Sem dúvida, os conflitos decorrentes da sucessão causa mortis estão no rol dos assuntos poucos explorados pela arbitragem e por aqueles que a estudam. Por tal passo, embora não se extraia da legislação nacional nenhuma vedação expressa, parece ter se formado a visão de que a arbitragem não pode ser utilizada como plataforma para a resolução de litígios vinculados à abertura da sucessão1. Dentro das limitadas linhas do presente texto, alguns dos “dogmas” que contribuem para tal entendimento restritivo serão, ainda que de forma rápida, abordados, a fim de que o assunto seja debatido.
O primeiro ponto a ser destacado está firmado na (equivocada) concepção de que o inventário causa mortis tramitará pela jurisdição arbitral, substituindo completamente a jurisdição estatal no sentido. Na realidade, a arbitragem será utilizada para dirimir determinado(s) conflito(s) advindo(s) da abertura da sucessão e não propriamente como um “substituto do processo de inventário”. A sucessão causa mortis possui ambiência para que surjam conflitos diversos depois da sua abertura, notadamente no curso do inventário respectivo, situação que decorre da sua própria natureza policêntrica (e, muitas vezes, multipolar)2. Tanto assim que o art. 612 do CPC reconhece que o juízo sucessório deverá decidir “todas as questões” afetas à sucessão, à exceção daquelas que dependerem de provas outras cuja produção não se permite efetuar no bojo do inventário, seguindo-se a premissa de que se trata, por excelência, de processo documental (= processo documentado).3
Assim, de acordo com o modelo legal, se determinado conflito exigir a produção de prova outra que não a documentada, o juiz do inventário deverá remeter o debate para as “vias ordinárias”, a fim de que o litígio seja debelado por outro julgador, que colherá a prova necessária, antes de julgar o conflito. Perceba-se, no detalhe, que a noção de “vias ordinárias” não pode afastar a jurisdição arbitral, pois tal raciocínio colide com a dimensão de “Justiça Multiportas”, que está firmada no § 3º do art. 3º do CPC e da qual, com acerto, a arbitragem é um dos pilares.4
Em exemplos extraídos do próprio CPC, debates acerca de disputas quanto à qualidade de herdeiro (art. 627, § 3º), admissão de interessado no inventário (art. 628, § 2º), necessidade de colação (art. 641, § 2º) e pagamento de dívidas (art. 643, parágrafo único), poderão perfeitamente receber remessa à via arbitral, em interpretação adequada e simbiótica dos arts. 612 e 3º, ambos da codificação processual civil em vigor. As ilustrações são indicativas de que a indivisibilidade da herança, que está pregada no art. 1.791 do CC, não é absoluta, admitindo fatiamentos, situação que se repete, ainda que com outro colorido, na sobrepartilha prospectiva (art. 2.021 do CC).5
A assertiva acima traz à tona outro “dogma” acerca do tema, cujo epicentro de análise está focado nos personagens que podem participar da arbitragem. No pormenor, a remessa da questão conflituosa para o juízo arbitral terá que observar o disposto no art. 1º da lei 9.307/96, no sentido que somente as pessoas capazes de contratar “poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”. Perceba-se, no ponto, que semelhante exigência está prevista nos arts. 610 e 659 do CPC, que regulam o inventário extrajudicial e o procedimento do arrolamento sumário (respectivamente), pois tais figuras somente admitem a presença de pessoas capazes. Logo, não há impedimento legal em relação à arbitragem e a participação de interessados na sucessão, mas tão somente a observância de filtro quanto à capacidade das partes que estão envolvidas no conflito sucessório, filtro este também aplicável ao inventário extrajudicial e ao arrolamento sumário.
A partir do acima dito, fica mais fácil afastar o argumento de que os direitos decorrentes da sucessão são indisponíveis (e, portanto, não admitindo, a arbitragem), uma vez que é perfeitamente admissível que se efetue partilha desigual no inventário sucessório, situação corriqueira tanto no inventário extrajudicial e como no arrolamento sumário, interpretando-as estas como “doações”. Não bastasse tal constatação, é inviável tratar indiscriminadamente o direito à sucessão aberta como exemplo de direito patrimonial indisponível, pois, se assim o fosse, não se admitiria a sua renúncia (art. 1.806 do CC), muito menos sua cessão (art. 1.793 do CC).
Dessa forma, em coerência ao art. 1º da lei 9.307/96, a arbitragem aglutinará apenas os interessados com disponibilidade patrimonial em relação à sucessão aberta e/ou aos direitos arrastados esta (por exemplo, meação). Ademais, deve ser salientado que a arbitragem não está vedada ao Poder Público (art. 1º, § 1º, da Lei 9.037/96), nem aos conflitos que possam envolver a massa falida (art. 6º, § 9º, da lei 11.101/05), observações que reforçam a noção de que a existência de “indisponibilidade dos direitos” merece temperamentos.
De outra banda, é fundamental que – mesmo no direito sucessório – ocorra a consensualidade para a instauração do juízo arbitral. No particular, o art. 6º da lei 9.307/96 possui aderência aos conflitos advindos da sucessão, admitindo-se, por certo, a arbitragem depois da sua abertura, notadamente no curso do inventário sucessório. Em tal cenário, a partir da constatação da existência de determinado(s) litígio(s), poderá ocorrer o consenso dos interessados acerca da forma de resolução (arbitragem), de modo que a controvérsia estará concentrada na(s) pendenga(s) propriamente dita(s) e não no meio de resolução.
Também não possui força o argumento de que a arbitragem poderá não contemplar a completa participação de todos os interessados na sucessão aberta. Tal cenário, com o devido respeito, não é íntimo à arbitragem, mas a todo e qualquer meio de resolução de conflitos em que se esteja deliberando sobre o direito sucessório. Como ocorre nas demais situações, a decisão arbitral não terá eficácia contra terceiros que não participarem do procedimento, situação que, repita-se, não será diferente em relação à jurisdição estatal. Anote-se que a legislação contempla previsões que ratificam o acima dito, como é o caso da ação de petição de herança (art. 1.824 do CC) e da responsabilidade patrimonial dos herdeiros (arts. 796 do CPC e 1.997 do CC). Aliás, em exemplificação mais pulsante ainda, os procedimento que tratam dos arrolamentos sucessórios (sumário – arts. 659-663; comum art. 664) foram moldados sem a presença da Fazenda Pública, fato que não impede sua manifestação (com discordância) posterior acerca das avaliações dos bens, em verdadeiro contraditório diferido que se opera fora do processo judicial.6
Outro “dogma” que merece ser afastado está no sigilo inerente à arbitragem, com a afirmativa de que este é incompatível com o direito sucessório. Como levantado anteriormente, a arbitragem não substituirá o inventário causa mortis, pois funcionará para a resolução de litígio(s) específico(s). No inventário sucessório, a teor do art. 626, § 1º, do CPC, será providenciada a publicidade acerca da sucessão, tendo em vista a sua natureza concorrencial7. Nada obstante tal fato, é perfeitamente admissível que, no ventre do inventário, em transparência, seja(m) explicitado(s) o(s) tema(s) controvertido(s) que foi(ram) remetido(s) para a arbitragem. O sigilo, portanto, está vinculado a atos da arbitragem, mas jamais ao inventário causa mortis. Não suficiente, deve ser lembrado que o sigilo acerca da arbitragem tem sido remodelado a partir da realidade dos conflitos, como ocorre em relação ao Poder Publico e aos interesses da massa falimentar.
Outras questões poderiam ser tratadas, mas, diante do objetivo do texto, apenas as principais foram analisadas. Seja como for, o raciocínio que afasta a arbitragem do direito sucessório não prospera, pois limita a dimensão adequada de acesso à justiça, que está erigida em noção ampla da “Justiça Multiportas”. Em arremate, são inegáveis as vantagens acerca da arbitragem para a resolução de determinados litígios, pois permite não só mais agilidade para o seu desfecho, como também a participação efetiva de especialistas, como é o caso de debates que tenham o direito societário como pano de fundo.
Voltaremos ao tema em breve, com texto de maior fôlego, aprofundando nos assuntos e trazendo outras questões aqui não abordadas. Abre-se, de toda sorte, o debate acerca de assunto que não pode ser mais desprezado.
Fonte: Migalhas
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