É do poeta Robert Frost a lição de que “boas cercas fazem bons vizinhos”. A afirmação não deixa de orientar, poeticamente, o princípio da separação dos poderes, elemento de sustentação de todas as democracias constitucionais saudáveis do mundo.

No Estado Constitucional, a missão de concretizar direitos fundamentais, especialmente os de índole social (prestacionais, portanto), não se cumpre sem o envolvimento dos Poderes Legislativo e Executivo. O Judiciário, cujo órgão de cúpula é a Suprema Corte, corrige, quando provocado, as violações promovidas pelo Estado contra esses direitos, violações essas que também podem se dar por meio de omissões reiteradas. Mas é consenso na jurisdição constitucional contemporânea que a jornada de vindicação, positivação e realização de direitos fundamentais é uma caminhada longa demais para excluirmos dela os Poderes Legislativo e Executivo.

A lei Maria da Penha nasceu do ecossistema político. O mesmo se diga da tipificação do crime de feminicídio. E quanto ao Estatuto da Pessoa Idosa ou o da Pessoa com Deficiência? E quanto à lei dos medicamentos genéricos? E quanto à previsão orçamentária de programas como o Bolsa Família? São conquistas que não nascem dos tribunais, mas de construções políticas ultimadas pela lei.

O Brasil não está inerte na conformação normativa de demandas sociais. Se tomarmos como referência o art. 6º da CF/88, que veicula os direitos sociais (originalmente: educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados), em 2000 veio a emenda 26, inserindo a moradia; em 2010, com a emenda 64, a alimentação; e, em 2015, com a emenda 90, o transporte. A CF/88 foi alterada três vezes, apenas no art. 6º, para incluir mais direitos sociais demandados pela população.

Esse comportamento político responsável tem andado junto com as adaptações jurídicas necessárias à proteção de todos numa sociedade plataformizada. A esse respeito, eis o que anotou o ministro André Ramos Tavares, recentemente: “As plataformas digitais, engendradas com softwares aplicativos, representam uma das mais atuais e dinâmicas fronteiras na vanguarda da inovação digital voltada para o dia a dia do cidadão”.1

Exemplo é o direito à mobilidade urbana eficiente. Como esse direito nasceu? Pela aprovação, em 2014, da EC 82. Dois anos antes, havia sido promulgada a lei 12.587, introduzindo a Política Nacional de Mobilidade Urbana.

Movimento semelhante se deu com a EC 115, promulgada em 2022, inserindo, no rol do art. 5º, “o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais”. Em 2018, já havia entrado em vigor a lei 13.709, sobre a proteção de dados pessoais, alterando a inovadora lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet). Em 2019, a lei 13.853 deu ensejo à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.

Ou seja, o Congresso Nacional não tem se omitido em erigir um sistema normativo condizente com o tempo presente, no qual o social e a inovação tecnológica andam juntas. É como escreveu a ministra Cármen Lúcia: “Há que haver o pensar e propor novos modelos jurídicos, coerentes com as novas demandas tecnológicas e seu uso. Esses devem ser aptos a assegurar a eficácia dos direitos fundamentais, permitindo o movimento transformador que a criatividade humana – incluída a tecnologia – poderá propiciar, em benefício da humanidade, se for bem cuidada e limitada pelas liberdades conquistadas e constitucional e supraconstitucionalmente asseguradas”.2

Percorrendo esse caminho, a Câmara dos Deputados está debruçada sobre o projeto de lei complementar 12/24, de iniciativa do Poder Executivo, que dispõe sobre a relação de trabalho intermediado por empresas operadoras de aplicativos de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos automotores de quatro rodas.

O PLP é resultado de grupo de trabalho instituído pelo decreto 11.513/23, no Ministério do Trabalho e Emprego, assim formado: 15 representantes do governo Federal; 15 representantes dos trabalhadores; e 15 representantes dos empregadores.

Eis a essência do projeto: a) Relação de trabalho entre os condutores e as empresas operadoras de aplicativos de transporte remunerado privado individual de passageiros, garantindo direitos trabalhistas, como piso remuneratório reajustado de acordo com a Política Nacional de Reajuste do Salário-Mínimo, e a segurança e saúde do trabalhador, estabelecendo, dentre outros, o limite máximo de 12 horas de conexão à plataforma por dia; b) Direitos previdenciários; c) Mecanismos de controle e fiscalização das atividades das empresas operadoras de aplicativos, definindo regras para o bloqueio, suspensão e exclusão do trabalhador da plataforma; d) Diretos à representação por entidade sindical, garantido direitos à organização sindical, a sindicalização e à negociação coletiva; e) Incentivo à capacitação e formação profissional dos condutores.

A conclusão dos ministros Luiz Marinho, Carlos Luppi e Fernando Haddad, ao apresentarem o projeto, foi a seguinte: “A aprovação deste projeto de lei complementar representa um avanço significativo na promoção de um ambiente de trabalho mais justo e equitativo para os profissionais que atuam no setor de transporte remunerado privado individual de passageiros”.

O PLP 12/24, apresentado em março de 2024, tramita sob o regime de prioridade, já tendo sido despachado para as Comissões de Indústria, Comércio e Serviços; Trabalho; e Constituição e Justiça e de Cidadania.

A tramitação desse PLP dá forma ao raciocínio do ministro Cristiano Zanin, que, na ADIn 7.633, anotou: “O debate público em uma sociedade democrática deve ser robusto e desinibido e que em muitas matérias a deliberação amplia a qualidade epistêmica da decisão. Vale dizer, a qualidade da deliberação pública é proporcional à qualidade do debate público que antecede, no qual deve haver a participação de todos os possíveis afetados em igualdade de condições. Tal prática estimula a melhoria da qualidade das deliberações públicas”. É, em suma, o conceito de democracia deliberativa.

Acontece que, em paralelo ao referido projeto, tramita no STF o Tema 1.291 (RE 1.446.336), de relatoria do ministro Edson Fachin, que cuida do “reconhecimento de vínculo empregatício entre motorista de aplicativo de prestação de serviços de transporte e a empresa administradora de plataforma digital”. Ocorreu, inclusive, uma produtiva audiência pública acerca da questão nos dias 9 e 10 de dezembro de 2024.

A decisão que será tomada refletirá a compreensão hermenêutica da questão para o passado, ou seja, será aplicável ao estoque de processos frutos do contencioso que se ergueu na Justiça do Trabalho tentando definir a natureza jurídica do motorista que toma o serviço de tecnologia por meio da intermediação prestada pelas plataformas.

Pode, o STF, após responder a questão, identificar zonas de aperfeiçoamento ou indicações de inconstitucionalidades futuras a depender dos fatos vindouros? Sim. Se o fizer, é possível que, sofisticando a sua técnica decisória, alerte o Congresso para que envide todos os esforços em depurar preocupações sociais no PLP 12/24.

Recentemente, a Corte Suprema referendou a cautelar concedida pelo ministro Cristiano Zanin na ADIn 7.633, que tratava da lei 14.784/23 (desoneração da folha). Como o equacionamento da questão envolvia o Poder Legislativo, o ministro Zanin abriu caminho para um diálogo institucional entre o STF e o Congresso e, ao fazê-lo, justificou: “No Estado Democrático de Direito cabe a jurisdição constitucional fomentar a espacialidade da política, pois é ela o espaço tanto da disputabilidade intersubjetiva das diversas cosmovisões, como o lócus por excelência para o diálogo, para a construção de consensos possíveis à luz da Constituição. Portanto, a construção de solução adequada e eficiente que permita a apresentação de razões e a composição de interesses disponíveis, mormente àqueles atinentes à dimensão econômica da vida social deve se dar primordialmente na ambiência da política. E próprio dos seus afazeres promover a disputa e o diálogo e a busca da melhor solução que respeite a Constituição”. Sua conclusão foi a seguinte: “Decisões construídas coletivamente que são antecedidas desse debate tendem a ser mais respeitadas por todos os atores envolvidos”.

Noutra oportunidade, considerações relevantes foram feitas pelo ministro Nunes Marques e referendadas pelo plenário, nos autos da Pet 12.074. Tratava da concretização do Regime de Recuperação Fiscal de Minas Gerais. Eis trecho: “O Judiciário deve atuar de forma dialogada com os outros Poderes e a sociedade, de sorte que há três balizas por observar para a concessão, em parte, da prestação jurisdicional postulada na ação: (i) intervenção judicial mínima possível a viabilizar o alcance maximizado do objetivo; (ii) observância dos deveres constitucionais de cada Poder; e (iii) facilitação ou promoção de tratativas e de conduta cooperativa, transparente e solidária dos Poderes Legislativo e Executivo do Estado de Minas Gerais e da União”.

Não é só. No Tema 477 (RE 1.116.485), o ministro Luiz Fux enfatizou o seguinte: “Revela-se necessário o compartilhamento da tarefa de interpretar o sentido da Constituição, sem que se afirme a qualquer órgão a prevalência abstrata de assumir sempre a última palavra”. Para o ministro, “a interpretação constitucional deve perpassar por um processo de construção plural entre os Poderes estatais e os diversos segmentos da sociedade civil organizada, como um mecanismo contínuo, ininterrupto e republicano de construção de significados no qual cada um dos players envolvidos contribui ao embate dialógico, com suas capacidades específicas, sem se arvorar como intérprete único e exclusivo da Constituição, em busca do aperfeiçoamento de soluções democráticas às questões de interesse público”.

Essa postura institucional do STF reduz tensões entre os Poderes e retira combustível da narrativa maldosa de estrangulamento, pelo Supremo, do espaço decisório legítimo do Poder Legislativo. A esse respeito, inclusive, o ministro Cristiano Zanin, na citada ADIn 7.633, ponderou: “Em tempos de divisões, verifica-se raro engajamento de diversos atoras e atores, que diante de questão crucial para a economia brasileira para equacionar a melhor solução possível para esta temática. (…) Está comprovado nos autos o esforço efetivo dos Poderes Executivo e Legislativo Federal, assim como dos diversos grupos da sociedade civil para a resolução da questão. Portanto, cabe a jurisdição constitucional fomentar tais espaços e a construção política de tais soluções”.

O Tema 1.291, em tramitação no STF sob a relatoria do ministro Edson Fachin, tem que responder, à luz da CF/88, ao pedido posto no RE 1.446.336, que é esse: “Seja reformado o acórdão recorrido e reconhecida a inexistência de vínculo empregatício entre motoristas parceiros e as ora Recorrentes”. Há vínculo ou não?

Respondido o requerimento do recorrente, o caso terá sido julgado. Mas, ainda que o ministro Edson Fachin (ou a Suprema Corte) anteveja zonas de vulnerabilidades futuras caso fatos inerentes à atividade se consolidem contrariamente à Constituição, é possível que exorte o Congresso Nacional a agir, no bojo do PLP 12/24.

Parece-me prudente manter aberto o caminho para que o Congresso Nacional resolva legislativamente a situação e esse caminho seria embaraçado caso o STF, deixando de se limitar a conceder ou não o pedido do recurso, erigisse algum tipo de regulação a partir da criação judicial. Como pontuou o ministro Edson Fachin, a jurisdição constitucional “não pode ser utilizada para inviabilizar a aprovação de projetos de lei, pois tal prática, além de estar em desacordo com a sua função, viola o princípio da separação de poderes” (ADIn 7.081).

Essa linha encontra ressonância na Primeira turma do STF, pelo julgamento da cautelar na Rcl 60.347, da Cabify, em que a ministra Cármen Lúcia afirmou serem “modelos novos, para os quais é preciso que os legisladores e governantes pensem quais são as formas para o provimento desses direitos”, tendo sido secundada pelo ministro Cristiano Zanin, que arrematou: “Uma outra forma de contratação que eventualmente possa merecer uma nova legislação que discipline a matéria, mas não na forma da CLT”.

Não há omissão legislativa no tema (o PLP foi apresentado em março de 2024), não há vazios normativos na conformação jurídica da inovação tecnológica no Brasil, não há recalcitrância do Congresso Nacional em contemplar demandas sociais nas leis do país. Cumpre à Suprema Corte, no exame do Tema 1.291, considerar essas verdades.

Como se disse, tudo se circunscreve à separação de poderes que, na CF/88, aparece no art. 2º com a seguinte redação: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”; e que, na construção poética de Robert Frost, é posta de forma didática: “Boas cercas fazem bons vizinhos”.

1 Tavares, André Ramos. A nova matrix: direito (re)programado na civilização plataformizada. São Paulo: Etheria Editora, 2024, p. 28.

2 Trecho do prefácio feito à obra do ministro André Ramos Tavares, anteriormente citada.

Fonte: Migalhas

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