Tribunais de Justiça, como os de São Paulo e Minas Gerais (TJSP e TJMG), têm concedido uma medida incomum e ainda sem previsão legal: o divórcio pós-morte. O pedido é aceito quando a dissolução do casamento foi solicitada ainda em vida. A decisão judicial gera efeito sobre a herança.
Valem, nessa modalidade, as mesmas regras do divórcio comum. O ex-cônjuge só terá direito aos bens determinados pelo regime de casamento escolhido – 50% dos bens na comunhão universal, 50% dos bens comuns na comunhão parcial ou nenhum bem se o regime era de separação total e não há nada em testamento. Há ainda efeito previdenciário. Perde-se o direito a pensão por morte do INSS.
Sem previsão legal, a medida tem sido concedida pelos tribunais com base na autonomia da vontade. “A legislação, em regra, não acompanha a evolução das relações, nem teria como. A gente não sabe como serão as relações daqui a pouco”, afirma Joana Rezende, sócia da área de planejamento sucessório do Velloza Advogados.
O TJMG foi o primeiro a se manifestar sobre o assunto, segundo Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam). Para o advogado, se o casal já manifestou sua intenção, é possível decretar o divórcio mesmo após a morte de uma das partes.
Em um julgado da 4ª Câmara Cível do TJMG, por maioria de votos, o divórcio foi concedido em 2021. No caso, já havia a separação de fato e, em novembro de 2020, o ex-marido morreu vítima de covid-19. A única herdeira do falecido pediu o divórcio post mortem.
“A superveniência da morte de um dos cônjuges não é suficiente para superar ou suplantar o acordo de vontades anteriormente manifestado, o qual possui valor jurídico e deve ser respeitado, mediante a atribuição de efeitos retroativos à decisão judicial que decreta o divórcio do casal”, afirma a decisão.
Apesar de os casos nas Varas de Família tramitarem em segredo de justiça, é possível ter acesso às ementas e, geralmente, são os filhos do cônjuge morto que dão sequência ao processo de divórcio – não são aceitos pedidos feitos exclusivamente por herdeiros, sob alegação de “separação de fato”.
No TJSP já existem decisões que reconhecem a possibilidade de divórcio pós-morte com efeito retroativo à data do ajuizamento da ação, de forma excepcional. Em um dos julgados, o cônjuge sobrevivente pediu a desistência da ação, mas a filha do falecido pediu a homologação da medida. Alegou que o pai e a madrasta já estavam separados há dois anos e que ele já havia constituído união estável com outra pessoa, que pede os direitos de companheira.
Existem também decisões que negam os pedidos, considerando que o casamento é extinto pela morte. Mas em um julgado do TJSP, de abril de 2021, a 8ª Câmara de Direito Privado declarou que a morte de um dos cônjuges no curso da ação não acarreta a perda de seu objeto, se já manifesta a vontade dos cônjuges de se divorciarem. O casal já estava separado há oito anos.
Segundo a advogada Regina Beatriz Tavares da Silva, presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), o divórcio pós-morte não tem fundamento no ordenamento legal. Isso porque o estado civil é de casado na data da morte. Porém, afirma, parece ser injusto que haja direito sucessório do cônjuge que estava separado de fato antes da morte.
Diante da crescente jurisprudência sobre o tema, um projeto de lei foi apresentado para alterar o Código Civil e possibilitar o divórcio após a morte de um dos cônjuges. Começou a tramitar na Câmara dos Deputados, em dezembro (PL nº 4.288, de 2021).
A Lei do Divórcio (nº 6.515, de 1977), que completa 45 anos neste ano, já passou por diferentes aperfeiçoamentos. No início, era obrigatório somar cinco anos de separação de fato ou três anos de desquite (que passou a ser chamado de separação judicial) para o divórcio – que só era permitido uma vez.
O surgimento do divórcio também incentivou debates sobre regimes de bens. Como o casamento era indissolúvel, antes da Lei do Divórcio, regular a questão patrimonial não era tão importante, segundo Natalia Zimmerman, sócia da área de planejamento sucessório do Velloza Advogados. “A discussão sobre o que partilhar se tornou mais comum”, afirma.
A Constituição de 1988 diminuiu os prazos de separação para o divórcio, mas ainda havia a questão sobre de quem era a culpa. Em 2007, passou a ser permitido que cartórios de notas pudessem fazer inventários e divórcios consensuais.
Mas foi em 2010 que a Emenda Constitucional (EC) nº 66 simplificou o sistema de divórcio no Brasil. Acabou com o instituto da separação judicial. “Ninguém mais separa judicialmente, vai direto para o divórcio. O terceiro ponto foi que acabou discussão de culpa”, diz o advogado Rodrigo da Cunha Pereira.
De acordo com ele, havia uma quantia de divórcios represada, o que levou a um aumento no número de pedidos em 2010. “Muitas pessoas têm medo dessa simplificação porque a atrelam à banalização do casamento, o que não é verdade.”
Nos últimos anos, o volume de divórcios cresceu. Em 2010, os casamentos duravam 16 anos. Em 2020, uma média de quatro anos. Para Daniel Paes de Almeida, presidente do Colégio Notarial do Brasil (CNB)/Seção São Paulo, chama a atenção a proporção de pessoas que se divorciavam na década de 80 e hoje. De cada 10 casamentos, quatro terminaram em divórcio em 2020, segundo dados do IBGE compilados pelo CNB. Na década de 80, os divórcios não chegavam nem à proporção de 1 para cada 10 casamentos.
Entre 2010 e 2020, o número de divórcios no Brasil aumentou 35,6% (extrajudiciais e judiciais), enquanto o de casamentos caiu 22,5%. Se considerar 2019, já que 2020 e 2021 foram anos atípicos por causa da pandemia, os divórcios subiram 57,6% e os casamentos, 4,8%.
A advogada Regina Beatriz Tavares da Silva, presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), entende que o aumento no número de divórcios se deve à facilitação com a EC nº 66. “As pessoas tinham que esperar e agora não precisam mais”, afirma ela, acrescentando que hoje advogados conseguem concluir divórcios em uma semana.
Fonte: Valor Econômico
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