O Projeto de Lei 182/2024, que institui o mercado de carbono no Brasil (Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa — SBCE), tem brechas que podem prejudicar a imagem do país aos olhos de investidores globais e, consequentemente, afetar o valor dos créditos, de acordo com a interpretação de especialistas no assunto ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.
O texto — que foi aprovado pela Câmara dos Deputados na terça-feira passada (19/11) e segue agora para sanção presidencial — distingue dois mercados: o regulado, que tem metas de redução e critérios estabelecidos pelo Estado (e que fica vinculado ao SBCE), e o voluntário, composto por empresas que querem reduzir as emissões espontaneamente. Esse mercado tem suas metas definidas por instituições privadas.
O tema é uma das prioridades do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e já foi discutido anteriormente no Senado. A instituição do mercado de carbono é uma das vertentes do Plano de Transformação Ecológica, elaborado pelo Ministério da Fazenda.
Os especialistas consultados pela ConJur apontam como um dos pontos críticos do PL a exclusão da agropecuária das obrigações de reportar emissões anualmente, submeter plano de monitoramento e fazer a conciliação periódica de obrigações no SBCE.
De acordo com Glaucia Savin, advogada especialista em gestão ambiental que já atuou na Secretaria do Meio Ambiente de São Paulo, na Comissão de Meio Ambiente da OAB-SP e na Câmara Técnica de Assuntos Jurídicos do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), isso compromete a eficácia do mercado de carbono como um todo. “Deixar a agropecuária fora cria uma lacuna regulatória que enfraquece o sistema e desincentiva mudanças estruturais nesse setor. Além disso, o tratamento desigual entre setores pode comprometer a legitimidade do mercado perante a sociedade e investidores globais.”
A agropecuária é responsável por 25% das emissões de gases estufa no Brasil, conforme ressalta Gabriel Wedy, juiz federal, doutor em Direito e professor no programa de pós-graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). “Existem hoje cerca de 110 milhões de hectares de pastagens degradadas e pouco produtivas cultivadas de modo não sustentável. Não raras vezes, essa atividade é praticada de modo casado com o desmatamento e com queimadas”, destacou ele.
Desmatamento
O trecho do PL que fala sobre Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD+) é confuso, de acordo com instituições como o Observatório do Clima. Ele permite, por exemplo, que o produtor rural que tenha desmatado ilegalmente tire sua propriedade da contabilidade nacional e gere créditos.
Áreas de desmatamento ilegal podem ser incluídas no sistema se forem instituídos mecanismos de recuperação e manutenção da preservação, de acordo com os especialistas, mas o texto gera confusão nesse ponto. Talden Farias, advogado e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental, defende que a redação deve ser aperfeiçoada.
“Quem desmatou de forma irregular não pode receber o mesmo tratamento normativo de quem agiu dentro da legalidade. São necessários critérios claros e rigorosos para evitar ambiguidades e fraudes, além de um monitoramento robusto.”
Para Gabriel Wedy, seria também importante envolver diretamente órgãos estatais, institutos de preservação ambiental e até mesmo as universidades, em virtude da expertise técnica dos pesquisadores.
A agropecuária não está imune ao sistema de responsabilidades estabelecido pela legislação ambiental brasileira, conforme aponta Ingo Sarlet, advogado e professor titular da Escola de Direito da PUC-RS.
“O PL apenas buscou excluir a referida atividade da regulamentação jurídica estabelecida no âmbito do SBCE. Ainda assim, é possível discutir a aplicação das categorias jurídicas e obrigações trazidas pelo PL à atividade agropecuária, haja vista a necessidade de compreensão e interpretação do sistema jurídico no seu conjunto”, afirmou ele.
“A exclusão se deu, resumidamente, por grandes dificuldades técnicas de medição de emissões no setor. Em razão dessas dificuldades, o setor do agronegócio não tem sido incluído em outros mercados regulados que já existem no mundo”, comenta Natascha Trennepohl, advogada e doutora em regulação do mercado de carbono. Sarlet lembra que o REDD+ ainda será objeto de regulamentação por decreto. “Não me parece compatível o beneficiamento de desmatadores ilegais e a possibilidade de comercialização de créditos de carbono por proprietários rurais em situação irregular e desacordo com legislação ambiental.”
Falta participação
Outro ponto frágil do PL, segundo os estudiosos do assunto, é o artigo que estabelece a Câmara de Assuntos Regulatórios, composta por membros dos setores regulados e por integrantes do Legislativo. “Não parece adequada uma composição formada exclusivamente pelos setores regulados. O Direito Ambiental é regido pela participação, princípio que deve reger as políticas públicas de meio ambiente em todas as suas instâncias e momentos”, diz Talden Farias.
Ademais, o artigo parece ferir a separação de poderes, pois a criação de órgãos regulatórios cabe ao Executivo, conforme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. “O STF já visitou o tema dos direitos ambientais de participação no julgamento da ADPF 623. Além disso, a respeito da participação da comunidade científica e cientistas, os deveres de proteção climática do Estado e o princípio de reverência à ciência, conforme visto na ADPF 651, tornam imperativa a adoção de medidas e decisões legislativas, administrativas e judiciais, ademais de regulatórias em geral, baseadas em evidências científicas apontadas por instituições e órgãos de notório prestígio científico”, acrescenta Sarlet.
A presença de legisladores na câmara, para os advogados, é inadequada por se tratar de um órgão do Executivo. “A inclusão de parlamentares pode abrir brechas para a defesa de interesses setoriais, como o do agronegócio, em detrimento do bem público. Caso se admitisse a presença de um representante do Legislativo, em respeito à separação de poderes, este deveria participar sem direito de voto”, opina Glaucia Savin.
Terras indígenas, tradicionais e quilombolas
Entidades representativas de povos indígenas, tradicionais e quilombolas não foram consultadas para a elaboração do PL, o que vai contra a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Além disso, foram estabelecidas porcentagens mínimas de repasse dos créditos de projetos de desenvolvimento nessas terras, o que é considerado crítico por alguns especialistas tanto pela falta de consulta quanto pelo valor da porcentagem.
O texto da OIT diz que é obrigatória a consulta prévia, livre e informada antes de qualquer decisão que afete territórios indígenas e tradicionais. O artigo 47 do PL estabelece o mínimo de 50% dos créditos de carbono decorrentes de projetos de remoção de gases de efeito estufa e 70% dos créditos decorrentes de projetos de REDD+, o que leva alguns especialistas a crer que a lei garante um lucro indevido às empresas desenvolvedoras de projetos sobre os direitos dos povos e comunidades.
“Pessoalmente, concordo com a crítica de que o modelo atual beneficia mais as instituições desenvolvedoras. Para uma divisão mais justa, deveria ser garantido um retorno proporcional às comunidades indígenas, de preferência acima de 50% dos lucros dos projetos desenvolvidos em suas terras”, diz Glaucia.
Para Wedy, a porcentagem é irrisória. “Temos de observar que os indígenas são a cultura viva do país e o braço da nação na proteção ambiental e do sistema climático”, diz o juiz. Sarlet, por outro lado, lembra que essas porcentagens são mínimas, e não fixas. “Vale como um piso mínimo, não impedindo a fixação de percentuais maiores, a depender de cada caso. Ademais, o consentimento livre, prévio e informado, nos termos da Convenção 169 da OIT, está expressamente previsto no artigo 47, salvaguardando direitos dos povos indígenas e tradicionais, bem como a retribuição justa e equitativa derivada da comercialização de créditos de carbono.”
Para Farias, o dispositivo teria uma abordagem mais justa se fossem estabelecidos critérios que priorizassem o retorno direto às comunidades. Para reforçar a legitimidade do mecanismo, seria preciso também limitar os lucros das instituições intermediárias e garantir que a maior parte dos recursos beneficiasse os povos indígenas.
Fonte: Conjur
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