Em decorrência do advento da era digital o que antes era somente um espaço para interação entre familiares e amigos, nos dias de hoje trata-se de um ambiente complexo e altamente lucrativo, o qual necessita da atenção do jurídico
O espaço virtual passou a ser um ambiente de compartilhamento de informações em massa, consolidação de empresas através de branding, marketing digital e fonte de renda tanto para pessoas físicas como pessoas jurídicas.
Devido esse conjunto imaginável de relações distintas no mundo virtual, os elementos lá produzidos passaram a ser conceituados pelo direito como bens digitais, que podem ser classificados como (i) patrimoniais, (ii) existenciais ou (iii) híbridos.
Logo com inclusão dos bens digitais ao patrimônio do indivíduo abriu-se espaço para a chamada “herança digital”, a qual corresponde a um conjunto de bens constituído perante o ambiente virtual, responsáveis pelo armazenamento e geração de dados, perante sites, redes sociais, plataformas como, Itunes, Netflix, Youtube, IBook, entre outros (ZAMPIER, 2021).
Desse modo, a partir daí surgem novas problemáticas no que dizem a respeito às questões de sucessão de tais bens post morten, tendo em vista a ausência de regulamentação legal, a escassez de precedentes, a dificuldade em averiguar a natureza jurídica, a fim de garantir a não infringência de direitos fundamentais da intimidade do falecido, assim como direitos de terceiros.
Conforme mencionado, a transmissibilidade de tais bens como patrimônio suscetível de sucessão é indefinida no ordenamento jurídico brasileiro, ou seja, quando falamos em uma regulamentação legislativa acerca da herança digital, o Brasil não possui qualquer tipo de legislação específica.
Contudo, desde o ano de 2012 foram propostos alguns projetos de lei, como PL 4.099/12 (BRASIL, 2012), PL 7.742/17 (BRASIL, 2017) e a PL 8.562/17 (BRASIL, 2017), porém não obtiveram sancionamento.
De igual modo, se caso fossemos procurar alguma solução no ordenamento jurídico para enquadrar juridicamente as relações digitais podemos mencionar a (i) Lei de Direitos Autorais 9.610/19 (BRASIL, 2019), (ii) a Lei de Software 9.609/19 (BRASIL, 2019) e (iii) a Lei Geral de Proteção de Dados 13.709/18 (BRASIL, 2018).
Entretanto, vale ressaltar que, (i) a Lei de Direitos Autorais regulamenta somente os processos e não as informações ali geradas, já (ii) a Lei de Software, foi elaborada com o intuito de ser uma lei geral, não podendo legislar de forma específica sobre todas as disposições e (iii) a Lei Geral de Proteção de Dados define a somente a forma com que os dados dos usuários devem ser coletados e tratados.
Desse modo, em nenhuma das legislações acima mencionadas trata de fato a forma que deve ser efetuada a transmissibilidades de tais bens digitais do falecido.
Diante desta situação, mostra-se a necessidade de preencher tais lacunas por meio de construções doutrinárias e jurisprudenciais.
A vista disso, no que tange ao entendimento doutrinário para Lacerda e Zampier (2017) deve-se valer a classificação dos bens digitais para assim determinar sua destinação.
Isto é, estando diante de um bem de natureza patrimonial, deve-se permitir a transferência, seja por ato inter vivos ou mortis causa, pois se trata de objetos de valor econômico que integram esta nova noção de patrimônio.
Entretanto, o dilema está em torno dos bens digitais de caráter existencial, ou seja, os quais não possuem características econômicas. A vista disso, devido à ausência de legislação a destinação de tais bens ainda é objeto de discussão no mundo jurídico.
Isto é, muitos entendem pela inviabilização da transmissibilidade, tendo como objetivo a proteção da privacidade, a intimidade, a reputação, a esfera privada do morto ou do terceiro envolvido (LACERDA; ZAMPIER, 2017).
Ainda o Tribunal de Justiça de Minas Gerais entendeu nesse sentido:
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. HERANÇA DIGITAL. DESBLOQUEIO DE APARELHO PERTECENTE AO DE CUJUS. ACESSO ÀS INFORMAÇÕES PESSOAIS. DIREITO DA PERSONALIDADE. A herança defere-se como um todo unitário, o que inclui não só o patrimônio material do falecido, como também o imaterial, em que estão inseridos os bens digitais de vultosa valoração econômica, denominada herança digital. A autorização judicial para o acesso às informações privadas do usuário falecido deve ser concedida apenas nas hipóteses que houver relevância para o acesso de dados mantidos como sigilosos. Os direitos da personalidade são inerentes à pessoa humana, necessitando de proteção legal, porquanto intransmissíveis. A Constituição Federal consagrou, em seu artigo 5º, a proteção constitucional ao direito à intimidade. Recurso conhecido, mas não provido. (TJ-MG – AI: 10000211906755001 MG, Relator: Albergaria Costa, Data de Julgamento: 27/1/22, Câmaras Cíveis / 3ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 28/1/22).
Já por outro lado, há entendimentos que são baseados no interesse da família, a fim de dar-lhes o poder da destinação de tais bens digitais deixados pelo de cujus.
Nesse viés, o Juiz da 1ª Vara do Juizado Especial Central de Campo Grande, estado do Mato Grosso do Sul, nos autos 0001007-27.2013.8.12.0110 deferiu a liminar a fim de determinar que o perfil de uma adolescente fosse excluído mediante pedido da própria genitora, assim expõe:
Assim, a autora possui legitimidade para pleitear o bem da vida consistente na exclusão do perfil de sua falecida filha do Facebook, razão pela qual o pedido liminar deve ser acolhido.
Posto isso, DEFIRO o pedido liminar para determinar que seja excluído o perfil pertencente a Juliana Ribeiro Campos do Facebook Serviços On Line do Brasil Ltda, conforme documento de fl. 12, sob pena de multa diária no valor de R$ 500,00 (quinhentos reais), limitada a quinze dias, em caso de descumprimento da medida que desde já estabeleço.
Portanto, em decorrência da desenfreada modernização no Brasil, o país é extremamente carente de previsão legislativa, e em razão da ausência de regulamentação legal própria acerca da herança digital, é indiscutível que em um futuro próximo perante os Tribunais os lígios e as contradições nas decisões proferidas aumentem de forma exponencial.
A vista disso, é indiscutível a ausência de regulamentação legal acerca do tema, e por este motivo, no momento, o ideal é sobrepesar as vantagens e desvantagens que a transmissibilidade dos bens pode gerar em face do próprio falecido, dos familiares e de terceiros que indiretamente estão vinculados, sendo assim a análise de cada caso concreto é de extrema importância.
Fonte: Migalhas
Deixe um comentário