Acessibilidade, cotas raciais e igualdade já estão se tornando realidade nos cartórios. Um cineasta fala da importância da representatividade

 

No dia 9 de março de 2021, o Plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou a inclusão de cotas raciais nos concursos para Outorga de Delegações de Notas e de Registro. A decisão marcou um importante passo em direção à inclusão social e distribuição de renda, e já foi posta em prática no último Concurso Público para Cartórios do estado de São Paulo, cuja primeira fase ocorreu no dia 20 de março deste ano. Das 219 serventias ofertadas no edital – das quais 145 para provimento e 74 para remoção – 11 foram reservadas aos candidatos com deficiência e 29 para os candidatos negros.

 

Além dos candidatos que assumem as serventias extrajudiciais, a inclusão de mulheres, negros, pessoas com deficiência e LGBTs no quadro de funcionários do cartório também é uma possibilidade, e fica a critério dos responsáveis por cada uma dessas serventias. A equipe do Tabelião de Notas e Protesto de Letras da comarca de Itaquaquecetuba, por exemplo, é composta por pelo menos 50% de mulheres, e conta também com colaboradores negros.

 

“Na qualidade de tabelião, de empregador de um grupo grande de pessoas, nós temos uma equipe razoavelmente grande, eu acredito fortemente que essa minha aceitação à pluralidade tenha de se traduzir de forma concreta nas escolhas que a gente faz para a nossa equipe”, comentou o tabelião de Itaquaquecetuba, Arthur Del Guércio Neto. Ele aderiu à campanha “Cartório Plural”, iniciativa da Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg/BR), que visa certificar as unidades extrajudiciais que estimulam a diversidade em seu ambiente de trabalho, assim como esclarecer e orientar a população sobre os atos que os podem ser realizados nos cartórios para garantir os direitos individuais.

 

Apesar da constante busca por candidatos com o maior potencial e melhor capacidade para assumir as vagas ofertadas, Arthur Del Guércio enfatizou a autoavaliação que todo empregador deve realizar em si mesmo: “É interessante que a gente observe dentro da composição de uma equipe se essa pluralidade está sendo observada. Porque muitas vezes a gente pode, dentro dessa busca por uma maior capacidade, ficar ligado a um ‘gênero’. A gente pode não observar essa pluralidade”.

 

E foi graças a algumas oportunidades que Valter Rege, cineasta e influenciador digital, conseguiu dar passos importantes rumo à carreira dos sonhos. Morador da comunidade de Americanópolis, negro e gay, o roteirista enfrentou diversos obstáculos e preconceitos durante a sua formação. “Estudo cinema de forma autodidata desde os 12 anos. Aprendi a escrever roteiros lendo livros que eu não podia comprar dentro das livrarias e acreditava na meritocracia que nunca chegou”, relatou Valter sobre o passado. Hoje, ele é um influenciador de sucesso nas redes sociais, e autor de dois filmes: “Preto No Branco” e “O Cinema Me Trouxe Aqui”. Estas conquistas foram fruto do próprio esforço e também de algumas oportunidades que surgiram e foram abraçadas por ele.

 

Através de uma bolsa de estudos, Valter Rege conseguiu em 2008 cursar Rádio e TV no Centro Universitário Belas Artes. Concluída a graduação, ele trabalhou na pós-produção de algumas produtoras até que, em 2016, foi contemplado pelo Edital Curta Afirmativo para produtores negros. “Ganhei uma verba para escrever e dirigir o curta metragem ‘Preto No Branco’. Com o filme pronto, participei de festivais e consegui fazer a minha primeira viagem de avião – e também primeira viagem internacional – para o Canadá, para o Toronto Black Film Festival”, comentou o cineasta.

 

A partir do registro desta primeira experiência internacional, Valter produziu seu primeiro longa-metragem, “O Cinema Me Trouxe Aqui”. Acerca da oferta de bolsas, editais e cotas, ele demonstrou ser a favor, mas alertou que ações isoladas não são o suficiente: “É importante oferecer, antes do emprego, acesso à formação para o mercado de trabalho. Vejo muitas empresas dizendo que dão oportunidades, mas não dão as ferramentas certas, e finalizam o processo dizendo que pretos e LGBTs não são capazes, pois não aproveitaram as oportunidades”, argumentou Valter.

 

Os benefícios do estímulo à pluralidade são incontáveis. Muito além de representarem a diversidade de forma literal, através de um quadro de funcionários equilibrado, os cartórios configuram instituições diariamente frequentadas pelos cidadãos para realizarem atos da vida civil, e como instituições, têm a missão de demonstrar um bom exemplo para a sociedade e acolher minorias e pessoas vulneráveis. “Eu acho que é importante, para a sociedade como um todo, observar que dentro do cartório você tem múltiplas pessoas, das mais variadas formas, e que isso, de uma certa maneira, eu acredito que estimule outras entidades a trabalharem da mesma maneira”, analisou Arthur Del Guércio Neto.

 

Se ver representado em um atendente, uma celebridade, um especialista, um cantor ou até em um personagem é elemento indispensável para o desenvolvimento humano. A representatividade de mulheres, pessoas LGBT, de cor ou deficientes na mídia, e fora dela, acaba muitas vezes sendo negligenciada em prol da reprodução de padrões já vigentes. “Afeta a vida das minorias, porque não aprendemos sobre a importância da diversidade na infância. Fui uma criança que sofreu várias violências físicas e psicológicas por ser gay e preto, e na mídia, em geral, os estereótipos só eram reforçados. A gente só absorve e pouco questiona”, Valter Rege relembrou.

 

Mas não só de representatividade se faz uma instituição plural. É necessário, antes de mais nada, haver respeito e acolhimento às minorias que frequentam esses espaços. Exemplos de como melhor atender ao público podem ser observados no tabelionato de Itaquaquecetuba: “Por ter um prédio com elevador, ele tem acessibilidade a todos os andares. A pessoa que tem alguma dificuldade de locomoção, a gente sempre atendeu integralmente em todos os ambientes aqui do cartório. A gente teve uma preocupação com o deficiente visual, de forma que a gente colocou dentro da nossa estrutura aquele piso tátil, que é um piso que permite o deficiente visual se locomover sem o auxílio de ninguém”, descreveu o tabelião.

 

Um atendimento inclusivo aos usuários, e também a certeza de que os direitos fundamentais das minorias devem ser garantidos, fazem dos cartórios peças-chave na construção de um país mais democrático. Desde que o Colégio Notarial do Brasil – Seção São Paulo (CNB/SP) começou a contabilizar os dados sobre atos notariais feitos no estado, foram realizadas mais de 4,2 mil escrituras de união estável homoafetivas em tabelionatos de notas paulistas.

 

Arthur Del Guércio relembrou uma ação em parceria entre uma entidade LGBT da região do Alto do Tietê e o tabelionato de Itaquaquecetuba: “Eles fizeram uma celebração de uniões da comunidade LGBT, e a gente participou disponibilizando algumas escrituras de união estável para que pessoas menos favorecidas pudessem formalizar de fato as suas relações”.

 

“Acho que é importante oferecer cursos de formação e entender que, se as empresas realmente estão dispostas a transformar a sociedade, precisam preparar os seus funcionários a estudar sociedade e preconceitos”, Valter Rege adicionou. Quando as minorias têm seus direitos garantidos, a vitória é de todos.

 

Fonte: CNB/SP

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