Novel precedente do STJ indica surgimento da hipótese, até então, não contemplada pela jurisprudência acerca da possibilidade de usucapião de fração ideal em condomínio pro indiviso

 

Suponhamos que A, B e C são coproprietários de uma casa residencial em partes iguais, ou seja, a terça parte é matricialmente titularizada por cada um desde sua origem aquisitiva.

 

Indo além na suposição, há mais de 16 anos B não cumpre com suas obrigações para com a res, conforme postula o caput do artigo 1.315 do Código Civil1, sendo suportado por A as despesas de manutenção, reforma e IPTU em duas terças partes, mantendo-se C na concorrência de uma terça parte.

 

Ressalte-se, ficticiamente, que o imóvel em questão se encontra locado. A e C percebem, nas mesmas proporções das despesas suportadas, o aluguel.

 

Considerando na situação acima proposta que B, ciente de relação locatícia e de suas obrigações voluntariamente não adimplidas para com o condomínio, se recusa a concorrer com os débitos, jamais pleiteou sua terça parte dos alugueres, nega-se a alienar, ou renunciar sua fração ideal conforme artigo 1.316 do Código Civil2, poderia, então, A pleitear usucapião extraordinária, posto que não há justo título, para encerrar duas terças partes do imóvel, por estrito cumprimento da função social da propriedade e, em conjunto com a terça parte de C, perfazerem a integralidade da titularidade da casa residencial?

 

Até meados deste ano de 2022, no Brasil tínhamos, com relação ao entrelace dos temas usucapião e condomínio tradicional, vislumbrava-se duas possibilidades amplamente seguidas pela jurisprudência e admitidas pela majoritário doutrina.

 

Uma delas, por tese inaugurada em dissertação apresentada à Faculdade de São Paulo por Francisco Morato em 19173, estabeleceu-se a possibilidade de usucapião em condomínios tradicionais. Todavia, este posicionamento partiu de um pressuposto umbilical: a posse pro diviso.

 

Em breves linhas, na seara do condomínio tradicional, diante da multiplicidade de titulares de um mesmo bem, teremos sempre a incidência da natureza pro indiviso, como regra geral. Isso nos leva à concepção de que todos os coproprietários detém a titularidade sobre a integralidade da res comum.

 

Porém, a constatação acima se infere no viés estritamente jurídico, constatável por mera leitura da matrícula do imóvel, onde constará Da especialidade subjetiva (qualificação), indicação de todos os titulares que forma o condomínio ordinário.

 

Ao trazermos o elemento posse, na seara fática (in loco), podemos nos deparar com a situação de posse pro diviso, onde algum dos titulares mantém relação jurídica com o imóvel destoando situação jurídica da copropriedade, exercendo posse exclusiva sobre uma fração ideal localizada do imóvel.

 

Esclarece-se melhor por meio do exemplo de um imóvel rural com 3 coproprietários, sendo que 1 destes cerca uma fração do imóvel rural com frente para uma via de acesso, exercendo posse sobre uma área determinada de um imóvel maior.

 

No caso acima, consoante lições inauguradas por Francisco Morato, vislumbrar-se-ia possibilidade do condômino, diante do exercício exclusivo da posse sobre parte do todo, visivelmente constatável de fato, cumprido o lapso temporal e demais requisitos da prescrição aquisitiva, ter declarada, por usucapião de fração ideal localizada, a titularidade integral da fração que delimitou.

 

No caso trazido na epígrafe deste artigo, somente seria possível tal hipótese se a casa residencial e seu respectivo terreno comportem divisão física da res. Do contrário, nos deparamos com a impossibilidade jurídica desta modalidade. Vale ressaltar que, em que pese a existência das frações mínimas de parcelamento de imóvel rurais e metragens mínimas de terreno admitidas pelas municipalidades, o STJ tem se posicionado no sentido de que a usucapião constitucional pro labore ou pro moradia podem ser deferidas em imóvel que não cumpram os mínimos mencionados.

 

A outra hipótese ventilada para solução do caso se mostra, com clareza, na ementa do longínquo acórdão relatado e proferido aos 31/10/1975 pelo saudoso Ministro Moreira Alves, no Recurso Extraordinária 79.8344:

 

“AÇÃO DE DIVISAO DE CONDOMINIO. ADMITE-SE USUCAPIAO POR UM DOS CONDOMINOS, DE TODO O IMÓVEL, QUANDO ELE PROVE POSSE PROPRIA (POSSE COM A INTENÇÃO DE TER A COISA EXCLUSIVAMENTE PARA SI), DECORRENTE DE ATOS INEQUIVOCOS. EXTINTO, ASSIM, O CONDOMINIO, NÃO HÁ QUE PRETENDER-SE A DIVISAO DO QUE JA NÃO EXISTE EM COMUM. ACÓRDÃO, QUE, COM BASE NA PROVA, JULGA IMPROCEDENTE AÇÃO DIVISORIA POR ENTENDER EXISTENTE O USUCAPIAO EM FAVOR DE UM DOS CONDOMINOS SOBRE A TOTALIDADE DO IMÓVEL, NÃO VIOLA O ARTIGO N 629 DO CÓDIGO CIVIL, NEM O ARTIGO 415 DO ANTIGO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO CONHECIDO.” (grifo nosso)

 

Nesta segunda hipotética solução ao caso, a possibilidade da usucapião surgiria se, no caso em epígrafe, C também tivesse inadimplente com suas obrigações de condômino e não percebesse aproveitamento econômico do imóvel, que seria integralmente exercido por A, no intuito de a este deferir a propriedade integral em substituição ao condomínio tradicional inscrito no Registro Imobiliário.

 

Mesmo raciocínio se aplica ao herdeiro que, após abertura da sucessão, apesar de ser condômino dos bens integrantes do espólio, mantém posse exclusiva sobre um dos bens, possibilitando que este tenha em seu favor declarada a titularidade por prescrição aquisitiva5.

 

Assim, diante da duas hipóteses possível, a solução pretendida em nosso caso hipotético para A se mostraria inviável, consoante jurisprudência e doutrina dominantes desde o Código Civil de Beviláqua.

 

A impossibilidade de exercício da posse sobre uma composse, engessando a usucapião da fração ideal matricial da res, tem seu fundamento nas ínclitas lições de Carla Modina Ferrari e Henrique Ferraz de Mello6 ao explanarem sobre o instituto jurídico composse:

 

“Ela deriva do estado de comunhão pro indiviso. Não há necessidade de todos estarem presentes vigiando a coisa, por exemplo. Basta que um a vigie para que se presuma fazê-lo em nome dos demais”.

 

Porém, no direito privado estrangeiro, em Portugal e na Região Administrativa Especial de Macau, se vislumbra a possibilidade da solução pretendida a A no caso hipotético deste artigo.

 

Com relação a Portugal, temos a decisão datada aos 11/11/97, também citada na esplendida obra de FERRARI e MELLO, no acórdão oriundo do Supremo Tribunal de Justiça Lusitano, cujo sumário traz o seguinte trecho no sumário7:

 

“Cada um dos compossuidores não tem necessariamente de exercer a posse sobre toda a coisa – basta que um dos compossuidores utilize materialmente uma parte concreta da coisa, ao abrigo do disposto no artigo 1406 do CCIV, sem prejuízo de tal modo do exercício significar a posse da respectiva quota ideal.” (grifo nosso)

 

Em Macau, em decisão proferida pelo Tribunal de Segunda Instância aos 15/9/11, destaca-se parcial do relatório da decisão8:

 

“9. A quota parte ou quota ideal de um prédio é usucapível;

 

  1. A invocação da usucapião apenas é vedada por obstáculos legais expressos, o que não é o caso da aquisição de uma quota parte ou parte ideal;

 

  1. O pedido do A, para que fosse declarado proprietário de 2/3 do prédio em causa não conflitua com o direito de propriedade de 1/3 do imóvel titulado pelo seu filho;”

 

Na linha deste raciocínio, em acórdão proferido aos 3/5/22 no REsp 1.840.561/SP, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça Brasileiro, por relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze, foi admitida a tese já praticada em Portugal e Macau.

 

Tal recurso especial teve origem na 1ª Vara dos Registros Públicos da Capital do Estado de São Paulo, onde, no caso concreto, a autora da pretensão aquisitiva, quando ainda casada sob regime da comunhão universal de bens com o demandado, recebeu, de seus genitores, 15,47% da propriedade de dezenas de apartamentos.

 

Por ocasião do fim do matrimônio de ambos, os ex-cônjuges não realizaram a partilha da referida fração ideal dos inúmeros imóveis, de forma que a autora da ação contribuiu, por mais de 20 anos, com todas as despesas nas proporções da fração ideal de 15,47%, bem como percebeu alugueres de mesma fração, fato jamais contestado pelo demandado e ex-cônjuge além do necessário ínterim vintenário vigente antes do CC/02.

 

Por estes motivos, considerando a posse com animus domini da autora sobre a fração ideal de 15,47%, sem oposição dos demais titulares da propriedade, além desta arcar com as proporcionais obrigações para com o condomínio tradicional e, sobretudo, explorar economicamente a totalidade de percentual outrora comum ao casal sob a forma de recebimento de alugueres, lhe foi deferido o domínio da fração outrora comum ao casal9:

 

“É incontroverso, inclusive, que a autora recebe aluguéis de imóveis os quais busca a usucapião, sendo que o contestante jamais reivindicou tais frutos.

 

Comprovou também que tem a posse sobre os imóveis, permanecendo com essa posse ao longo de todos esses anos, sem qualquer espécie de oposição.” (grifo nosso)

 

Em recurso de apelação interposto pelo vencido, a 7ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, aos 7/2/18, a decisão foi mantida, inclusive, destacando a Colenda Câmara, que o fato da autora locar os bens para terceiros não a qualificaria como mera administradora, mas sim, reforço do animus domini que embasa a procedência da usucapião da fração ideal.

 

Inconformado com o acórdão, recorreu o vencido ao STJ conforme mencionado REsp 1.840.561/SP, do qual extraímos a didática explanação jurídica:

 

“Dessas assertivas, infere-se que a administração do bem imóvel por um dos condôminos, ainda que implicitamente, pressupõe o rateio das despesas e o repasse dos frutos advindos da coisa aos demais condôminos. Não se realizando tais providências e inexistindo reivindicação dos frutos e direitos sobre o bem pelos demais condôminos, presume-se que estes abdicaram do seu direito, justificando-se a inferência de que a posse do condômino que efetivamente percebeu (e percebe) os direitos decorrentes da coisa tenha se dado com animus domini.

 

Portanto, conclui-se que a posse de um condômino sobre bem imóvel exercida por si mesma, com ânimo de dono, ainda que na qualidade de possuidor indireto, sem nenhuma oposição dos demais coproprietários, nem reivindicação dos frutos e direitos que lhes são inerentes, confere à posse o caráter de ad usucapionem, a legitimar a procedência da usucapião em face dos demais condôminos que resignaram do seu direito sobre o bem, desde que preenchidos os demais requisitos legais.” (grifo nosso)

 

E continua:

 

“Do que se depreende das circunstâncias delineadas pelas instâncias ordinárias, após o fim do matrimônio houve completo abandono, pelo recorrente, da fração ideal pertencente ao casal dos imóveis usucapidos pela ex-esposa, ora recorrida, sendo que esta não lhe repassou nenhum valor proveniente de aluguel nem o recorrente o exigiu, além de não ter prestado conta nenhuma por todo o período antecedente ao ajuizamento da referida ação.” (grifo nosso)

 

Pelos dispositivos das decisões mencionadas, podemos concluir pela eventual possibilidade da usucapião de fração ideal em condomínio pro indiviso, consideradas algumas reflexões.

 

Há uma tênue linha entre presunção de representação do condômino que administra a res e a posse com animus domini da fração ideal, de forma que, no particular nosso entendimento, o proveito econômico da fração ideal se mostra tão valioso quanto os demais requisitos da usucapião.

 

Ora, no caso hipotético epigrafado, se A somente arcasse com as despesas em lugar de B, sem, contudo, perceber os frutos que a este competiriam, teríamos, com toda certeza, a invocação do artigo 1.324 do Código Civil, cabendo a A, tão somente, pleitear de B a restituição dos valores dispendidos na qualidade de administrador da coisa comum, lastreado no caput do artigo 1.315 do Código Civil10.

 

Por esta razão concluímos que há possibilidade de usucapião da fração ideal, em condomínio tradicional pro indiviso, por outro condômino sem, contudo, extinguir a relação condominial por existência de outros coproprietários ou sem necessidade de estremar a fração ideal localizada possuída com animus domini, desde que se cumpra pelo usucapiente condômino, além dos requisitos basilares da usucapião, não só o suporte das despesas em parcela proporcional à sua fração ideal somada à do coproprietário inerte, mas também, a percepção do resultado da exploração econômica na proporção da fração ideal própria somada à objeto da pretensa usucapião.

 

Assim, o condômino usucapiente deve, para transmutar a natureza ope legis de representante insculpida no artigo 1.324 do Código Civil para o animus domini deve, além de cumprir a posse mansa, pacífica, contínua, duradoura e de boa-fé sobre a fração ideal, aproximar-se, com extrema veemência, do cumprimento estrito da função social, de forma que a obrigação prevista no artigo 1.315 do Código Civil e o direito legítimo do artigo 1.326 do Código Civil11 sejam exercidos pelo pretenso usucapiente, para que os débitos e frutos da coisa comum sejam, respectivamente, adimplidos e partilhados sem contemplar o condômino. Este último, por sua vez, mantendo-se inerte, descumpre seus deveres para com os condôminos e, principalmente, para com a função social da propriedade privada, deferindo ao coproprietário o animus domini não só sobre a sua própria fração ideal, mas também sobre a fração ideal do sovino coproprietário, viabilizando a prescrição aquisitiva.

 

Fonte: Migalhas

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