Em 15 de fevereiro de 2022 foi editada a Recomendação CNJ nº 128, orientando os órgãos do Poder Judiciário a adotarem o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, de modo a colaborar com a implementação das Políticas Nacionais estabelecidas pela Resolução CNJ no 254/2020, relativas ao Enfrentamento à Violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário.
A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/ 2006), não obstante o grande avanço que representou no combate à violência doméstica contra a mulher, tem a sua eficácia ainda muito dependente daqueles a quem cabe a sua aplicação. Por isso, é imperioso que os julgamentos que envolvam condutas de violência doméstica contribuam para realizar a igualdade de gênero. E nesse sentido há de ser o grande contributo do Protocolo no implemento de políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres, especialmente no âmbito dos litígios de família, como bem destaca o texto produzido pelo CNJ:
“Não se pode deixar de afirmar, outrossim, que a construção de estereótipos de gênero relacionados aos papéis e expectativas sociais reservados às mulheres como integrante da família pode levar à violação estrutural dos direitos da mulher que, não raras vezes, deixa a relação ( matrimônio ou união estável) com perdas financeiras e sobrecarga de obrigações, mormente porque precisa recomeçar a vida laboral e, convivendo com dificuldades financeiras, deve destinar cuidados mais próximos aos filhos, mesmo no caso de guarda compartilhada.
Ao lado do ideal romântico da figura materna, o gênero feminino, sempre que não se encaixa na expectativa social, é rotulado com estereótipos como o da vingativa, louca, aquela que aumenta ou inventa situações para tirar vantagem, ou seja, a credibilidade da palavra e intenções da mulher sempre são questionadas.
Por isso a importância da análise jurídica com perspectiva de gênero, com a finalidade de garantir processo regido por imparcialidade e equidade, voltado à anulação de discriminações, preconceitos e avaliações baseadas em estereótipos existentes na sociedade, que contribuem para injustiças e violações de direitos fundamentais das mulheres. As instituições devem se atentar para os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa ao tratar dos direitos humanos de mulheres e meninas, como determinado na Constituição Federal. Analisar e julgar uma ação com perspectiva de gênero nas relações assimétricas de poder significa aplicar o princípio da igualdade, como resposta à obrigação constitucional e convencional de combater qualquer tipo de discriminação de gênero, garantindo o real acesso à justiça com o reconhecimento de desigualdades históricas, sociais, políticas, econômicas e culturais para a preservação do princípio da dignidade humana das mulheres e meninas.
Uma atuação com perspectiva de gênero pressupõe uma atenção não apenas ao julgar, mas durante a tramitação processual. Diante de uma demora em uma decisão de mérito, dificuldades surgem especialmente para as mulheres, como ficar sem renda e sem ter acesso aos bens comuns, tendo ainda que arcar com todos os cuidados dos filhos e das filhas. Além disso, as instruções processuais podem se tornar verdadeiros tribunais morais para a mulher, em que sua vida íntima é devassada e seus comportamentos pessoais são julgados, como se fossem justificativas para que seus direitos fossem invisibilizados e/ou negados. As desigualdades históricas e vulnerabilidades que existem em razão do gênero em todas as relações sociais também se projetam para as relações íntimas e familiares.”
A Recomendação 128 constitui um autêntico guia de conscientização para o Poder Judiciário, a quem cabe identificar, em cada conflito concreto, a presença de eventuais desigualdades estruturais decorrentes de gênero e garantir que a disputa judicial seja sempre um espaço igualitário entre homens e mulheres.
Como importante passo na maior efetivação das medidas de combate à violência doméstica, o protocolo orienta que as decisões judiciais estejam fundamentadas, não apenas na legislação nacional, mas também nos tratados e convenções internacionais de direitos humanos, incorporados pelo Brasil, ressaltando que “ao incorporar um tratado internacional de direitos humanos ao seu sistema jurídico interno, os estados manifestam, soberanamente, sua vontade de aderir ao sistema de proteção dos direitos humanos e assumem o dever de garantir a sua efetiva e eficaz aplicação”, ao mesmo tempo em que considera “imprescindível a realização do controle de convencionalidade do sistema normativo interno por parte das magistradas e dos magistrados” [1].
O controle de convencionalidade possibilitará ao julgador, v.g., afastar as infames cláusulas de impunidade, no tocante aos crimes contra o patrimônio, previstas nos artigos 181 e 182 do Código Penal [2]. O combate à violência patrimonial contra a mulher [3] fica especialmente comprometido em decorrência daquelas imunidades,
Os artigos 181 e 182 do CP constituem aquilo que o Protocolo de Gênero alude como “normas indiretamente discriminatórias”, em que a desigualdade não é facilmente percebida, já que a lei não discrimina expressamente as mulheres. Muito embora a racionalidade utilizada aparente ser neutra em relação ao gênero, já que o legislador se refere indistintamente a ambos os cônjuges, na verdade, são regras que refletem a mais gritante das desigualdades, impactando negativamente as mulheres de maneira desproporcional, já que a esmagadora maioria dos casos de violência doméstica tem como agente agressor o homem, principalmente em se tratando de violência patrimonial, estimulada e incentivada pelo estigma social do homem provedor e da mulher “rainha do lar”, economicamente dependente.
A interpretação jurisprudencial mais conservadora, e ainda vigente, não recepcionou a tese de que os artigos 181 e 182 do CP teriam sido derrogados pela Lei Maria da Penha, vale dizer, o entendimento no sentido de serem inaplicáveis os artigos 181 e 182 do CP aos crimes de violência doméstica e familiar não prevalece no Judiciário brasileiro. O STJ vem decidindo que tais dispositivos não foram afastados pela Lei Maria da Penha [4].
Entretanto, a Recomendação CNJ 128 propõe ao Poder Judiciário, como alternativa para que se possa recorrer às ferramentas do Direito Penal contra a violência patrimonial, desconsiderando as ultrapassadas imunidades discriminatórias contra a mulher e garantindo procedimentos legais não influenciados por estereótipos de gênero, o uso do controle de convencionalidade [5]:
“O controle de convencionalidade realizado por magistradas e magistrados consiste na verificação e avaliação se os atos normativos internos guardam ou não compatibilidade com as normas, os princípios e as decisões produzidas no âmbito dos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, em face de sua primazia e dimensão vinculativa e normativa.
Nesse sentido, em face do compromisso internacional do Estado brasileiro no que tange à promoção e proteção dos direitos humanos, devem as magistradas e os magistrados — bem como qualquer outra autoridade pública —, respeitar e aplicar as normas e a jurisprudência que integram os sistemas internacionais de proteção — tanto em âmbito regional como global. Diante do paradigma contemporâneo do Estado constitucional, da abertura dos estados ao direito internacional dos direitos humanos, da premente necessidade de entrelaçamento entre as ordens normativas nacional e internacional, os juízes e as juízas nacionais tornaram-se os principais protetores dos direitos humanos e têm no controle de convencionalidade a ferramenta necessária para enfrentar o desafio de garantir a primazia da dignidade humana e o império do sistema normativo de proteção dos direitos humanos. O Poder Judiciário, portanto, assume relevante e decisivo papel na garantia do respeito, proteção e promoção dos direitos humanos.”
Especificamente sobre as escusas nos crimes patrimoniais, conclui o protocolo:
Na atuação com perspectiva de gênero, pode ser necessário o controle de convencionalidade das causas de isenção de pena e a representação previstas nos arts. 181 e 182 do Código Penal, o que se afirma como base no que dispõe Convenção de Belém do Pará (Controle de Convencionalidade, Parte II, Seção 9 abaixo).
Com efeito, a isenção de pena prevista no artigo 181 e a representação previstas no Código Penal inviabilizam o reconhecimento da mulher como titular de patrimônio jurídico próprio, dissociado de seu cônjuge ou de outro membro familiar, o que obsta a caracterização da violência patrimonial prevista no artigo 7º, IV, da Lei Maria da Penha.
Demais disto, cabe lembrar que se o cônjuge estava divorciado, separado de direito ou separado de fato, se a união estável estava dissolvida, ou se já havia cessado a relação íntima de afeto, deve ser feita a representação para instauração da persecução penal. Se houve emprego de violência ou grave ameaça, ou se a vítima for maior de 60 anos, a ação penal poderá ser instaurada independentemente de representação e ainda na constância do casamento ou da união estável.
Nesse contexto, e analisando a questão sob a perspectiva de gênero, é plenamente defensável a aplicação da cláusula de exceção do artigo 183 do CP quando o crime contra o patrimônio é cometido com emprego de violência doméstica contra a mulher. A análise jurídica com perspectiva de gênero, com a finalidade de garantir imparcialidade e equidade no processo, impõe que sejam reformadas ou revistas as decisões em sentido contrário, que desconsideram a violência doméstica como causa de afastamento da escusa absolutória.
A questão da violência contra a mulher nos litígios judiciais, por fim, constitui tema da obra Violência nas Famílias e Sucessões — Uma homenagem ao jurista Mário Luiz Delgado, que foi organizada pela advogada Romana Reinert Censi e reúne artigos de juristas catarinenses [6].
Fonte: Conjur
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