O Supremo Tribunal Federal (STF) julgará, no próximo dia 15 de junho, o Recurso Extraordinário 1.167.478/RJ, que tem o ministro Luiz Fux como relator. O tema 1.053 de repercussão geral versa sobre a subsistência da separação como instituto autônomo e também se indaga se permanece como requisito para o divórcio após a promulgação da EC nº 66/2010.
Como presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (Adfas), que atua como amicus curiae nesse processo, e como advogada familiarista, tenho grande preocupação com esse julgamento. A depender do entendimento do STF, ocorrerão graves violações aos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.
Com a EC 66/2010 a Constituição mudou para introduzir o divórcio direto, em seu artigo 226, § 6º, eliminando o prazo que antes existia de um ano de separação judicial ou extrajudicial para que as pessoas casadas pudessem se divorciar.
O divórcio foi facilitado, o que já era um anseio social. A separação também foi facilitada, já que não tem mais o prazo de um ano de distanciamento conjugal para sua decretação por pedido unilateral. Até aí, nenhum problema, muito ao contrário.
Porém, uma corrente de pensamento passou a interpretar que teria sido eliminado o próprio instituto da separação e não só a sua existência como requisito do divórcio. Se esta interpretação for aceita pelo STF, ocorrerão muitas violações à Constituição Federal, aos direitos fundamentais ali previstos, que, a seguir, são destacados:
Direito fundamental à liberdade no exercício de direitos em razão da crença — O primeiro direito fundamental violado pela interpretação segundo a qual estaria eliminada a separação em nosso ordenamento jurídico é aquele previsto no artigo 5º, inciso VIII, da CF, pelo qual é assegurado o exercício de direitos em razão da crença.
Exatamente por ser um Estado laico, em nosso país é inviolável a liberdade no exercício de direitos em razão da crença.
Em várias correntes evangélicas e no catolicismo, o vínculo conjugal é indissolúvel, de modo que somente a separação é permitida a quem professa essas religiões. Se desaparecer o instituto da separação, restaria apenas o divórcio como forma de dissolução conjugal. Impedidos de se divorciarem por sua crença, esses religiosos teriam duas opções: viver sob o estado civil de casados e na situação irregular de separados de fato perante o Estado ou divorciar-se em desrespeito aos preceitos religiosos.
Observe-se que a separação fática não modifica o estado civil, não extingue por si só o regime de bens e os deveres conjugais, enquanto a separação judicial ou extrajudicial opera tudo isto, já que dissolve a sociedade conjugal (CC, artigo 1.576). A separação meramente fática cria um limbo, que efetivamente não se equipara à separação judicial ou extrajudicial.
Portanto, a interpretação que pretende eliminar o instituto da separação viola o direito fundamental à liberdade de regularização do estado civil, por ser a forma de dissolução conjugal admitida por quem não pode se divorciar em razão de sua crença.
Direito fundamental à liberdade – O segundo direito violado pela interpretação segundo a qual deveria ser declarada a inconstitucionalidade das normas sobre a separação judicial é o direito à liberdade (CF, artigo 5º, caput).
Há casais, independentemente do credo, que, diante de crise conjugal, não pretendem a dissolução do vínculo conjugal e necessitam da separação para a regularização de seu estado civil. Desse modo, com a separação, podem restabelecer a sociedade conjugal a qualquer tempo, na conformidade do artigo 1.577 do Código Civil.
Note-se que o Conselho Nacional de Justiça indeferiu o pedido de providências nº 0005060-32.2010.2.00.0000, realizado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família, para modificação da Resolução CNJ 35 e considerou que somente houve a supressão do prazo de separação pela EC 66/2010.
O Código de Processo Civil de 2015, após amplo debate, adotou a separação como instituto autônomo, o que é mais um reforço relevante à sua recepção pela EC 66/2010.
Direitos fundamentais à integridade física e psíquica e à honra – Outros direitos seriam violados pela supressão do instituto da separação: a integridade física e psíquica e a honra, que se encontram na cláusula geral de tutela da personalidade — a dignidade da pessoa humana (CF, artigo 1º III).
Isso porque é nas disposições legais do Código Civil sobre a separação judicial que estão estabelecidas as consequências sancionatórias do descumprimento dos deveres conjugais (artigos 1.578 e 1.704), sendo que não foram inseridas no divórcio porque aquele diploma entrou em vigor quando o divórcio era constitucionalmente conversivo. Antes do divórcio as pessoas deveriam estar separadas e com esses assuntos resolvidos.
Assim, embora a corrente que pretende a supressão da separação alegue que o faz para defender a laicidade do Estado brasileiro, o intuito é a eliminação das consequências sancionatórias do descumprimento dos deveres conjugais, transformando-os em meras recomendações, já que dever sem sanção não é jurídico.
Alega-se que descabe falar em culpa nas relações de família, quando, em verdade, culpa é o descumprimento consciente de uma norma de conduta. Se deixarem de existir normas de conduta, deixaria de existir o próprio casamento, como pontua ANTONIO JORGE PEREIRA JR [1]. Se até a compra de um pãozinho gera deveres e direitos entre o consumidor e a padaria, obviamente que o casamento deve continuar a gerar direitos e deveres entre as pessoas que se casam.
Aliás, não se fala no posicionamento que adoto em culpa como condição essencial da dissolução conjugal. A dissolução conjugal cumulada com o pedido de declaração do descumprimento de norma de conduta é uma das opções para o cônjuge vitimado, que, pode escolhê-la ou preferir a espécie não culposa, em preservação, inclusive, de seu direito à liberdade.
No Código Civil os deveres conjugais são regulados no artigo 1.566, que estabelece a fidelidade e o respeito. O objeto do dever de respeito reside nos direitos da personalidade do cônjuge, como a vida, a integridade física e psíquica e a honra.
As consequências do descumprimento dessas normas de conduta são as seguintes: perda do direito à pensão alimentícia plena, com conservação somente dos alimentos mínimos (CC, artigo 1.704, caput e parágrafo único); e perda do direito ao uso do sobrenome conjugal, salvo as exceções expressas (CC, artigo 1.578, I, II e III).
É inaceitável que, diante da tutela aos direitos fundamentais e à dignidade humana, que o cônjuge vitimado pela agressão física ou moral, inclusive pela infidelidade, possa ser obrigado a prestar ao agressor pensão alimentícia plena, ou seja, que englobe o “necessarium vitae” e o “necessarium personae”.
Se for eliminado o instituto da separação, mulheres que sofrem violência doméstica e sustentam a casa terão de pagar pensão alimentícia ao agressor, o que importa em violação ao artigo 226, § 8º, pelo qual “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”. Evidente seria o incentivo à violência se o homem agredisse a mulher e ainda fizesse jus a receber dela pensão alimentícia plena [2].
Também inaceitável seria obrigar a pessoa do cônjuge traído a pagar ao outro alimentos plenos, que têm como parâmetro as possibilidades de quem presta a pensão e todas as necessidades de quem a recebe, da alimentação ao lazer, passando por habitação, vestuário e até mesmo educação, entre outras despesas do cônjuge infiel, como, por exemplo, tratamentos de natureza estética.
Isso equivaleria a endossar a violação à integridade física e moral de uma pessoa, por ser casada, em desacato ao princípio da dignidade da pessoa humana.
No mesmo sentido, não há como aceitar que o cônjuge que sofre essas violações seja forçado a calar-se em relação ao nome de sua família. Violação ao direito ao nome, e, portanto, à dignidade, esta é a consequência da interpretação que pretende a eliminação do instituto da separação.
Reitere-se que a eliminação das sanções civis ao descumprimento de dever conjugal equivaleria a transformar esses deveres em meras recomendações, como acentua a ministra Nancy Andrighi [3].
Também estimularia a poligamia, vale dizer, infirmaria o pilar do casamento que é a monogamia e levaria a grave contradição com as duas teses de Repercussão Geral recentemente firmadas sobre os temas 526 e 529, que reconheceram a plena vigência do dever de fidelidade e, portanto, das consequências de seu inadimplemento, respectivamente:
“É incompatível com a Constituição Federal o reconhecimento de direitos previdenciários (pensão por morte) à pessoa que manteve, durante longo período e com aparência familiar, união com outra casada, porquanto o concubinato não se equipara, para fins de proteção estatal, às uniões afetivas resultantes do casamento e da união estável” (STF, RE 883.168/SC, rel. min. DIAS TOFFOLI, j. 03/08/2021).
“A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1723, §1° do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro.” (STF, RE 1.045.273/SE, rel. min. ALEXANDRE DE MORAES, j. 21/12/2020).
E não tem apoio o argumento de que o cônjuge violador poderia ficar sujeito a passar fome, diante dos alimentos indispensáveis que são assegurados ao culpado (CC, artigo 1.704, parágrafo único), que servem às necessidades básicas de quem não tem aptidão para o trabalho e parentes em condições de auxiliá-lo.
Mesmo que fosse possível considerar violação à privacidade o relato em processo judicial sigiloso de comportamentos do cônjuge praticados em violação aos deveres que assumiu no casamento, pelo princípio da ponderação, os direitos à honra e à integridade física e psíquica deverão prevalecer.
Considerações finais
Na doutrina, vários juristas de escol defendem a manutenção do instituto da separação.
Conforme Rosa Maria De Andrade Nery: “A separação consensual e judicial, entretanto, para os casais que pretendem o término da sociedade conjugal, mas, por razões pessoais não queiram, ou o término do vínculo matrimonial, ainda é possível como admitido pelo CPC 23 III e 731 ss” [4].
Também Carlos Alberto Dabus Maluf e Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf defendem a manutenção da separação judicial com ou sem culpa após a EC 66/2010 [5].
Como afirma Venceslau Tavares, “O direito ao divórcio não depende de comprovação da separação (judicial ou de fato). Remanesce, contudo, a separação judicial como uma faculdade conferida ao casal” [6].
Cite-se, ainda, Lauane Andrekowisk Volpe Camargo, para quem “a separação não acabou, existe, e é uma opção não excluída pela Emenda Constitucional n° 66/2010” [7] .
A jurisprudência também é vasta no entendimento de que o instituto da separação permanece no ordenamento brasileiro após a EC 66/2010, tanto de tribunais estaduais como do Superior Tribunal de Justiça [8].
Por último, temos de ter presente que a manutenção do instituto da separação e de suas normas, inclusive as que estipulam sanção a quem descumpre dever conjugal, serve também para que sejam aplicadas ao divórcio.
Como destaca o ministro Luis Roberto Barroso, a entrada em vigor de nova norma constitucional exige um diálogo entre o novo dispositivo e a legislação que se encontra vigente no ordenamento [9]:
“A interpretação constitucional conduz-se sob a inspiração de determinados princípios cardeais, que a singularizam, dando-lhe um toque de especificidade. Dentre os princípios, destacam-se, para os fins do tópico aqui versado, o da supremacia da Constituição e o da continuidade da ordem jurídica. […] Merece relevo, por igual, o princípio da continuidade da ordem jurídica. Ao entrar em vigor, a nova Constituição depara-se com todo um sistema legal preexistente. Dificilmente a ordem constitucional recém-estabelecida importará em um rompimento integral e absoluto com o passado.”
Em suma, a eficácia direta da Constituição Federal em todo o ordenamento jurídico leva à convicção de que as regras sobre a separação, judicial e extrajudicial, tanto em relação ao instituto em si, como às sanções atinentes ao descumprimento de dever conjugal, foram recepcionadas pela Emenda 66/2010, que se limitou a retirar os requisitos temporais do divórcio.
Fonte: Conjur
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