Falecido o titular do imóvel, temos como operada a transmissão da herança automaticamente, nos termos do art. 1.784 do CCB (“direito de saisine”), ainda que os herdeiros nem mesmo saibam do falecimento do proprietário que com este devem ter, por exemplo, um vínculo que lhes legitime para o recebimento da herança (art. 1.829 do Código Civil). Isso significa que a herança se transmitiu do pai para os filhos, por exemplo, no exato momento da morte e não – como alguns ainda possam pensar – somente com a realização do Inventário. Como já explicamos em outras passagens, não é o Inventário Judicial (ou Extrajudicial) que transmite a herança, mas sim a citada disposição legal do art. 1.784:
“Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários”.
O Inventário serve para quê então? O inventário serve para identificar, descrever, avaliar o patrimônio deixado pelo defunto e dar-lhe a destinação legal, na forma do art. 1.829 e seguintes do CCB, observadas todas as complexas regras incidentes sobre o procedimento sucessório, especialmente aquela que determina só sejam distribuídos bens depois de pagas as dívidas do morto (art. 1.997). Enfim, numa rápida conclusão, pode-se considerar que o Inventário e a partilha dão segurança jurídica e aplicação legal à situação fática eclodida com o falecimento do autor da herança, buscando a pacificação e evitando-se o litígio em torno da titularidade dos bens deixados.
Pois bem, até que se chegue ao encerramento do Inventário e da partilha dos bens (isso depois de enfim iniciado o Inventário, já que muitos são os casos em que temos o falecimento e não se sabe nunca – e nem mesmo se – o inventário foi ou será aberto) muitas coisas podem acontecer, principalmente um certo “acomodamento” entre os herdeiros interessados e a ocupação exclusiva por algum deles sobre determinados bens. Uma situação peculiar e muito recorrente. Como já falamos em outros ensaios, essa situação pode inclusive possibilitar a USUCAPIÃO de um herdeiro contra os demais, destacando algum bem da herança (e da consequente divisão entre todos), o que é uma situação particularmente alarmante. Um questionamento importante a se considerar nesses casos é: enquanto não se encerra (ou mesmo nem foi aberto) o Inventário, é possível cobrar ALUGUEL do herdeiro que utiliza com exclusividade determinado bem da herança?
Como se viu acima, o DIREITO DE SAISINE estampado no artigo 1.784 do CCB dita a transmissão automática da herança em favor dos herdeiros a partir do evento morte com a abertura da sucessão e estabelece entre esses destinatários um condomínio legal (condomínio pro indiviso). Os herdeiros são coproprietários dos bens deixados pelo morto. Nesse contexto, verificada a utilização exclusiva, ou seja, o exercício da posse exclusiva de imóvel componente da herança por um dos herdeiros, temos estabelecido, em regra, um usufruto ou posse em nome próprio, que pode ensejar a obrigação de indenização aos demais coproprietários. Aqui tem aplicação perfeita a regra que repudia o enriquecimento ilícito e determina que o condômino que utilizar o bem comum em proveito próprio deverá indenizar os demais condôminos pelo uso exclusivo, salvo se houver consenso ou autorização expressa.
No contexto do inventário, o Espólio, representado pelo inventariante, é o titular dos bens até a partilha. Nesse sentido, a ocupação exclusiva do imóvel por um herdeiro, sem autorização do inventariante ou dos demais herdeiros, configura uso indevido da coisa comum, cabendo a cobrança de aluguel para preservar a igualdade entre os herdeiros. Ponto importante nesse cenário é não esquecer da efetiva comprovação da oposição ao uso exclusivo, o que pode ser feito através de NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL ou JUDICIAL. Nessa toada um paradigmático precedente do STJ da lavra da insigne Ministra NANCY ANDRIGHI:
“STJ. REsp 570723/RJ. J. em: 27/03/2007. Direito civil. Recurso especial. Cobrança de aluguel. Herdeiros. Utilização exclusiva do imóvel. Oposição necessária. Termo inicial. Aquele que ocupa exclusivamente imóvel deixado pelo falecido deverá pagar aos demais herdeiros valores a título de aluguel proporcional, quando demonstrada oposição à sua ocupação exclusiva. Nesta hipótese, o termo inicial para o pagamento dos valores deve coincidir com a efetiva oposição, judicial ou extrajudicial, dos demais herdeiros. Recurso especial parcialmente conhecido e provido”.
Importa anotar que o valor do aluguel pago pelo herdeiro que ocupa exclusivamente o imóvel deve ser revertido ao Espólio, e não diretamente aos demais herdeiros, pois o Espólio é a pessoa jurídica que representa o conjunto de bens até a partilha. Tal entendimento visa assegurar a administração adequada do patrimônio hereditário e evitar conflitos entre os sucessores. Não por outra razão o artigo 1.792 do Código Civil determina que o inventariante tem a obrigação de conservar os bens do Espólio e prestar contas aos herdeiros e ao juízo, o que inclui a cobrança de aluguéis de imóveis que estejam sendo utilizados (inclusive por um dos herdeiros, se for o caso), a fim de evitar enriquecimento indevido e prejuízo aos demais.
Se não houver acordo entre todos a respeito do aluguel estabelecido por conta do uso exclusivo, outro caminho não restará além do requerimento judicial para fixação do valor do aluguel e a sua cobrança, como aponta a jurisprudência mineira em caso recente, com total acerto:
“TJMG. 12084976220238130000. J. em: 27/09/2024. AGRAVO DE INSTRUMENTO- AÇÃO DE INVENTÁRIO – USO EXCLUSIVO DE BEM COMUM POR UM DOS HERDEIROS – ARBITRAMENTO DE ALUGUEIS – POSSIBILIDADE – MARCO INICIAL – DATA DO CONHECIMENTO INEQUÍVOCO DA OPOSIÇÃO (…). 1. A herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros, e até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio (art. 1.701 do Código Civil). 2. O herdeiro privado da fruição do imóvel comum, utilizado exclusivamente por outro sucessor e coproprietário, faz jus à percepção de aluguel, na proporção da fração ideal de sua propriedade. 3. O termo inicial da cobrança de alugueis deve coincidir com o momento em que o herdeiro no uso da posse exclusiva do imóvel tomar conhecimento inequívoco da oposição da outra parte em relação à fruição do bem, seja pela via da citação, seja em momento anterior, quando há notificação extrajudicial. (…)”.
Por fim, é imprescindível que os herdeiros busquem a solução consensual para evitar litígios prolongados (inclusive adotando, se for o caso, o INVENTÁRIO EXTRAJUDICIAL como solução rápida para o caso), podendo, inclusive, ajustar a utilização dos bens até a conclusão do inventário. Contudo, na ausência de acordo, a cobrança do aluguel pelo espólio é medida adequada para garantir a justa remuneração pelo uso exclusivo do imóvel por um herdeiro, resguardando os direitos patrimoniais de todos os sucessores até a partilha definitiva.
Fonte: Julio Martins
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