Como se sabe, não existe, no Brasil, limitação temporal ao uso das técnicas ou métodos de reprodução humana medicamente assistida, uma vez que a utilização de gametas ou de embriões crio preservados poderá ocorrer post mortem, ou seja, após o falecimento do marido/esposa, companheiro(a) ou doador(a).

 

A questão sobre a qual nos propomos a refletir na coluna de hoje é, se do advento de filho originado a partir da fertilização ou implantação de embriões excedentários após a morte do testador, poderia resultar, em tese e como consequência natural, o rompimento do testamento feito anteriormente ao início do processo de RA?

 

Rompimento, ruptura ou rupção é a revogação presumida do testamento, por fato superveniente e que decorre de previsão legal. A teor do artigo 1.973 do Código Civil atual, “sobrevindo descendente sucessível ao testador, que não o tinha ou não o conhecia quando testou, rompe-se o testamento em todas as suas disposições, se esse descendente sobreviver ao testador”.

 

Rompe-se o ato de última vontade, ensina Carlos Maximiliano, “em havendo descendente sucessível, se o disponente no momento de testar ignorava que ele existisse, ou o julgava morto. Nada prevalece: nem a instituição de herdeiros nem os legados, ainda mesmo que as liberalidades caibam na metade disponível do espólio. A lei estabelece a presunção juris et de jure de que o falecido não contemplaria com sua herança a terceiros, se soubesse da existência, atual ou em futuro próximo, de pessoa ligada a ele pelos mais estreitos vínculos de sangue” [1].

 

Como o Código Civil contém a expressão genérica — descendente, prossegue o ilustre hermeneuta, “aplica-se a regra, tanto a favor dos filhos, como dos netos, bisnetos, trinetos, tetranetos, etc., existentes pelo menos em embrião quando falece o testador” [2].

 

Nas lições sempre clássicas de Arthur Vasco Itabaiana de Oliveira, a revogação é presumida:

 

“I – Quando há superveniência de descendente sucessível ao testador, que o não tinha ou não o conhecia – Neste caso, rompe-se o testamento em todas as suas disposições, se esse descendente sobreviver ao testador. Além do póstumo, cuja agnação rompe o testamento, compreende este caso as seguintes hipóteses: o filho legitimado por matrimônio de seus progenitores, realizado depois da testamentificação paterna;o filho adotado, depois da facção do testamento; o filho ilegítimo reconhecido legalmente depois do testamento; o filho legítimo, não póstumo ao testador, mas nascido depois do testamento. Nestes casos é necessário, para que a rutura do testamento se opere: A) Que os indicados descendentes sobrevivam ao testador; B) Que a sua existência seja ignorada ao tempo da testamentificação; C) Que os atos jurídicos, que lhes conferem direitos sucessórios, ocorram depois do testamento, e o testador não tenha feito referência ao reconhecimento e à adoção que, depois, se verificaram” [3].

 

O rompimento é uma consequência natural e necessária do aparecimento de descendente, que o testador ignorava no momento da facção do testamento, pouco importando a origem da filiação, se biológica (natural ou por RA), adotiva ou socioafetiva. O que importa é que a concepção, o reconhecimento voluntário ou judicial, ou a adoção, sejam posteriores à lavratura do ato causa mortis. Do magistério atemporal de Carlos Maximiliano, destaco, ainda:

 

“Embora, ainda em vida do testador seja julgada a investigação de paternidade, venha à luz a prole legítima, ou se verifique estar vivo o pretenso falecido; nem por isso deixa de ficar sem efeito o ato causa mortis; a condição precípua é serem a ação do filho natural e a certeza de que existe ou vai nascer o legítimo, posteriores à feitura do testamento. Posteriores também hão de ser: a) o matrimônio que produz a legitimação; b) a adoção; c) o reconhecimento, espontâneo ou forçado, da prole natural (2); assim como o saber que o herdeiro necessário existe (3); porquanto a lei fala em descendente sucessível; abrange, pois, a paternidade espúria (no caso particular de legitimação por subsequente matrimônio), a natural (reconhecível no termo de nascimento, mediante escritura pública ou testamento) e a civil (originada pela adoção)” [4].

 

Especificamente no que toca à reprodução assistida post mortem, o testamento não será rompido se demonstrado que o testador já sabia — ou que deveria saber — da existência do filho, ainda que na condição de embrião in vitro. O rompimento, nesses casos, tem o fito de proteger herdeiros necessários que não existiam ou eram completamente desconhecidos do testador no momento da feitura da disposição de última vontade. Presume-se que, se o testador tivesse realmente conhecimento da existência de outros descendentes, atuais ou futuros, ainda que na condição de embriões viáveis, com possibilidade de implantação por sua esposa ou companheira, “certamente disporia de modo diverso do que foi consignado na cédula testamentária, teria revogado a disposição de última vontade ou, por fim, simplesmente não teria testado” [5].

 

A mera coleta do material genético para fins de reprodução assistida, sem que o testador tenha a certeza da existência futura do filho, até porque a RA pode não ser exitosa, também não provoca o rompimento do testamento feito em momento pretérito.

 

Por outro lado, se o ato de última vontade é posterior à coleta dos gametas ou à finalização do procedimento de fertilização, como ocorre com o testamento genético, em que o testador dispõe sobre o destino dos seus gametas ou autoriza a implantação dos embriões formados a partir deles, com muito mais razão, não há que se falar em rompimento do testamento [6].

 

Por fim, não se pode esquecer que a superveniência do descendente sucessível só é causa do rompimento do testamento quando o testador não tinha qualquer outro descendente, como bem explica Zeno Veloso:

 

“Se o indivíduo já tem descendente e testa, a superveniência de outro descendente não determina a rupção do testamento (RTJ, 45/469). Seria o caso do testador que supõe ter um filho apenas, mas, em verdade, tem dois, ou nasce-lhe outro, depois. Pontes de Miranda leciona: ‘Se o testador já tinha descendentes herdeiros necessários (‘descendentes sucessíveis’), e algum ou alguns mais sobrevieram, não há ruptura” (Tratado de direito privado, 3ª ed., Rio de Janeiro, Borsoi, 1973, t. 59, § 5.946, p. 445). Mas há a opinião contrária, praticamente isolada na doutrina, de Orlando Gomes: “Não se exige a inexistência anterior de descendente. Rompe-se o testamento, do mesmo modo, se aparece mais um descendente. Superveniência de outro filho determina a caducidade tal como se nenhum houvesse. A razão é que, se já o tivesse, testaria diferentemente, não deixando, presumivelmente, de o contemplar” (Sucessão, 7ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1997, nº 194, p. 225). Antônio Elias de Queiroga (Curso de direito civil — Direito das sucessões, Rio de Janeiro, Renovar, 2005, p. 183) entende (como Pontes de Miranda e o autor destes comentários) que “se o testador já tinha descendentes herdeiros necessários, e algum ou alguns sobrevierem, não há ruptura” [7].

 

Logo, se o testador sabia que tinha filhos e herdeiros necessários e testa, e depois surge outro filho (fruto de RA post mortem), não se rompe o testamento. Só se rompe se o testador ignorava a existência de qualquer herdeiro necessário e testou.

 

Fonte: Conjur

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