Em 7 de novembro de 2023, o CNJ promoveu um seminário para discutir os resultados da Ação 12/19 da Enccla, visando integrar notários e registradores no combate à lavagem de dinheiro. Foram abordadas novas diretrizes e a necessidade de reformulação do Provimento CNJ 88/2019 para simplificar as orientações do CNJ
Introdução
No último dia 7 de novembro de 2023, o CNJ1 realizou o Seminário Atuação dos Cartórios Extrajudiciais no Combate à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento ao Terrorismo2, cujo objetivo foi debater os resultados da Ação 12/193 da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro – Enccla, que procurou integrar notários e registradores no combate e prevenção aos crimes de lavagem de dinheiro e corrupção.
No decorrer do referido Seminário, foram discutidas novas diretrizes para a contribuição de notários e registradores no combate à lavagem de capitais e ao financiamento ao terrorismo, bem como para o aprimoramento das comunicações de operações atípicas à Unidade de Inteligência Financeira4 pelos serviços notariais e de registo5.
A tônica do evento orbitou em torno dos seguintes aspectos: i) necessidade de reformulação do Provimento CNJ 88/196, incorporado pelo Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ7, para simplificação das diretrizes do CNJ sobre política, procedimentos e controles internos a serem adotados pelos notários e registradores visando à prevenção dos crimes de lavagem de dinheiro; ii) aperfeiçoamento das comunicações encaminhadas ao COAF8 – Conselho de Controle de Atividades Financeiras -, em decorrência da elevada quantidade das notificações encaminhadas pelos cartórios e registradores e da reduzida qualidade dessas mesmas informações; iii) estruturação de programas de fiscalização pelas Corregedorias de Justiça dos Estados e do Distrito Federal para avaliar os programas de compliance implementados pelos cartórios e registradores no combate à lavagem de capitais; e iv) maior de treinamento dos notários, dos registradores, oficiais de cumprimento e empregados contratados, com o intuito de aumentar a efetividade das comunicações dos cartórios extrajudiciais ao COAF.
No âmbito do presente artigo, procura-se lançar luzes sobre o papel dos notários e registradores no combate à lavagem de capitais, apresentar informações que corroborem com o necessário aperfeiçoamento das comunicações encaminhadas por cartórios extrajudiciais à unidade de inteligência financeira, bem como discutir propostas para a estruturação de programas de fiscalização a serem executadas pelas Corregedorias de Justiça dos Estados e do Distrito Federal para avaliar as políticas, procedimentos e controles internos dos notários e registradores no combate à lavagem de capitais e ao financiamento ao terrorismo.
Papel dos notários e registradores no combate à lavagem de dinheiro
A lei de Lavagem de Capitais9 estabelece algumas obrigações que devem ser observadas por determinados agentes públicos e privados para a prevenção à lavagem de capitais e ao financiamento ao terrorismo, entre os quais encontram-se os registros públicos10, incluindo os tabeliães de notas, tabeliães e oficiais de registro de contratos marítimos, tabeliães de protesto de títulos, oficiais de registro de imóveis e oficiais de registro de títulos de documentos e civis de pessoas jurídicas.
Entre as obrigações que devem ser cumpridas pelos referidos atores, encontram-se a correta e necessária identificação dos clientes, a manutenção de registros relacionados a toda e qualquer transação econômica que ultrapassar determinado valor, bem como a adoção de políticas, procedimento e controles internos, compatíveis com seu porte e volume de operações11.
Além disso, o normativo legal estipula que as pessoas obrigadas a colaborar com o combate à lavagem de capitais devem realizar, em determinados casos, a comunicação de operações financeiras ao COAF, se abstendo de dar ciência de tal ato a qualquer pessoa, notadamente àquela a respeito da qual se refira a informação12.
De acordo com o COAF13, as comunicações dos setores obrigados podem ser de dois tipos: i) comunicações de operações em espécie, encaminhadas automaticamente ao COAF pelos setores obrigados quando seus clientes realizarem transações em “dinheiro vivo” acima de determinado valor; ou ii) comunicação de operação suspeita, encaminhadas ao COAF quando entes dos setores obrigados perceberem indícios de anormalidade em determinada operação.
No âmbito da atuação dos cartórios extrajudiciais no combate à lavagem de dinheiro, a Corregedoria Nacional de Justiça, editou o Provimento 88/1914, determinando algumas obrigações relativas à implementação de política, procedimentos e controles internos a serem adotados por notários e registradores, com o objetivo de prevenir a utilização de seus respectivos serviços para o processo de lavagem de capitais.
De acordo com o referido normativo infralegal, os tabeliães de notas, tabeliães e oficiais de registro de contratos marítimos, tabeliães de protesto de títulos, oficiais de registro de imóveis e oficiais de registro de títulos e documentos de pessoas jurídicas, devem implementar procedimentos internos para identificar e qualificar os seus respectivos clientes, bem como os beneficiários finais e demais envolvidos nas operações que realizarem, obtendo, sempre que possível, informações sobre o propósito e a natureza da relação de negócios.
Além disso, a norma estabelece obrigações de criação de cadastro de clientes e demais envolvidos, registrando diversas informações relevantes dos clientes, inclusive indicando se determinado cliente pode ser enquadrado como pessoa politicamente exposta e identificando o beneficiário final da operação, sempre que possível.
Nesse ponto, a norma indica que, quando não for possível identificar o beneficiário final, os notários e registradores devem dispensar especial atenção à operação e colher dos interessados a declaração sobre quem é o beneficiário final da operação, não vedando a prática do ato sem indicação do beneficiário final. Todavia, a dificuldade de identificação do beneficiário final pode caracterizar a operação como suspeita, para fins de encaminhamento da informação à unidade de inteligência financeira.
No tocante ao registro das operações, o regramento aponta que os notários e registradores devem manter o registro eletrônico de todos os atos notariais protocolares e registrais de conteúdo econômico que lavrarem, incluindo a identificação do cliente, a descrição detalhada da operação realizada, o valor da operação, o valor da avaliação para fins de incidência tributária, a data da operação, a forma e o meio de pagamento, o registro das comunicações ao COAF e outros dados conforme aplicável de acordo com o tipo de registrador.
No geral, o Provimento 88/1915, incorporado pelo Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ16, não destoa da estrutura de outros normativos editados por outros órgãos reguladores17, a exemplo da Circular 3.978/20, do Banco Central do Brasil, ou da Resolução CVM 50/21, da Comissão de Valores Mobiliários.
Análise das comunicações encaminhadas pelo setor ao COAF
Durante a realização do referido Seminário realizado na sede do CNJ, em Brasília, destacou-se a relevância do setor de cartórios extrajudiciais em termos de quantidade de comunicações encaminhadas ao COAF.
De fato, consultando-se as informações presentes no Relatório Integrado de Gestão do COAF, os notários e registradores encaminharam, no ano de 2022, à unidade de inteligência financeira 510.719 (quinhentos e dez mil e setecentos e dezenove) comunicações de operações suspeitas e 1.039.051 (um milhão, trinta e nove mil e cinquenta e uma) comunicações de operações em espécie, figurando como o setor não financeiro de maior relevância em termos de quantidade de comunicações encaminhadas ao COAF.
Contudo, como destacado pela Associação dos Notários e Registradores do Brasil18, apenas 1% das informações passadas pelos cartórios podem ser classificadas como aproveitáveis, tendo em vista que as comunicações, via de regra, carecem de detalhamento fático capaz de possibilitar um correto entendimento do contexto no qual ocorreu a operação objeto de comunicação à unidade de inteligência financeira.
De acordo com Dr. Josenildo Dourado Nascimento, Juiz do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas, entre as principais razões da baixa qualidade das comunicações encaminhadas ao COAF por notários e registradores, encontram-se a ausência de detalhamento de operações, falhas na identificação dos envolvidos e incompreensão acerca das normas reguladoras.
Em face dessa difícil realidade, importante apontar a necessidade de treinamento dos notários, dos registradores, oficiais de cumprimento e empregados contratados no que tange aos aspectos básicos do combate à lavagem de capitais e ao financiamento do terrorismo, bem como da disseminação do seu conteúdo ao quadro de pessoal por meio de processos de negócio institucionalizados e de caráter contínuo, nos termos do art. 7º, § 1º, do Provimento 88/19 da Corregedoria Nacional de Justiça.
Propostas para a estruturação de programas de fiscalização por parte das Corregedorias de Justiça dos Estados e do Distrito Federal
Conforme afirmamos em outra oportunidade19, muito embora as normas decorrentes da atividade regulatória desempenhada pelos órgãos competentes sejam essenciais para a harmonia e para a uniformização do sistema de combate à lavagem de capitais no Brasil, é importante que a atividade fiscalizatória desses mesmos órgãos reguladores contribua para o aumento da expectativa de controle dos respectivos setores obrigados, cooperando, assim, para o efetivo desenvolvimento de uma cultura de compliance e para uma maior efetividade de todo o sistema de combate à lavagem de capitais no país.
Portanto, não obstante a importância dos normativos da Corregedoria Nacional de Justiça para regular a atuação dos cartórios extrajudiciais no combate à lavagem de capitais e ao financiamento do terrorismo, a ausência de atividades de fiscalização por parte das Corregedorias de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, no intuito de avaliar a efetividade dos programas de compliance dos cartórios extrajudiciais, ao mesmo tempo em que aumenta o risco de utilização desses serviços em operações de lavagem de capitais, também contribui para a baixa qualidade das comunicações encaminhadas à unidade de inteligência financeira.
Desta feita, com o intuito de colaborar com a estruturação dos programas de fiscalização das Corregedorias de Justiça dos Estados e do Distrito Federal na supervisão dos cartórios extrajudiciais no cumprimento de suas obrigações regulatórias de combate à lavagem de capitais, apresentamos abaixo, com fundamento nas Normas de Auditoria do Tribunal de Contas da União – NAT20, algumas questões de auditoria21 que podem guiar o trabalho dos auditores.
Para tanto, podem-se estabelecer questões de auditorias com testes formais e substantivos. No âmbito dos testes formais de auditoria, a estrutura padrão das fiscalizações pode verificar a existência formal de documentos relacionados às políticas, aos procedimentos e aos controles internos inerentes à identificação e à qualificação dos clientes, à manutenção de registros das operações, bem como aos procedimentos internos de comunicação de operações financeiras à unidade de inteligência financeira.
Presentes os requisitos formais de combate à lavagem de capitais no âmbito dos cartórios extrajudiciais, passa-se à análise das questões de auditoria com a utilização de procedimentos substantivos22, que devem envolver análises mais detalhadas nos três pilares que suportam as atividades de qualquer organização: recursos humanos, processos e tecnologia.
No âmbito do pilar relacionado aos recursos humanos, as questões de auditoria e os testes substantivos podem se centrar tanto na verificação do conhecimento efetivo do corpo de colaboradores acerca das normas de prevenção à lavagem de capitais vigentes na estrutura da empresa como na verificação de realização e da frequência de treinamento dos notários, dos registradores, dos oficiais de cumprimento e demais empregados contratados em ações educativas de prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento ao terrorismo, podendo, inclusive, prever a aplicação de questionários para validar o efetivo conhecimento dos colaboradores acerca do tema.
Em termos de processos de negócio, as questões de auditoria e as análises podem procurar verificar o nível de maturidade dos processos de negócio, classificando o cartório de acordo com sua maturidade na gestão de processos de combate à lavagem de capitais e ao financiamento ao terrorismo em: inicial, gerenciado, padronizado, previsível ou inovador23.
Nesse aspecto, pode-se afirmar que quanto menor o nível de maturidade do cartório na gestão de processos de negócio relacionados ao combate à lavagem de capitais e ao financiamento ao terrorismo, maiores serão os riscos de a organização estar sendo utilizada como um instrumento do crime para lavagem de ativos ou para o financiamento ao terrorismo, podendo inclusive ser objeto de responsabilização administrativa por parte da Corregedoria Nacional de Justiça, com fundamento no art. 12 da lei de Lavagem de Capitais.
Finalmente, em relação aos sistemas de tecnologia da informação, as questões de auditoria e os testes substantivos podem verificar, além de aspectos relacionados à segurança da informação24, se os sistemas estão estruturados de forma a cumprir com as obrigações relativas à identificação de clientes, pessoas expostas politicamente e beneficiários finais, à manutenção de registos de transações econômicas realizadas no âmbito das atividades desempenhadas pelo respectivo cartório extrajudicial, bem como as comunicações à unidade de inteligência financeira.
Conclusão
Em decorrência da capilaridade e do volume de operações realizadas no âmbito dos cartórios extrajudiciais, o setor assume papel relevante no combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento ao terrorismo, sendo de fundamental importância o envolvimento de notários, registradores, oficiais de cumprimento e empregados contratados para maior efetividade da política e dos procedimentos de prevenção à reciclagem de capitais.
Ademais, a quantidade de comunicações encaminhadas por notários e registradores à unidade de inteligência financeira, bem como o reduzido índice geral de aproveitamento das referidas comunicações, pode ser um indicador de que, além de ser necessária eventual reformulação do Provimento 88/19, da Corregedoria Nacional de Justiça, com o intuito de tornar a norma mais simples e objetiva, exista a necessidade de implementação de políticas de treinamento contínuas para todos os envolvidos no processo.
Com o objetivo propositivo, o presente artigo elencou uma série de possíveis abordagens para a estruturação de programas de fiscalização por parte das Corregedorias de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, no intuito de avaliar a efetividade geral dos programas de compliance dos cartórios extrajudiciais.
Nesse sentido, algumas propostas de questões de auditoria foram apresentadas, tanto para verificar a existência formal de documentos relacionados às políticas, aos procedimentos e aos controles internos inerentes ao combate à lavagem de dinheiro, como para avaliar a efetividade dos treinamentos de prevenção à criminalidade, à maturidade dos processos de negócios dos cartórios no combate à lavagem de capitais e, também, aos sistemas de informação utilizados pelos cartórios extrajudiciais na prevenção à lavagem de capitais e ao financiamento ao terrorismo.
De fato, entendemos que a implementação de ações de fiscalização para avaliar a estrutura e a efetividade dos programas de compliance dos cartórios extrajudiciais para a prevenção à lavagem de capitais e ao financiamento ao terrorismo, pode fomentar uma maior qualidade das comunicações encaminhadas à unidade de inteligência financeira, em decorrência da maior expectativa de controle e da maior possibilidade de responsabilização administrativa dos responsáveis que deixarem de cumprir com as obrigações normativas pertinentes.
Fonte: Migalhas
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