Para adentrar aos aspectos jurídicos deste caso concreto, é crucial perquirirmos a vida do influenciador digital denominado Luva de Pedreiro, também conhecido pelo seu pseudônimo Iran Ferreira. Nascido no dia 7 de novembro de 2001, na cidade de Quijingue, no interior da Bahia, foi registrado com o nome de Iran Santana Alves.
Apesar da sua latente paixão por futebol, a sua realidade o obrigou a deixar o seu sonho de trabalhar nessa área de lado para ajudar o seu genitor no trabalho rural. Em decorrência destes percalços apresentados pela vida, deixou o colégio no oitavo ano do ensino fundamental.
Somente com essa rápida descrição de sua história é possível captar o contexto humilde no qual o jovem nasceu e cresceu. Em 2021, enquanto o mundo ainda lutava contra a pandemia da Covid-19 e os meios digitais estavam borbulhando, surgiu a figura do Luva de Pedreiro.
Aos 20 anos de idade, o jovem baiano começou a fazer e postar vídeos na
internet de forma despretensiosa, sem sequer imaginar a dimensão que isto poderia tomar e, menos ainda, os frutos que poderiam advir por intermédio das redes sociais.
Em curto período de tempo, seu conteúdo difundiu-se de maneira assustadora no espaço virtual, tendo os perfis oficiais do rapaz alcançado números estrondosos até mesmo para quem já está inserido no meio há muito tempo. Neste ínterim, fora procurado pelo empresário Allan de Jesus, proprietário da ASJ Consultoria, a qual já foi responsável pela carreira de grandes nomes do mundo do esporte, para assinar um contrato.
Em fevereiro de 2022, as partes firmaram um instrumento contratual, o qual foi rompido sob o olhar atento da mídia e, por conseguinte, de toda a sociedade em junho deste mesmo ano, com fortes acusações de ambas as partes. Nesta oportunidade, passaremos a analisar os aspectos jurídicos desta relação sem, no entanto, debatermos quaisquer aspecto moral e/ou
pessoal, tampouco emitir opinião ou juízo de valor.
Dentre os tópicos mais polêmicos que foram divulgados pela grande imprensa, estão: (1) a cláusula que dispõe que as partes possuem plena capacidade para assinar o pacto; (2) ajuste de total exclusividade por parte da assessoria para comercialização da figura do Luva de Pedreiro com terceiros; (3) não investimento por parte da ASJ Consultoria no criador de conteúdo, o qual teria descontado os valores eventualmente gastos em sua carreira do montante que lhe cabia dos contratos executados; (4) pagamento de 50% sobre toda e qualquer receita bruta auferida do influenciador para a sociedade empresária gerida por Allan de Jesus, após o pagamento dos impostos; (5) em caso de atraso deste último, estava prevista multa contratual de 10%, acrescida de juros de 1% ao mês e correção monetária pelo IGP-M; (6) multa rescisória unilateral de R$ 5,2 milhões em caso de rompimento contratual por parte de Iran Ferreira.
Dentre as várias questões jurídicas passíveis de discussão expostas, salta aos olhos de qualquer jurista a assinatura de instrumento contratual por analfabeto sem o auxílio de terceiro e o desequilíbrio dos termos pactuados.
No que se refere ao primeiro ponto, apesar da jurisprudência brasileira entender que a pessoa analfabeta não é relativamente incapaz, se reconhece sua vulnerabilidade, a qual deve ser devidamente protegida. Portanto, o dilema está especificamente em determinar se o baiano
Ivan possuía ou não plena ciência do que estava acordando ao assinar o documento.
Em consonância com o princípio da boa-fé, vigente no ordenamento jurídico brasileiro, o ideal é sempre se resguardar. Neste caso concreto, deveriam ter sido adotadas todas as medidas previstas no artigo 595 do Código Civil de 2002 (CC02), de forma que não deixasse brecha para a alegação de invalidade do contrato.
Em entrevista aos programas dominicais “Fantástico” e “Domingo Espetacular”, produzidos respectivamente pela Rede Globo e pela Record TV, o novo influenciador digital contou que “não sabe muito ler, não” (sic) e, ainda, que “não sabia de jeito nenhum [o que estava sendo assinado]”. Além do mais, afirmou ter assinado o contrato em comento sem a supervisão de advogado e que tanto o seu pai como sua mãe não sabem ler nem escrever.
À vista disso, levando em consideração as informações fornecidas pelo jovem e divulgadas pela imprensa, resta claro o vício no consentimento do mesmo ao firmar o negócio jurídico, especialmente por não ter sido assinado por procurador e nem subscrito por duas testemunhas.
O vício do consentimento nada mais é do que a dissonância entre a vontade real da parte e a vontade manifestada quando da formação da relação jurídica, o que geraria o erro (artigos 138 a 144 do CC02). De acordo com a escada ponteada, o erro estaria na segundo degrau, no plano da validade, uma vez que a vontade do agente não teria sido livre.
Apesar do elemento da vontade livre não estar expressamente prevista no artigo 104 do CC02 como um elemento essencial do negócio jurídico, a doutrina tem entendimento no sentido de que está inserido implicitamente no inciso I. Outrossim, importante mencionar que não são todos erros que geram anulação, apenas o que for substancial.
Nesse sentido, não restam dúvidas de que o negócio jurídico ora estudado seria passível de anulação, sendo cabível ação anulatória no prazo de quatro anos (artigo 178, II, CC02), posto que há nítida discrepância entre o que o sujeito de fato acordou e o que pensou que teria firmado naquela relação jurídica.
Em relação à equidade contratual, temos um tema ainda mais sensível em razão de sua subjetividade. Nos dias de hoje, verifica-se um conflito contínuo entre o princípio do equilíbrio contratual e o princípio do pacta sunt servanda, da segurança jurídica e o princípio da revisão dos contratos, da dignidade da pessoa humana e o princípio da autonomia privada, que originam incontáveis processos no Poder Judiciário, sendo de difícil resolução por envolver valores tão abstratos e caros para a sociedade.
Nada obstante, no cenário em tela constata-se manifesta desproporção, já que temos de um lado um experimente empresário do ramo e, de outro, um jovem de 20 anos nascido e criado no interior do país que sequer terminou os estudos básicos e, para mais, as cláusulas que foram divulgadas até o presente momento evidenciam uma relação jurídica desigual, dado que uma das partes possui ônus muito maiores que a outra.
Outrossim, indispensável mencionar a multa rescisória que somente está prevista em desfavor do novato criador de conteúdo. Poderíamos citar ainda as porcentagens estabelecidas que estão em descompasso com as que geralmente são aplicadas neste mercado e, por fim, a ausência de investimento por parte do empresário, que apesar de auferir os lucros de eventuais parcerias, não desembolsaria nenhuma quantia necessária para a captação e/ou cumprimento das mesmas.
Além do contrato supramencionado e as respectivas polêmicas, fora criada uma empresa em abril de 2022, denominada de O Cara Da Luva De Pedreiro Produções Artísticas SPE LTDA, natureza jurídica de sociedade empresária limitada e capital social de R$ 50 mil.
No quadro societário, aparecem quatro figuras: (1) Iran Santana Alves, sócio que teria 45% de participação; (2) Vitor Santana de Melo, sócio que teria 10% de participação; (3) ASJ Holding de Participações LTDA, que teria 45% de participação e, por fim, Allan Silva de Jesus, que além de deter 100% da ASJ Holding de Participações LTDA, também aparece como administrador na entidade empresária em tela.
Na configuração exibida, o jovem influenciador seria minoritário no empresa, sendo certo que seria vencido no caso de Allan de Jesus e Vitor Melo concordarem em alguma decisão na qual Iran discorde.
Sob o ponto de vista societário, haveriam quatro medidas possíveis a serem implementadas por Iran Ferreira: (1) Propositura de ação de anulação da sociedade, nos termos do artigo 1.034 do Código Civil de 2002; (2) Propor ação de prestação de contas; (3) Havendo a presença de abuso, propor ação de responsabilidade em desfavor o administrador (Allan de Jesus); (4) Se constatada justa causa, pedido de exclusão judicial, na forma do artigo 1.029 do Código Civil de 2002.
Da mesma maneira que os negócios jurídicos em geral, a constituição de sociedade precisa preencher os requisitos previstos em lei, dentre eles a presença da vontade livre, sob pena de anulação. Aplicando-se exatamente a mesma lógica que examinamos anteriormente no contrato civil, há vício de consentimento na constituição da sociedade, posto que um dos sócios não tinha conhecimento real da relação jurídica que estava sendo realizada.
Importante consignar que o Luva de Pedreiro, com o auxílio de seus novos representantes, tem o prazo de três anos a partir da publicação da inscrição da sociedade no registro para ajuizar a respectiva ação, consoante prevê o artigo 45, parágrafo único do CC02.
Em suma, além da possibilidade de anulação do contrato civil e o cabimento de ação de anulação de constituição de pessoa jurídica de direito privado em virtude da presença de vício no consentimento, vislumbramos o cabimento de pedido de reequilíbrio contratual perante o Poder Judiciário, tendo em vista que os benefícios e os ônus das partes estão nitidamente desafinados.
Fonte: Conjur
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