Campos de que a elaboração dos extratos para o registro de imóveis deve ser restrita aos notários e aos agentes atuantes no SFH/SFI. Afinal, no ambiente em que há alguma regulação externa, exercida pelo Banco Central do Brasil, há pelo menos uma maior certeza da responsabilização do agente em caso de fraude, má-fé etc.[16]

 

Aponta o Dr. Fabio Rocha Pinto e Silva dados que comprovam o baixo número de consolidações de propriedade fiduciária no país (2% do total histórico)[17]. É como quem diz: esse contrato vai ficar na gaveta, ele não importa, um réquiem ao direito notarial e registral. Afirma-se, assim, que a instrumentalização dos contratos imobiliários imposta ao consumidor pelo próprio player do mercado deveria, por isso, ser alargada normativamente, com a autorização inclusive para elaboração de extratos sem a participação do notário. Afinal, quem pode o mais, pode o menos. Mas o que ocorreria no Brasil se, diante de um cenário econômico de crise no setor[18], as alienações fiduciárias em garantia fossem executadas em grandes quantidades e, ao fim, os bens acabassem arrematados em hasta pública por valor significativamente inferior àquele pago pelo consumidor? E se esses bens, desvalorizados pela crise, não fossem sequer adquiridos por um terceiro interessado no leilão e passassem diretamente à propriedade dos bancos? Anote-se que a lei valida uma eventual perda do imóvel e das prestações pagas nessas hipóteses. Ficariam esses contratos ainda assim na gaveta?

 

Afora a questão econômica, nesse cenário emergem questões jurídicas elementares: será que boa parte desses consumidores foi alertada devidamente pela instituição financeira desse risco e assumiu conscientemente essa possibilidade? Ou, ao contrário, haveria uma insatisfação geral desses mutuários a desembocar no Poder Judiciário sob o argumento de que não tinham ciência dos riscos envolvidos, uma vez que não receberam qualquer tipo de assessoramento? E como se comportaria cada Juiz ou cada Tribunal do país diante de uma tempestade de pleitos como esse?

 

Agora imagine-se que uma parte significativa desses contratos não contenha os requisitos legais ou possa ter sido fraudada por uma grande companhia do setor para que fosse possível demonstrar falsos resultados aos seus sócios e acionistas. Pode-se supor que parte dos que “assinaram” esses contratos estavam mortos ou eram idosos e não tinham a menor condição de entender os termos ou arcar com suas dívidas.[19] Anote-se que as assinaturas podem se dar por procuradores inescrupulosos.

 

Fato é que sem um assessoramento notarial prévio – ou qualificação mínima do instrumento “extratificado” – uma série de questionamentos envolvendo esses contratos poderia recair sobre o Poder Judiciário, o que exigiria uma resposta rápida, algo impossível na conjuntura atual de sobrecarga de trabalho imposta aos magistrados. E aventada a hipótese de uma crise econômica grave, situação em que o julgamento se torna imprescindível para que não ocorra um crash do mercado imobiliário, fatalmente caberia ao governo ou ao Supremo Tribunal Federal resolver a questão de forma mais ou menos uniforme para milhões de pessoas, o que nunca é desejável.[20] Não custa lembrar que a instituição financeira detém, segundo o Superior Tribunal de Justiça, o ônus de provar a autenticidade da assinatura do mutuário na hipótese de questionamento[21], sendo perturbador imaginar a hipótese de essas instituições financeiras, que se valeram da prerrogativa de criar suas escrituras públicas (e os extratos para registros imobiliários), não mais existirem após uma grave crise financeira. Afinal, não falamos aqui apenas de grandes instituições financeiras. E qual seria a solução para os extratos por elas emitidos, muitos espelhando contratações firmadas com assinatura avançada, não qualificada?[22] A mesma indagação pode ser feita em relação a essas assinaturas avançadas na hipótese de a empresa que certifica a assinatura desaparecer do mercado. Agora imagine-se todo esse cenário multiplicado também para incorporadoras e loteadoras, que em média não duram mais que cinco ou dez anos no mercado. A vivência no mercado imobiliário deste autor indica que a maioria dessas empresas não consegue concluir mais de dois ou três empreendimentos antes de ir à bancarrota. Mesmo grandes players do mercado convivem com pedidos de falência ajuizados vez ou outra.[23]

 

De outro lado, mesmo em cenários de normalidade – e suposta boa-fé – um contrato imobiliário que conta com alienação fiduciária em garantia será produzido unilateralmente “com efeito de escritura pública”. A presunção de uma escritura pública jamais é absoluta. Em caso de alegação do consumidor acerca de um vício, é cabível a inversão do ônus da prova para que o autor do documento (v.g. um banco) prove que o contrato foi lido pelo mutuário e que este compreendeu todas as suas cláusulas. Mas como se prova um fato que se sabe não ocorrer na prática?! Que gerente bancário coloca em risco seu bônus e sua performance ao explicar as dúvidas e os riscos jurídicos de um contrato bancário, riscos esses, aliás, que nem ele mesmo domina?!

 

É muito mais provável um magistrado se convencer de que um determinado contrato foi firmado com leitura prévia e após explicação das suas cláusulas quando a captação da vontade é feita por um notário imparcial e desinteressado, por meio de uma verdadeira escritura pública. É evidente que a participação de um tabelião – e do registrador – reduz previamente a assimetria de informações e é capaz de minimizar a chance de um litígio, deixando-se levar ao Poder Judiciário somente uma parcela diminuta de conflitos, o que ao fim e ao cabo melhora a qualidade técnica dos julgamentos entregues, gerando paz social e desenvolvimento econômico.

 

Dispõe o Estatuto do Notariado de Portugal que o notário “tem o dever de manter equidistância relativamente a interesses particulares suscetíveis de conflituar, abstendo-se, designadamente, de assessorar apenas um dos interessados num negócio”[24]. Essa é sem dúvida a principal característica do conselho notarial: a sua neutralidade.

 

E bem por isso o Código de Defesa do Consumidor brasileiro garante o direito de todos a um sistema administrativo com vistas à prevenção de danos, assegurada a proteção jurídica, administrativa e técnica aos necessitados. Da mesma forma, a Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo impõe ao notário o dever de proteger o vulnerável e o hipossuficiente nas relações negociais, incluído nestes o consumidor, o idoso etc.[25]

 

Evidentemente que isso tudo tem um custo, não apenas financeiro, mas também de oportunidade (tempo). Pois bem, as despesas com a documentação têm se mostrado baixas quando a atividade de elaboração do instrumento é desempenhada por um agente público, em regime privado, já que não há necessidade de contratação de seguros[26]. E isso é verdade mesmo sem que seja incluída nessa equação a economia de tributos pela redução de demandas ao Poder Judiciário. Quanto ao “tempo perdido nos cartórios” presencialmente ou por vídeo conferência, é verdade que ninguém suporta ouvir uma leitura por um notário zeloso de uma procuração ou escritura pública. Mas será que essa não é uma canção tediosa que ainda precisamos escutar? A leitura que desgasta por alguns minutos os envolvidos é mais suportável do que um processo judicial discutindo aquele instrumento, que seguramente durará dez ou vinte anos e trará custo financeiro enorme aos envolvidos. Em tempos de “teoria do desvio produtivo”, parece que um litígio seria muito mais danoso ao consumidor e aos terceiros envolvidos se comparado a uma leitura rápida pelo notário para se certificar do entendimento e da consciência do indivíduo.

 

Registre-se que o argumento isolado de uma redução de custos ao transferir-se parte dos serviços notariais à iniciativa privada diretamente interessada se mostrou falso. Muitas instituições financeiras, incorporadoras e até agentes imobiliários cobram valores significativamente maiores do que o custo total de uma escritura pública para a confecção de um contrato de compra e venda de imóvel com alienação fiduciária.[27] Alegam, por vezes, existir embutido no custo uma espécie de “seguro para os casos de fraudes”[28]. O indivíduo perde sua casa hoje e recebe uma indenização em dinheiro dez ou vinte anos depois, após um processo moroso e desgastante no Poder Judiciário. Ainda segundo o Dr. Fabio Rocha Pinto e Silva  no artigo já citado: “o aumento de ocorrência de fraudes, nesse sistema, é supreendentemente desprezível”. Custa acreditar que o indivíduo que depositou todas as economias de sua vida e foi vítima de uma fraude também veja o fato como desprezível. E se é tão bom esse sistema, repise-se, por que a China, a segunda maior economia do planeta, não optou por esse modelo?

 

A preferência pela intervenção notarial – modelo de segurança jurídica em oposição ao modelo de segurança econômica dos EUA – tem se mostrado não apenas mais eficiente para a própria economia, mas também uma decisão mais humana, ao reduzir as fraudes de forma quase absoluta. Trata-se de sistema em que a meta é que ninguém seja abandonado ou “deixado para trás”. Peter Murray, professor na Harvard Law School, em análise sobre o notariado francês e a crise do subprime de 2007 nos EUA, afirma que os notários latinos provavelmente não teriam sido capazes de evitar a crise por completo, ao mesmo tempo em que reconhece que certamente muitos abusos cometidos pelos agentes econômicos poderiam ter sido impedidos pelo conselho obrigatório de um notário imparcial.[29] Em outras palavras, a crise poderia ter sido bem menos destrutiva se houvesse um notariado do tipo latino nos EUA. Peter Murray é enfático ao afirmar que as jurisdições anglo-americanas deveriam considerar a adoção do modelo latino de notariado para suas transações econômicas, especialmente aquelas relacionadas às propriedades residenciais.[30]

 

Parece assim que o sistema notarial e registral brasileiro não é aquilo que se planta no texto do ilustre advogado, e que os delegatários não são parasitas sociais. É verdade que há um aparente consenso científico no campo da economia de que se deve permanentemente modernizar a estrutura assecuratória dos direitos de propriedade[31], o que não se nega aqui. E nisso o notariado já se antecipou, sendo o e-notariado uma ferramenta moderna e prática para a transmissão imobiliária, que atende o anseio social por maior celeridade. As centrais de protesto e de registro também caminham a passos largos para entregar o estado da arte em seus processos eletrônicos, sem perder de vista a segurança jurídica.

 

A possibilidade de produção de extratos dos instrumentos destinados ao registro é uma novidade interessante, uma espécie de “inédito viável”[32]. A “extratificação” de instrumentos externos ao SFI/SFH deve ser restrita a agentes confiáveis, leia-se, aqueles com conhecimento jurídico, imparciais e independentes, fiscalizados pelo Poder Judiciário: os notários.

 

Reconhecida a eficiência do modelo atual de qualificação nos instrumentos públicos, cabe ao Conselho Nacional de Justiça determinar, ainda que com alguma temperança, uma análise jurídico-notarial e registral tanto na confecção quanto no registro do extrato. Deve compor essa qualificação um exame (i) cuidadoso da autenticidade do instrumento, capacidade e legitimação das partes para o negócio entabulado, e (ii) perfunctório das cláusulas contratuais não publicizadas pelo extrato, especialmente nos negócios entabulados por agentes não integrantes do SFI/SFH.

 

Fonte: Migalhas

Deixe uma resposta