A delimitação teórica necessária, particularmente no Direito, tem sua relevância sublinhada quando a realidade social apresenta casos concretos que demandam uma reflexão mais aprofundada, já que a aproximação entre possíveis conceitos aplicáveis tem a capacidade de gerar consequências totalmente discrepantes entre si.
O caso de Indi Gregory, uma bebê britânica acometida de uma doença rara, patologia mitocondrial incurável, capaz de impedir que as células do corpo produzam energia1, apresentou aproximações dos conceitos de eutanásia, ortotanásia e distanásia.
Igualmente no âmbito das Ciências Biológicas e Médicas, a imprecisão técnica gera repercussões plurais e, para o caso específico, as dificuldades em delimitar marcos para o fim de vida causam consequências no âmbito social e jurídico; além disso, resulta no questionamento central que tem lugar no caso ora analisado: o prolongamento artificial da vida deve ser mantido, no caso de um bebê com doença incurável e progressiva?
Indi Gregory teve sobrevida artificial até menos de 9 meses, e conforme a equipe clínica do Queen’s Medical Center, não haveria possibilidade de restabelecimento da sua saúde, logo, as tentativas clínicas nesse sentido a causavam dor e eram inúteis em relação à cura. A conclusão da equipe do Queen’s Medical Center é condizente com os preceitos da bioética, já que refutam a distanásia e buscam a promoção da ortotanásia.
Formado a partir da junção do prefixo grego orthos (reto) e de thanatos (morte), o termo ortotanásia, elaborado por Jacques Roskam2, remete à ideia de terminalidade da vida de forma digna, justa, respeito pelo momento da morte natural e não prolongamento fútil da vida de modo artificial. A ortotanásia nem antecipa a morte, tampouco prolonga artificialmente a vida, apenas possibilita que a morte natural tenha o seu curso normal, do modo mais confortável e indolor possível, por meio da suspensão de medicamentos e de meios artificiais de prolongamento de vida3, substitutindo-os gradativamente por cuidados paliativos.
São requisitos para configurar a ortotanásia o diagnóstico de uma doença mortal específica e irreversível, com exatidão e firmeza sobre o quadro clínico; a enfermidade ser progressiva; a morte ser iminente ou ameaçadora; o paciente estar frágil, com forças diminuídas; ser incapaz de exercer as funções humanas básicas, ou exercê-las com considerável dificuldade4. Todos os critérios estavam presentes no caso da Indi Gregory.
De outra sorte, a distanásia seria esse prolongamento artificial da vida, de uma sobrevida que já teria sido findada se não fossem os aparatos biotecnológicos e a evolução farmacêutica, tomando como imperativa a manutenção da vida, independentemente da sua qualidade, sujeitando o paciente a sofrimento desproporcional, prolongando o seu processo de morte5, negando-lhe os cuidados paliativos no auge da sua vulnerabilidade.
Os atos de distanásia sacrificam o paciente por motivos alheios vários, e prolongam o processo de morte da pessoa em fim de vida hospitalizada. Essas motivações podem ser de ordem religiosa; de ordem particular dos genitores – como fases de elaboração do processo de luto; de ordem científico-paternalista – com adoção de lógica utilitarista com vistas ao progresso da Medicina para benfeciar terceiros; entre outras.
Há que elucidar que a ortotanásia, preconizada pela equipe do Queen’s Medical Center, não pode ser confundida com eutanásia. Embora não seja um conceito uníssono, majoritariamente a eutanásia é considerada como a eliminação de uma pessoa que padece de enfermidade terminal, com a finalidade de findar as suas dores ou sofrimentos, realizado por outra pessoa, movida por sentimento de compaixão ou piedade. Sem o elemento subjetivo de compaixão com o próximo, configuraria homicídio.6 7
Os genitores de Indi Gregory discordavam da opinião da equipe clínica do Queen’s Medical Center, e requereram judicialmente a manutenção artificial da vida. Após as negativas em primeira e segunda instância, foi decidido que não deveria investir mais em suporte vital, mas que Indi Gregory deveria continuar sendo cuidada em hospital ou em hospice – unidade de cuidados paliativos,8 9 ou seja, a decisão estabeleceu que deveria ser providenciada a ortotanásia, para garantia do conforto e preservação da dignidade da paciente.
Urge ressaltar que a decisão, conforme o relato da imprensa a respeito, não previu a antecipação do processo de morte; caso contrário, configuraria eutanásia. Deixar de investir artificialmente para prolongamento de sobrevida sem perspectiva de cura ou de restabelecimento de funções básicas,em hipótese de doença devidamente diagnosticada, e investir em manejo químico e mecânico da dor, não configura eutanásia – em qualquer modalidade que seja -, trata-se de ortotanásia.
Para o caso, a classificação da eutanásia conforme o tipo de ação, em que na modalidade ativa há uma ação direta para encurtar a vida, e passiva a morte é antecipada pela omissão de intervenção,10 deve ser afastada pois dar ênfase à eutanásia é já adotar um viés argumentativo, para tentar defender a distanásia, ou seja, leva à perspectiva de que a preocupação central sobre sobrevida artificial deve ser quantitativa e não qualitativa, e desconsidera que, no caso concreto, não se antecipou o processo de morte, apenas permitiu que a sobrevida retomasse o seu curso natural.
A obstinação terapêutica resulta em prolongamento precário e penoso da vida,11 deve ser rechaçada, especialmente por contrariar dois princípios básicos, pilares da bioética principiológica: o da beneficência e não-maleficência. Na análise do bem possível a ser proporcionado à Indi Gregory com o prolongamento artificial da sua sobrevida, sopesando com o quão doloroso era o tratamento, restou claro para a equipe clínica que a assistia que deveriam ser usados os fármacos e os aparatos decorrentes da Revolução Biotecnológica para paliar, para cuidar mesmo ante a incurabilidade da doença – em conformidade com o Juramento de Hipócrates. A imprecisão técnica sobre quando termina o processo de morte não deve servir de subterfúgio para prolongamento artificial do sofrimento.
1 HALLIDAY, Josh. Indi Gregory: critically ill baby girl removed from life support, The Guardian, UK News, 12 nov. 2023.
2 ROSKAM, Jacques. Survie Purement Végétative dans La cérébrosclérose. Euthanasie, Dysthanasie, Orthothanasie. Revue Médicale de Liège. Liège: Faculdade de Medicina de Liège vol. V. nº 20. pp. 709 – 713, 15 out. 1950.
3 MENEZES, Renata Oliveira Almeida. Ortotanásia: o direito à morte digna. Curitiba: Juruá, 2015.
4 MENEZES, Renata Oliveira Almeida. Ortotanásia: o direito à morte digna. Curitiba: Juruá, 2015.
5 MENEZES, Renata Oliveira Almeida. Paciente terminal e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Curitiba: Juruá, 2017.
6 SAMBRIZZI, Eduardo. Derecho y eutanásia. Buenos Aires: La Ley, 2005.
7 LOPES, Antonio; LIMA, Carolina; SANTORO, Luciano. Eutanásia, ortotanásia e distanásia. São Paulo: Atheneu, 2011.
8 HALLIDAY, Josh. Indi Gregory: critically ill baby girl removed from life support, The Guardian, UK News, 12 nov. 2023.
9 PHIPPIS, Amy; FARMES, Brian. Indi Gregory: Life-support withdrawn from critically ill baby. BBC. News, 12 nov. 2023.
10 FARIAS, Gisela. Muerte voluntaria. Buenos Aires, Astrea, 2007.
11 PESSINI, Leo. Eutanásia: por que abreviar a vida? São Paulo: Edições Loyola, 2004.
Fonte: Migalhas
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