Um assunto ainda pouco explorado no contexto da regulação dos criptoativos é a herança digital, que consiste no conjunto de contas virtuais, materiais, conteúdos e acessos digitais deixado por quem morre. No âmbito dos criptoativos (e.g. Bitcoin, Ethereum, NFTs e outros), espécie de ativo que compõe a herança digital, a problemática pode ser resumida na seguinte pergunta:

 

Quando você falecer o que acontece com os criptoativos que você adquiriu em vida?

 

A questão se mostra especialmente relevante considerando que, segundo dados da Agência Senado, em 2021 as negociações de compra e venda de criptoativos no Brasil atingiram o marco histórico de R$ 215 bilhões [1]. O que demonstra a pertinência econômica do assunto e evidencia a aderência desse mercado pelo investidor brasileiro.

 

Em relação a sucessão, a legislação prevê que, imediatamente após o falecimento, abre-se a sucessão e transmite-se a herança [2], que pode ser definida como o conjunto de bens, direitos e obrigações a ser transferido aos herdeiros.

 

Nesse contexto sucessório, o tema que tem ganhado tração no Brasil diz respeito a inclusão do acervo digital, isto é, do conjunto de bens de potencial valor econômico detidos em ambiente virtual, ao conceito de herança e como operacionalizar sua sucessão.

 

Isso porque, embora os ativos armazenados virtualmente em hard drives e pastas virtuais em computadores sejam facilmente transferíveis — uma vez que acompanham a mídia tangível que o contém — houve um aumento significativo na aquisição de ativos digitais armazenados em nuvem, disponíveis mediante a contratação de determinados serviços on-line cuja transferência é regida pelos próprios prestadores do serviço, comumente através de login e senha.

 

Especificamente em relação aos criptoativos, o registro de dados se dá em um sistema de cadeia contínua de forma descentralizada, isto é, sem a figura do intermediário (e.g. bancos), sendo que cada movimentação é validada utilizando tecnologia blockchain. Na prática, para cada transação envolvendo esses ativos será gerada uma nova chave de acesso distinta e única. Todos esses fatores garantem a independência, segurança e transparência desse sistema.

 

Por outro lado, a ausência de um órgão regulador definido, de um indexador oficial que forneça o valor de conversão do criptoativo para a moeda do país e de uma regulamentação própria no Brasil, gera um ambiente de insegurança jurídica para o investidor, inclusive no tocante a sucessão decorrente do falecimento do proprietário destes ativos. Nesse sentido, importante destacar também que é comum que esses investimentos sejam feitos no exterior. A lei brasileira impede o acesso à herança de bens deixados fora do país, sendo necessário nesse caso observar as disposições da legislação da jurisdição estrangeira.

 

Além da lacuna jurídica, os problemas se estendem para o viés operacional dado que, na ausência de um órgão regulador responsável, quem os herdeiros poderiam acionar para disponibilizar as informações de acesso do titular, caso esta não tenha sido informada pelo falecido em testamento ou em vida, para que seja realizada a transferência de titularidade do ativo? Com quem os herdeiros poderiam obter informações acerca da extensão do acervo digital detido pelo falecido?

 

Não só, ainda que seja possível efetuar a transferência de ativos digitais detidos pelo falecido, a ausência do órgão regulador responsável e, consequentemente, de visibilidade em relação a extensão do acervo digital detido por este, resulta na potencial impossibilidade de os herdeiros verificarem a observância do quinhão cabível a cada um.

 

A despeito destas controvérsias não se mostrarem tão frequentes atualmente nas discussões doutrinárias e jurisprudenciais relativas a inventário e sucessão, trata-se de um tema emergente cujos efeitos passarão a integrar tais fóruns em um futuro não tão distante.

 

Questões como a natureza jurídica dos criptoativos, indexador oficial de conversão e de aspectos jurídicos relacionados à sua sucessão são vitais não só para a segurança jurídica do investidor, mas também para que seja possível inferir a tributação aplicável na transmissão desses ativos.

 

Explorado o contexto da discussão, considerando que os investimentos em criptoativos são uma realidade atual, é necessário identificar possibilidades de solução considerando 1) os projetos de lei em trâmite; 2) o direito comparado; e 3) instrumentos jurídicos já disponíveis.

 

Dentre os projetos de lei (“PL”) em trâmite no Senado Federal e na Câmara dos Deputados, voltados para regulamentar criptoativos destacam-se: 1) o PL nº 4.401/21 trata das prestadoras de serviço de negociação, transferência e custódia de criptoativos mas não dispõe sobre a sucessão de tais ativos; 2) o PL nº 3.050/20 pretende complementar o Código Civil para dispor expressamente que a sucessão obrigatória também engloba ativos digitais pertencentes ao falecido; e 3) o PL nº 5.820/19 que além de prever expressamente que a sucessão engloba ativos digitais, permite que o falecido dê instruções sobre a transferência de tais ativos em sua manifestação de última vontade e propõe um conceito de herança digital para compor nosso ordenamento jurídico.

 

No Reino Unido [3] e nos Estados Unidos da América [4] já se vê a implementação de soluções simples como: 1) a anotação da chave de acesso em um documento e seu armazenamento em cofres físicos; 2) testamento digital utilizando smart contracts; e 3) um sistema de ausência desenvolvido em contas de e-mail pelo qual, verificado determinado período sem utilização, seria disparada a chave de acesso para os beneficiários indicados, entre outras.

 

Em relação aos instrumentos jurídicos já disponíveis, vê-se que os óbices operacionais e o vácuo jurídico brasileiro podem ser contornados mediante a utilização de estruturas constituídas no exterior (e.g. Private Investment Companies, PIC, ou Private Investment Fund, PIF) que poderiam atrair benefícios de ordem tributária e sucessória. Outra alternativa seria dispor expressamente sobre o acervo digital, chave de acesso, instruções para transferência e beneficiário em testamento cerrado. Essas e outras alternativas podem ser exploradas no detalhe em outra oportunidade.

 

Estamos longe de esgotar o tema, mas o que se espera é que tais preocupações sejam endereçadas ou, minimamente esclarecidas pelo Poder Legislativo, para trazer segurança jurídica ao investidor. Até lá, é importante que o investidor de criptoativos tenha conhecimento de tais controvérsias e monitore seu desenvolvimento, bem como que os profissionais da área do planejamento patrimonial e sucessório estejam atualizados e instrumentalizados com alternativas que enderecem essas preocupações.

 

Fonte: Conjur

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