O falecimento de um ente querido, sobretudo de um familiar, traz, para além dos sentimentos causados pela perda, implicações de caráter patrimonial de extrema relevância para o direito tributário. Adotando a transferência de renda e propriedade decorrente do falecimento, o texto constitucional define que os estados e o Distrito Federal têm competência para instituir o Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), embora também imponha restrições a esta competência, como veremos mais adiante.
Com a expansão do universo digital, e especialmente após a criação do metaverso, houve a transferência das operações econômicas de base física para uma base virtual, gerando a seguinte questão: qual a base de cálculo do ITCMD nas heranças digitais? Para responder a esta pergunta, temos que investigar o conceito de herança, herança digital e a base de cálculo do ITCMD.
O conceito de herança pode ser sintetizado como o “conjunto de bens e direitos, ativos e passivos, que uma pessoa deixa ao morrer” [1]. Por outro lado, ainda não há consenso sobre o conceito de herança digital, tampouco há previsão expressa na legislação do direito sucessório brasileiro.
Para agravar este cenário, na última década proliferaram-se perfis em redes sociais, como Youtube e Instagram, que além de simplesmente gerar fama e reconhecimento a seus usuários, também lhes fornecem benefícios de caráter financeiro por meio do patrocínio de marcas, permitido pelas plataformas e impulsionado pelo número de seguidores.
Em que pese ainda existir um grau de indeterminação no conceito de herança digital, pode-se afirmar que a herança digital é constituída por todo o conteúdo criado e armazenado em rede pela pessoa falecida, podendo incluir blogs, perfis em redes sociais, perfis para transações bancárias, contas em jogos, canais no YouTube, livros digitais arquivados em nuvem, criptomoedas, etc. Claro que para fins tributários, a herança deve ser dotada de valor econômico.
Do ponto de vista jurídico, a regulamentação da herança digital parece não ter sido objeto de preocupação pelo Poder Legislativo, apesar de alguns recentes projetos de lei, como é o caso do PL nº 1.689/2021, apresentado pela deputada Alê Silva (PSL/MG).
O referido projeto propõe a alteração do Código Civil para dispor sobre perfis, páginas, contas, publicações e os dados pessoais de pessoa falecida, incluindo seu tratamento por testamentos e codicilos. O conceito de herança previsto no CC/02 seria ampliado, de modo a incluir direitos autorais, dados pessoais, publicações e interações em redes sociais, arquivos em nuvem, entre outros. Em tom semelhante, o PL nº 5.820/19 define a herança digital, dentro do CC/02, como vídeos, fotos, livros, senhas de redes sociais, e outros elementos armazenados exclusivamente na rede mundial de computadores, em nuvem.
As propostas esbarram em um grande empecilho: o artigo 5º inciso XII da CF/88 prevê o direito à inviolabilidade dos dados relacionados às comunicações, exceto por ordem judicial e nas hipóteses previstas pela Lei para investigação criminal ou instrução processual penal. Ou seja, o direito constitucional à privacidade e inviolabilidade de dados impede o acesso ao patrimônio digital por parte dos herdeiros, exceto em casos excepcionais.
Assim, as questões jurídicas interagem com questões de caráter moral: os herdeiros do falecido, sobretudo seus familiares, deveriam ter acesso às mensagens trocadas, fotos e outras informações de caráter privado?
Sem contar que em muitas situações, e essa é a tendência, os bens estão protegidos por senhas, que não podem ser “quebradas”, impedindo a liquidação do patrimônio digital, caso não seja possível quebrá-las.
Outra questão é a ausência de determinação do falecido em vida, capaz de “orientar o passo-a-passo” da distribuição do patrimônio digital. Neste caso, uma decisão judicial poderá tornar o acervo acessível aos herdeiros legais, mas permanece o risco de que tal distribuição, determinada pelo Judiciário, não seja condizente com a vontade que o falecido possuía. O patrimônio virtual é formado por bens sem suporte físico, o que dificulta a sua distribuição. Como dividir, por exemplo, os recursos obtidos a partir de merchandising, o dinheiro resultante de assinaturas para se acessar conteúdo virtual, etc.?
O PL nº 1.689/2021, já comentado, busca ao menos regularizar a questão do acesso a perfis e outros componentes da herança digital do falecido, ao exprimir que, exceto por vedação testamental, o herdeiro poderá acessar a conta caso apresente o atestado de óbito, escolhendo se irá utilizá-la ou não. Se não houverem herdeiros, o perfil ficará à disposição de um curador, até a entrega a um sucessor devidamente habilitado.
No Judiciário, a questão ainda engatinha, embora posicionamentos recentes comecem a delinear os contornos do tema. Em 2020, a 2ª seção do STJ modernizou seu entendimento sobre testamentos, compreendendo que a manifestação de vontade do testador se sobrepõe às formalidades legais de um testamento, a exemplo da assinatura do documento com caneta esferográfica.
O voto da ministra Nancy Aldrighi isenta a disposição de herança digital de impressão e assinatura de caráter físico, facilitando ao dono do acervo digital manifestar sua vontade, em vida, sobre a distribuição do mesmo [2].
REsp 1.633.254 /MG – 2020 (voto de Nancy Andrighi)
Nesse contexto, não é minimamente razoável supor ou impor que um millenial ou um pós-millenial que pretenda dispor de modo testamentário de sua herança digital somente o possa fazer se imprimir um documento e assiná-lo de próprio punho.
Essas gerações possivelmente não têm sequer uma impressora (como já não possuem há anos desktops, notebooks e e-mails) e, até mesmo, talvez não tenham sequer a destreza necessária para reproduzir, identicamente e em série, uma assinatura de próprio punho, habilidade de que não necessitam para viver adequadamente na sociedade atual.
Uma vez definido o conceito de herança digital, os Estados que a tributarem, mediante o ITCMD, deverão regulamentar a tributação sobre esta nova espécie de bens e direitos em suas respectivas legislações estaduais, criando novas normas ou adaptando as já existentes.
Neste sentido, vale relembrar que no julgamento do RE nº 851.108 (Tema nº 825 da Repercussão Geral), o ministro relator Dias Toffoli entendeu que, embora haja competência privativa das unidades federadas para instituir ITCMD, as leis complementares são incumbidas da função de estabelecer os padrões gerais do poder de tributar, definindo fatos geradores, bases de cálculo, etc. e também por delimitar as regras de competência, resolvendo múltiplos potenciais conflitos causados pela delegação do ITCMD ao Poder Estadual.
Na ocasião, o STF entendeu que os estados não podem exigir o ITCMD nas hipóteses em que o doador tiver domicilio ou residência no exterior ou o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior até a edição de lei complementar. No julgado, a doutrina de Alberto Xavier é citada para justificar a exigência de lei complementar, afirmando que a redação artigo 155, §1º, III, b, da Constituição Federal ilustra exclusivamente a função de regular a competência, função esta que é privativa da União.
“É que, repare-se bem, não se está aqui perante a lei complementar no seu papel constitucional de veiculadora de ‘normas gerais’, atribuído pelo inciso III do artigo 146, mas sim na sua imprescindível função de ‘norma sobre competência’, conferido pelo inciso I do mesmo artigo, reguladora, por via preventiva, de conflitos de competência, em matéria tributária, entre os entes políticos da União. Se é admissível o exercício supletivo pelos Estados, de uma competência concorrente em matéria de ‘normas gerais’, já não o é em matéria de ‘conflitos de competência’ em que a competência normativa não é concorrente, mas privativa da União, na forma de lei complementar, pois só esta, de âmbito de validade geral, é suscetível de prevenir a formação de concursos de pretensões dos diversos Estados e do Distrito Federal potencialmente envolvidos na situação.” (XAVIER, Alberto).
Esta lei complementar não foi editada pelo Legislativo até o momento, o que dificulta a aplicação do ITCMD sobre inúmeras situações fáticas, visto que bens que integram o acervo digital possuem menor fixação ao solo nacional do que bens imóveis ou mesmo do que bens móveis de caráter físico, como, por exemplo, em situações de bens do metaverso, oriundos de uma conta localizada no estrangeiro (criptomoedas) ou perfis monetizados de um influenciador digital residente no exterior, mas com descendentes que residam no Brasil.
Além de se mostrar necessário que a lei complementar trate dessa questão e dentro do possível, tente regulamentar a tributação da herança digital de um modo geral, certamente o Poder Judiciário será provocado futuramente para definir diversas controvérsias, algumas delas ainda inimagináveis.
Por fim, outra questão relativa ao ITCMD que deverá ser enfrentada é a constituição de sua base de cálculo. Segundo o artigo 38 do CTN, a base de cálculo deste tributo é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos, mas, sobretudo quando a herança digital inclui perfis “monetizados” por plataformas de conteúdo, não é possível diferenciar precisamente qual parcela do valor de tais perfis constitui patrimônio econômico, e qual constitui patrimônio pessoal. Superou-se em anos recentes a concepção tradicional do tributo, que separa bens pessoais, ligados somente aos direitos de personalidade e não-inclusos na base de cálculo do ITCMD, como perfis, mensagens e fotos, de situações patrimoniais adquiridas e mantidas virtualmente, como filmes, músicas, moedas ou pontuações (milhas) de sociedades empresárias. Um perfil monetizado pode adotar características dos dois, simultaneamente.
Uma estratégia apontada pela doutrina, para encontrar o valor preciso da herança digital e evitar desequilíbrios econômicos no momento da partilha entre herdeiros, é comparar o valor do acervo digital com o valor de acervos semelhantes alheios, para que surja o “valor de mercado” dos bens sujeitos à sucessão patrimonial. Enquanto para as criptomoedas, ainda há valores de cotação para cada espécie de moeda, diariamente ajustados, perfis com valor econômico não possuem um parâmetro pré-definido de avaliação de valor. Cada conta recebe diferentes espécies de patrocínio, com poucos “concorrentes” para que haja uma comparação mercadológica.
Assemelham-se, assim, às cotas de sociedades limitadas, cujo valor de alienação é muitas vezes utilizado, pelos Estados, para determinação da base de cálculo de ITCMD. Assim como perfis monetizados, as cotas valorizam-se com o tempo, sem constante comercialização e trânsito econômico. Portanto os valores das mesmas, de avaliação e patrimonial, são os mais adequados à equiparação com o valor de perfis monetizados. A mesma vertente de raciocínio é aplicável às NFTs (non fungible tokens) e aos bens imobiliários no metaverso, de modo a definir suas bases fiscais para a incidência do ITCMD.
Conclusão
Não é difícil visualizar, através das controvérsias discutidas acima, a enormidade de situações relacionadas à definição e tributação de heranças digitais que a Legislação e a jurisprudência nacionais precisam abordar e solucionar, preferencialmente já no futuro próximo. À medida que porções cada vez maiores das transações econômicas e patrimoniais do mundo real migram total ou parcialmente para o mundo virtual, mais comuns se tornam as heranças digitais, que já movimentam quantias vultuosas de capital. Como exemplo, temos o metaverso, que cresce a cada dia e já é utilizado para a compra de terrenos, iates e outros veículos, obras de arte, etc.
Não é mais cabível ao Congresso, principalmente, a postergação da solução dessas controvérsias, por meio da aprovação dos projetos de lei que já tramitam e a edição de lei complementar para tratar da tributação das doações com vínculos no exterior, conforme determinou a Suprema Corte no julgamento do RE n° 851.108, tratando, dentro do possível, também das heranças digitais.
Aguardemos as cenas dos próximos capítulos.
Fonte: Conjur
Deixe um comentário