A ata notarial para usucapião é debatida devido à sua utilidade no processo administrativo e as limitações do notário ao atestar a posse e o tempo de uso
O presente estudo tem o objetivo de abordar questões que envolvem os desafios enfrentados pelos usuários do sistema notarial e registral ante a imposição da realização de novas atas notariais ou “complementares” na hipótese em que, seja pela sucessão hereditária, ou pela transmissão gratuita ou onerosa através da cessão de direitos, ocorra a superveniente transmissão da posse ad usucapionem para terceiros, até então estranhos ao processo administrativo de regularização imobiliária.
Por primeiro, é imprescindível compreender o papel da ata notarial para fins de usucapião, notadamente porquanto há muita celeuma envolvendo a sua imprescindibilidade no processo administrativo de regularização imobiliária, especialmente porquanto a norma administrativa do Conselho Nacional de Justiça, assim como Normas de Serviço das Corregedorias Gerais das Justiças Estaduais, além da jurisprudência, empregam à ata notarial uma importância que, a depender do caso concreto, não deveria ter na formação do convencimento do registrador no procedimento administrativo de usucapião.
Não obstante a atecnia que se apresenta na atribuição da atestação da posse ad usucapionem por meio da ata notarial, sobretudo ante a impossibilidade de se apurar, pelo notário, o implemento do lapso temporal (fato pretérito), esse artigo tem como foco abordar também questões de ordem prática, que muitas vezes envolvem exigências infundadas por parte dos delegatários. Note-se que o próprio art. 402, §3º, do provimento 149/23, do CNJ, preconiza que “finalizada a lavratura da ata notarial, o tabelião deve cientificar o requerente e consignar no ato que a ata notarial não tem valor como confirmação ou estabelecimento de propriedade, servindo apenas para a instrução de requerimento extrajudicial de usucapião para processamento perante o registrador de imóveis”, sendo vedado ao notário estabelecer o juízo de valor.
Para muitos, a ata notarial para fins de usucapião teria a função primordial de atestação de fatos (com natureza jurídica de ato-fato-jurídico), no sentido de trazer elementos para a formação da convicção do registrador (o destinatário da prova), subsidiando o seu convencimento na análise das características e a qualidade a posse, a existência dos atos exteriorizadores do animus domini, a inexistência de oposição, pacificidade, continuidade, ausência de interrupção, moradia habitual (em casos específicos), além do tempo. Esse deveria ser o conteúdo elementar da ata notarial, a qual, em muitos casos (mas não em todos), poderia sim trazer informações pertinentes para o registrador.
O professor Marcus Vinicius Kikunaga, em sua obra “Direito Notarial e Registral à luz do Código de Defesa do Consumidor”, por outro lado, defende que:
“sendo a ata notarial stricto sensu um instrumento de prova, notamos seu descompasso com o procedimento de reconhecimento de usucapião, na esfera extrajudicial, pela atribuição dada ao Oficial do Registro de Imóveis de reconhecer a presença dos pressupostos e requisitos da usucapião, a depender do conjunto probatório prenotado pelo advogado diretamente na serventia. (…) Desse modo, se a POSSE é um fato, como o Tabelião de Notas teria condições técnico-jurídicas para identifica-lo, se lá no imóvel ele não reside, nem é vizinho? Outrossim, a fé pública do Tabelião de Notas não confere a ele poder jurisdicional de RECONHECIMENTO DE UM FATO, mas tão somente autenticar a vontade e os fatos que ele presencia. (…) O pressuposto do tempo torna-se refém da documentação dos momentos passados, excluindo da ata notarial sua função, tornando-a um instrumento vazio pela impossibilidade de cumprimento de seu bem jurídico, ou seja, impossível será, ao notário ATESTAR O TEMPO, quando lhe é vedado emitir juízo de valor nas atas notariais”1.
Nesse sentido, o desembargador Ricardo Dip sustenta que:
“Questão diversa está em saber se, com efeito, é possível que, de maneira corrente, possa o tabelião atestar o tempo de uma posse, na medida em que a atestação notarial é resultante de sua pessoal captação e percepção de fatos sensíveis. Ou seja: para viabilizar-se que um tabelião ateste o tempo de uma posse é indispensável que o tabelião haja, por si próprio, captado e percepcionado sensivelmente todo o tempo dessa posse – ou, em outras palavras, a posse durante todo o seu tempo. Se, diversamente, o tabelião capta uma parte de tempo da posse ou apenas a notícia – trazida por terceiros – do tempo de que se trate, não será possível atestar-lhe o tempo integral, porque a fé notarial, atributo da atestação, exige sempre a captação e a percepção, pessoal e indireta pelo notário, do fato sensível objeto (ou seja: a posse). (…) Assim, de comum, não será possível observar a exigência legal de que o tabelião ateste o tempo de posse, de tal sorte que a atestação correspondente, não atraindo fé pública, apenas constitui uma asserção de valor testemunhal simples, suscetível não só de revolvimento extrajudicial (ao revés do que se passa com as afirmações sigiladas com a fé do notário, apenas sindicáveis na jurisdição), mas até mesmo submetida à qualificação registral (o registrador pode, de fato, apreciar o tempo de posse “atestado” pelo tabelião)”2.
Por segundo, temos que, uma vez confeccionada a ata notarial, se os requerentes decidem ceder gratuita ou onerosamente os seus direitos para terceiros que, nesse caso, pelo comando do art. 1.243/CC se valerão da acessio possessionis, não é crível que se exija dos “novos possuidores” a confecção de mais uma ata, quando preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos ainda nas mãos dos cedentes.
Como modo originário de aquisição da propriedade, a usucapião tem efeito ex tunc, ou seja, por ser meramente declaratória do domínio, seus efeitos retroagirão ao último dia do implemento do lapso temporal da prescrição aquisitiva. Logo, uma vez operada a prescrição aquisitiva (15, 10, 5 ou até 2 anos) nas mãos dos cedentes, ali já teríamos operada a aquisição do domínio.
Qual é o motivo, deste modo, de se exigir uma nova ata para apenas e tão somente alterar os nomes dos requerentes? A propósito, “requerentes” no quê? Será que é a ata notarial o documento que inaugura o processo administrativo no registro de imóveis? Ou seria o requerimento firmado pelo advogado, que está para o extrajudicial como a petição inicial está para o judicial, o verdadeiro impulso oficial que retira o julgador da inercia (aqui princípio da rogação)? A “emenda”, se o caso, seria no requerimento e nunca na ata.
Onerar as partes com o custeio de novos emolumentos, muitas vezes elevadíssimos, para uma nova ata que traga “um nada existencial”, é medida ineficaz, desproporcional e desarrazoada, e que demonstra no mínimo um distanciamento do direito material e processual. Tal exigência pode negar a vigência à prestação do serviço público essencial que, aqui, se assemelha (por que não?), à própria negativa da prestação jurisdicional do Estado, na medida em que, se hoje a função da desjudicialização é devolver ao jurisdicionado a possibilidade de se autodeterminar quando há consenso e capacidade, vê-se que os processos judiciais estão reservados ao contencioso (ou pelo menos esta é a utopia).
Vemos, por exemplo, que em muitos despachos inaugurais dos processos de usucapião, alguns magistrados inclusive mencionam que atualmente o extrajudicial é a regra, e que a parte deve esclarecer nos autos o motivo de não ter buscado a via administrativa. O TJ/RJ, por seu turno, emitiu o enunciado 108, do aviso conjunto TJ/CEDES 22/15, no sentido de que a usucapião extrajudicial é regra, obstando a propositura de ações que eram extintas sem resolução do mérito ante a suposta ausência de interesse processual3. Contudo, o colendo STJ negou vigência ao equivocado entendimento, com fundamento na garantia constitucional da inafastabilidade da jurisdição4.
Dito isto, não podemos alçar a ata notarial a uma super prova para a formação do livre convencimento do oficial, acima de todas as demais, sob pena de criar uma espécie de prova tarifada, o que é vedado em nosso sistema processual. Há outras formas de convicção do registrador que devem ser sopesadas com as demais provas dos autos. Ora, se há uma aquisição derivada dos direitos possessórios (art. 1.243/CC5), cabe ao destinatário ponderar sobre os elementos colhidos na ata notarial com as demais provas, tais como o superveniente contrato de cessão de direitos, a inexistência de ações reais e possessórias que envolvam os cessionários, contas de consumo, pagamento de impostos, entre outros.
Nessa mesma linha, no que se refere à sucessio possessionis, quando há a transmissão da posse ad usucapionem pelo falecimento do requerente, por exemplo, dias antes da prenotação do requerimento no registro, é possível a dispensa de uma nova ata notarial, quando evidenciada a continuidade da posse pelos herdeiros por outros documentos, nos mesmos moldes do referido art. 1.243, agora combinado com o art. 1.7846, ambos do CC (princípio droit saisine).
Qual seria a eficácia notarial (princípio) de uma ata que apenas e tão somente qualificaria os novos possuidores e, talvez, traria alguns elementos residuais sobre uma prescrição aquisitiva que já se operou (ex tunc) como dito acima?
A ata notarial para fins de usucapião tem natureza de prova indiciária, que pode sim ser complementada por outros elementos idôneos, sobretudo pela prova documental que, na nesta modalidade de regularização imobiliária, é indispensável no processo administrativo ou judicial, sendo certo que há sérios entraves na compressão da redação contida nos incisos I e IV, do art. 216-A, da lei de registros públicos7:
I – ata notarial lavrada pelo tabelião, atestando o tempo de posse do requerente e de seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias (destaquei).
IV – justo título ou quaisquer outros documentos que demonstrem a origem, a continuidade, a natureza e o tempo da posse, tais como o pagamento dos impostos e das taxas que incidirem sobre o imóvel (destaquei).
Ora, se no processo judicial o magistrado não está vinculado ao conteúdo da ata notarial do artigo 384, do Código de Processo Civil8 para formar a sua convicção, sobretudo porque cabe ao julgador, com base no livre convencimento motivado, aferir os demais elementos dos autos, podendo inclusive decidir contra as percepções do notário, tal regra se aplica perfeitamente ao registrador cuja decisão não está adstrita ao conteúdo da ata quando dissociado das demais provas dos autos.
Cabe ressaltar que no Estado de São Paulo, o egrégio Conselho Superior da Magistratura, com todo respeito e devido acatamento, analisou de modo horizontal a tese da facultatividade da ata notarial, deixando de apreciar a tese que trata dos impactos negativos que a sua imprescindibilidade a qualquer custo gera na regularização imobiliária9-10.
Questiona-se qual a eficácia das chamadas atas manifestamente vazias de conteúdo probatório? Como superar a autonomia e independência do notário quando o registrador exige que ele conste da ata outros elementos, refutados pelo tabelião que insiste em não os considerar em sua redação? Como enfrentar os desafios interioranos deste país quando usuários, que contam com apenas um notário em sua cidade, absolutamente avesso à ata notarial e, quando muito o faz, se limita a copiar e colar, em uma lauda e meia, os nomes, qualificação, descrição do imóvel, reprodução do conteúdo de documentos e, no final, entregar um documento insubsistente?
De ver-se que esses poucos exemplos, retirados de tantas outras agruras que passa a advocacia extrajudicial quando se depara com determinações manifestamente infundadas, exigirão que o registrador aplique com seriedade e responsabilidade o devido processo civil constitucional, no sentido de garantir à parte todos os meios de provas em direito admitidas, com a boa vontade de analisar com máxima amplitude as demais provas produzidas, sem que se escore na ata notarial como único elemento de aferição do implemento do animus domini e da prescrição aquisitiva.
Não nos olvidemos que sistema é claro (ou pelo menos deveria ser) no sentido de que a ata notarial poderá ser utilizada, conforme o caso, sendo que os requisitos subjetivos e objetivos da usucapião poderão ser provados por outros elementos, tanto que, mesmo que com a lavratura da ata notarial, admitem-se diligências11 pelo próprio registrador como, por exemplo, o procedimento de justificação administrativa (art. 216-A, §15, LRP12).
Deste modo, arrematamos que, na hipótese de haver a soma das posses (acessio ou sucessio possessionis) pelos cessionários ou herdeiros, quando consolidada a prescrição aquisitiva da propriedade nas mãos do antecessor (cedente ou falecido), é perfeitamente possível a reunião de outras provas na formação da convicção do registrador, sendo que a exigência isolada de ata complementar depõe sobremaneira contra os direitos material e processual, sobretudo porque relega a parte ao cumprimento de um ônus ineficaz, desproporcional e desarrazoado, ao arrepio do devido processo legal constitucional, inclusive.
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1 KIKUNAGA, Marcus. Direito notarial e registral à luz do Código de Defesa do Consumidor: visão estruturada da atividade extrajudicial / Marcus Kikunaga. – São Paulo: Editorial Lepanto, 2019, páginas 336/337- 339.
2 DIP, Ricardo Des. Usucapião: julgados para o extrajudicial / organização e prólogo Des. Ricardo Dip. – 1. ed. – São Paulo: Editorial Lepanto, 2020, páginas 31/32.
3 Enunciado 108: A ação de usucapião é cabível somente quando houver óbice ao pedido na esfera extrajudicial. Justificativa: A usucapião, como todo e qualquer processo, precisa preencher determinadas condições, dentre as quais o interesse processual, que é exatamente a necessidade de a parte buscar na via jurisdicional o que não poderia conseguir extrajudicialmente. Dessa forma, a usucapião que não encontre óbice ou empecilho em sede administrativa não tem acesso ao Poder Judiciário, exatamente como não tem, também, qualquer outro ato que possa ser praticado nos tabelionatos.
4 RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CPC/2015. AÇÃO DE USUCAPIÃO. INTERESSE PROCESSUAL. EXIGÊNCIA DE PRÉVIO PEDIDO NA VIA EXTRAJUDICIAL. DESCABIMENTO. EXEGESE DO ART. 216-A DA LEI DE REGISTROS PÚBLICOS. RESSALVA EXPRESSA DA VIA JURISDICIONAL. 1. Controvérsia acerca da exigência de prévio pedido de usucapião na via extrajudicial para se evidenciar interesse processual no ajuizamento de ação com o mesmo objeto. 2. Nos termos do art. 216-A da Lei 6.015/1973: “Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo […]”. 3. Existência de interesse jurídico no ajuizamento direto de ação de usucapião, independentemente de prévio pedido na via extrajudicial. 4. Exegese do art. 216-A da Lei 6.015/1973, em âmbito doutrinário. 5. Determinação de retorno dos autos ao juízo de origem para que prossiga a ação de usucapião. 6. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. (STJ – RECURSO ESPECIAL Nº 1.824.133 – RJ (2018/0066379-3) – TERCEIRA TURMA – Relator: MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO – julgamento: 11 de fevereiro de 2020).
5 Art. 1.243. O possuidor pode, para o fim de contar o tempo exigido pelos artigos antecedentes, acrescentar à sua posse a dos seus antecessores (art. 1.207), contanto que todas sejam contínuas, pacíficas e, nos casos do art. 1.242, com justo título e de boa-fé.
6 Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.
7 Art. 216-A. Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado, instruído com:
8 CPC: Art. 384. A existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião. Parágrafo único. Dados representados por imagem ou som gravados em arquivos eletrônicos poderão constar da ata notarial.
9 Registro de Imóveis Usucapião extrajudicial -Necessidade de instrução do requerimento com ata notarial – Art. 216, inciso I, da Lei nº 6.015/73 e art. 4º, inciso I, do Provimento nº 65, de 14 de dezembro de2017, da Corregedoria Nacional de Justiça Alegação de incompatibilidade da exigência formulada com a natureza jurídica e a finalidade da ata notarial. Exigência legal e normativa que não pode ser afastada, em procedimento de natureza administrativa, pelos fundamentos apresentados pelo apelante Dúvida julgada procedente Recurso não provido. (TJSP – Conselho Superior da Magistratura – Apelação nº 1002887-04.2018.8.26.0100 – Relator: Corregedor Geral da Justiça Desembargador PINHEIRO FRANCO) – julgamento: 30.10.2018).
10 REGISTRO DE IMÓVEIS – Usucapião extrajudicial – Recusa no processamento do pedido ante a falta de confecção de ata notarial -indispensabilidade de apresentação do documento para aparelhamento do pedido inicial – Recurso não provido. (TJSP – Conselho Superior da Magistratura – Apelação nº 1114209-92.2019.8.26.0100 – Relator: Corregedor Geral da Justiça Desembargador RICARDO ANAFE) – julgamento: 15.05.2020).
11 Provimento 149/2023/CNJ, Art. 414, caput: Para a elucidação de quaisquer dúvidas, imprecisões ou incertezas, poderão ser solicitadas ou realizadas diligências pelo oficial de registro de imóveis ou por escrevente habilitado.
12 § 15. No caso de ausência ou insuficiência dos documentos de que trata o inciso IV do caput deste artigo, a posse e os demais dados necessários poderão ser comprovados em procedimento de justificação administrativa perante a serventia extrajudicial, que obedecerá, no que couber, ao disposto no § 5o do art. 381 e ao rito previsto nos arts. 382 e 383 da Lei no 13.105, de 16 março de 2015 (Código de Processo Civil).
13 DIP, Ricardo Des. Usucapião: julgados para o extrajudicial / organização e prólogo Des. Ricardo Dip. – 1. ed. – São Paulo: Editorial Lepanto, 2020.
14 KIKUNAGA, Marcus. Direito notarial e registral à luz do Código de Defesa do Consumidor: visão estruturada da atividade extrajudicial / Marcus Kikunaga. – São Paulo: Editorial Lepanto, 2019.
Fonte: Migalhas
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