Retorno hoje ao imbróglio em torno do enquadramento das relações afetivas nas novas categorias jurídicas do Direito de Família. Em coluna anterior, aludi, na esteira do reconhecimento do afeto como valor jurídico, ao acolhimento estatal de novos núcleos familiares, desprovidos de regulação legislativa, e à necessidade de formulação, pela doutrina, de critérios de diferenciação concreta entre situações aparentemente similares no mundo fenomênico, mas distintas no plano jurídico. Tratei, naquela ocasião, das distinções entre filhos socioafetivos e enteados.

 

Agora, vou separar, em categorias diferentes, a união estável e o namoro, dito qualificado, fonte de intermináveis litígios e de grave insegurança jurídica. Na pandemia da Covid-19, houve uma explosão de casos em que namorados passaram a residir sob o mesmo teto, por conta da quarentena imposta pelas autoridades públicas, o famoso “quarentenar juntos”, e depois um deles buscou atribuir ao relacionamento a natureza de união estável. Uma pesquisa realizada no âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo, usando como referência de indexação a expressão “namoro qualificado”, demonstra a inflação dessas demandas, nos períodos pré e pós pandemia. Tivemos, assim, em: 2019: 7 ocorrências; 2020: 27 ocorrências; 2021: 21 ocorrências; 2022 (até o momento): 31 ocorrências. O TJ-SP vem abordando o tema de forma reiterada, tendo rechaçado a maioria dos pedidos quando evidenciado que a situação, mesmo indicativa de relacionamento afetivo intenso, não ultrapassou as raias do namoro.

 

A união estável, como bem sabemos, se caracteriza pela convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família, a teor do artigo 1.723, do Código Civil. A junção de todos esses elementos dá ensejo ao que se convencionou chamar de posse do estado de casado, consistente no comportamento social, público e notório, de esposo e esposa, configurando um núcleo familiar distinto e perfeitamente identificado, tradicionalmente utilizada como prova da existência do casamento, quando não se tinha mais acesso ao registro.

 

Não é qualquer relacionamento amoroso, ainda que público, durável e contínuo, que pode ser alçado à categoria de união estável. A publicidade exigida pelo artigo 1.723 do CC refere-se ao tratamento, à apresentação pública, à fama (ou reputatio). Os companheiros tratam-se, socialmente, como cônjuges, mostram-se ao público externo como se casados fossem, ainda que eventualmente possam fazer uso de outros vocábulos, como “companheiros” ou “noivos”. Continuidade e durabilidade, por sua vez, de per se, não definem união estável, eis que são características presentes em diversas modalidades de relações afetivas, como o namoro (alguns mais longevos que muitos casamentos), o noivado e mesmo a amizade ou camaradagem.

 

O que singulariza a união estável é o acréscimo, aos elementos já referidos, do claro “objetivo de constituir família”. O discurso normativo, nesse aspecto, mostra-se ambíguo, pois poderia induzir a suposição de que a mera “intenção futura” de formar família com alguém bastaria para configurar a entidade familiar. Ora, intenção anímica, manifestada ou não, qualquer um pode ter. Os noivos, em geral, compartilham desse intento, sem que isso os transforme em conviventes. O requisito legal refere-se, portanto, a objetivo presente, já consumado, com família efetivamente constituída. Não é, como já decidiu o STJ, “mera proclamação, para o futuro, da intenção de constituir uma família. É mais abrangente. Esta deve se afigurar presente durante toda a convivência, a partir do efetivo compartilhamento de vidas, com irrestrito apoio moral e material entre os companheiros. É dizer: a família deve, de fato, restar constituída”. Em outras palavras, os integrantes da união estável, entre si (e eventuais filhos), passam a constituir uma nova “família nuclear”, abandonando os núcleos anteriores, cujos componentes doravante integrarão a “família extensa”.

 

Esse é, precisamente, o ponto que vai apartar a união estável do namoro qualificado, denotando a existência da entidade familiar. A constatação de que aquele casal, que convive de forma pública, contínua e duradoura, passou a formar um novo núcleo familiar, se fará a partir dos elementos objetivos de cada relacionamento. Entre eles, os mais comuns e de mais fácil constatação, ainda que isoladamente não se prestem à identificação da união estável, são a coabitação, sob o mesmo teto, e a existência de filhos.

 

É verdade que filho comum não implica formar família, especialmente se não tiver havido projeto parental dos parceiros (no caso de gravidez indesejada) ou nos casos de abandono. Da mesma forma que a residência compartilhada pode ocorrer por razões diversas da formação de família, como se dá com namorados que passam a morar juntos para compartir despesas. Já o contrário, é bem mais difícil. Casais em convivência more uxorio no mesmo espaço e com filhos comuns, não casados entre si, presumem-se uma família, sob a moldura jurídica da união estável. Aplica-se por analogia, nessas situações, a velha presunção legal in dubio pro matrimonio, de modo que, na dúvida, deve o juiz decidir pela união estável e pela família.

 

Especificamente no que tange à moradia sob o mesmo teto, inobstante não constitua pressuposto para a caracterização da união estável, como também não o é para o casamento, o fato é que esse elemento continua a ser considerado, na jurisprudência, como o principal fator a identificar, no plano objetivo, a constituição, pelo casal, de um novo núcleo familiar.

 

Salvo razões que impeçam o estabelecimento de um lar conjugal único, como nos casos em que os conviventes trabalham em cidades diferentes, a residência comum, analisada em conjunto com os demais elementos e tendo em conta as circunstâncias particulares de cada casal, vai configurar a “peça-chave” da constituição de família. Somente quando estiver justificada a diversidade de domicílios, especialmente para o atendimento a encargos profissionais, é possível dispensar o requisito da moradia comum. Se não existe nenhuma razão objetiva que impeça um casal de habitar sob o mesmo teto, sendo que a diversidade domiciliar se estabelece por interesse e conveniência de ambos, que optam por manterem suas rotinas separadas, sem comunhão, dificilmente se formará uma união estável.

 

E aqui entra a figura do “namoro qualificado”. Duas pessoas adultas que estabelecem um relacionamento maduro, com intimidade e coabitação, participação conjunta em eventos familiares e de amigos, viagens e projetos de lazer comuns, mas sem a constituição de família. Buscam o companheirismo, no sentido mais amplo de “companhia”, mas preservam a independência, afastando a comunhão de vidas.

 

No namoro qualificado, as partes não se relacionam com animus de formar família, até porque já o fizeram em momento pretérito, mas com o objetivo de aproveitarem as coisas boas da vida, com os privilégios e a temperança próprios da maturidade, sem um compromisso maior, de modificação do seu status quo familiar. Normalmente mantém domicílios separados na sede de suas atividades profissionais, ao mesmo tempo em que, para facilitar o desfrute dos momentos de lazer, e conviverem mais proximamente, fazem uso de imóveis de temporada, no campo ou na praia, onde habitam nos finais de semana e feriados. Muitos casais permaneceram continuamente nesses espaços comuns durante todo o período de quarentena.

 

Fala-se “qualificado”, não porque exista um namoro “desqualificado”, mas apenas para distingui-lo do namoro simples, protagonizado usualmente por pessoas mais jovens, modalidade de relacionamento em que o convívio é menos intenso e, por isso, mais facilmente dissociável da união estável.

 

No namoro qualificado, os namorados coabitam em determinados períodos, dormem nas casas uns dos outros, frequentam as respectivas famílias, sem que se formem com os parentes de cada um os vínculos de afinidade; viajam juntos, compartilham amigos, externalizam sua afetividade no meio social e profissional, demonstrando a todos que possuem um relacionamento amoroso. Como parceiros afetivos, conversam sobre questões cotidianas, solicitam aconselhamento e podem se prestar, reciprocamente, eventual suporte material. Porém, não vão além disso. Não moram juntos, nem almejam a constituição de vida a dois. Não vivem como “se casados fossem”, nem se tornam padrasto ou madrasta dos respectivos filhos.

 

No STJ, já existe posição consolidada no sentido de que relacionamentos como esses se enquadram na categoria de namoro qualificado, sem consequências jurídicas.

 

Não é fácil distinguir união estável e namoro qualificado. Trata-se de investigação tormentosa, intrincada, e de difícil comprovação, representando grande desafio aos operadores do Direito. A distinção se fará à luz dos elementos de cada caso concreto.

 

Fonte: Conjur

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