Hígia se formara há pouco mais de 2 anos na faculdade de medicina e, enquanto se preparava para disputar uma vaga de residência em um dos hospitais mais prestigiados na sua área de pesquisa, a medicina de emergência, foi contratada como socorrista por uma empresa que administrava a concessão de uma das rodovias mais perigosas do país. Naquela tarde de sábado tudo parecia correr bem, sem qualquer acionamento para atender traumas mais graves. Ela havia feito alguns curativos em motoristas alcoolizados e também atendeu a uma senhora que, às margens da rodovia, fora atacada por uma vaca que perambulava solta, mas, em geral, nada demais. Até que uma ligação a retirou dos seus pensamentos.
Havia ocorrido um capotamento no km 60 e, ao que indicava a ligação de um motorista que havia passado pelo local, um corpo fora projetado para fora do veículo. Hígia não tardou em acionar a sua equipe e, juntos, saíram em disparada até o local do evento. Lá chegando, constataram que realmente o veículo não logrou fazer uma curva, em função aparentemente da alta velocidade, capotara algumas vezes e uma pessoa fora projetada pelo para-brisas, encontrando-se desacordada com o corpo ao solo. Enquanto saía rapidamente da ambulância, chegou a refletir sobre o capotamento, que ocorrera em um local de curva suave, não havendo marcas de freadas na pista; chegou, ainda, a pensar que o corpo somente poderia ter sido projetado pelo para-brisas em razão da não utilização do cinto de segurança. Tudo era muito estranho, mas não havia tempo a perder.
Ao se aproximar da pessoa, uma mulher, notou que ainda respirava com bastante dificuldade, mas havia um fio de vida em que se apegava. Sem tardar, começou a imobilizá-la e a realizar os primeiros socorros quando, de repente, notou estar evoluindo para uma parada cardiorrespiratória. O coração da vítima havia começado a falhar, até que parou. A médica gritou a alguém da sua equipe para que trouxesse o desfibrilador e começou a despir a mulher, da cintura para cima, para poder alocar o aparelho. Foi então que reparou, tatuada no tórax, a seguinte frase: “Se o meu coração parar, não quero ser reanimada”. Ela se desesperou, porque se recordou da aula sobre testamento vital que tivera na faculdade e que, em que pese sem previsão em lei formal, a opção da paciente estava protegida pela Resolução n°. 1.955/2012 do CFM que, segundo os seus professores, havia até mesmo sido declarada válida ao ser questionada judicialmente1.
A Resolução, de acordo com o que se recordava, define diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade (art. 1°). Seria o caso de respeitar a vontade da paciente naquele momento e não tentar com que o seu coração voltasse a bater? Não! Não, ela não podia fazer isso, porque havia treinado a ajudar as pessoas e não podia deixar que uma tatuagem feita como testamento vital superasse o seu juramento de Hipócrates2. Ademais, a tatuagem podia ter sido feita em alguma situação prévia, em que a mulher não estivesse raciocinando com clareza e diante de circunstâncias não atuais da sua vida. E, além disso, também se lembrava que o artigo 2° da mencionada Resolução conferia base normativa à sua atuação, na medida em que previa que nas decisões sobre “cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade.”
Circunstâncias. Sim, as circunstâncias. Se obtivesse alguma prova de que aquela tatuagem fosse dúbia, poderia tentar salvar a vida da mulher. Então, enquanto posicionava o desfibrilador, pediu à enfermeira que buscasse algo entre os objetos da mulher que indicasse que queria continuar a viver. A enfermeira encontrou uma carteira atirada ao asfalto, com fotos recentes da mulher e de duas crianças pequenas, de cerca de 3 a 4 anos de idade, que pareciam ser filhas da paciente; ao lado das fotos, estava um bilhete, com uma assinatura compatível com a da identidade da acidentada, que assim dizia: “Se você tem dúvidas se deve tentar me ressuscitar se o meu coração parar, reafirmo: não quero ser ressuscitada.”
Hígia entrou em pânico. Já não sabia o que fazer. O bilhete, a tatuagem, a ausência de marcas de freios na pista em curva suave, em que o capotamento não deveria ter ocorrido, e a projeção do corpo indicando a ausência de cinto de segurança pareciam elementos indiciários a comprovar, ainda que sumariamente, que realmente a conduta da mulher havia sido pensada, refletida, e que efetivamente não queria ser salva.
Em instantes, enquanto já se preparava para administrar o choque, a médica se recordou das aulas na disciplina de noções jurídicas que havia tido e, entre elas, a chamada corrente libertária, sustentando, de acordo com o professor, o direito à posse de si mesmo, ou seja, que o Estado deve garantir, minimamente: (a) a ausência de paternalismo, isto é, que não pode irrogar para si a tomada de decisões afetas à individualidade do ser humano; e (b) a ausência de atos de conteúdo moral, significando que os atos estatais não devem atuar em terreno moral e, por mais incompreensível que seja a decisão do ser humano, deve ser respeitada3.
“Tudo isso é importante, mas a vida é um bem maior a ser protegido” – foi o que pensou enquanto aplicava o primeiro choque. Nada. Nenhuma resposta. O coração continuava parado. Enquanto se preparava para dar o segundo choque, recordou-se, igualmente, da corrente positivista, sustentando a importância da obediência ao texto normativo, considerando que a sociedade define o que é importante para ela própria e que o legislador racional havia de materializá-lo em um documento normativo genérico e abstrato que estabelecesse, antecipadamente, padrões de condutas capazes de gerar estabilidade: ou seja, todos deveriam saber o que esperar uns dos outros, porque existem leis regulando comportamentos4.
Deveria, então, observar o contido na resolução n°. 1.955/2012 do CFM, porque era um texto normativo? Mais um choque. Mais um questionamento: bem, mas se fosse assim, o testamento vital não deveria ter sido objeto de lei formal votada no Parlamento? Não deveria a sociedade decidir a viabilidade da negativa de tratamento ao paciente que não quer recebê-lo? Poderia o CFM fazê-lo por si só? Além disso, a expressão “diretivas antecipadas de vontade”, prevista no artigo 2° do ato normativo, que deveria ser observada pelo médico se apresentava um tanto vaga, algo que dependia da interpretação moral a ser realizada no momento do atendimento. A vagueza parecia indicar a necessidade do preenchimento moral da cláusula jurídica, o que poderia lhe dar base para entender que, a despeito das aparentes provas de que não queria ser salva, tais não passavam de indícios não concludentes e que não poderiam sequer ser considerados quando em face ao direito à vida, de estatura muito mais ampla5.
Essas discussões outrora travadas em sala de aula nada importavam naquele momento, a não ser salvar a paciente. Mais um choque e agora um sinal. Parecia estar retornando o coração. Hígia prendeu a respiração, mas o coração parecia não estar disposto a voltar. Mais uma parada.
Percebendo algo de desesperança na atuação da médica, a enfermeira quis animá-la e fortalecê-la, dizendo:
– Vamos Doutora, os filhos dessa mulher contam com a senhora. A senhora é vocacionada, tem coragem, é virtuosa e tem caráter. Não deixe essa mulher morrer! O que será dos filhos dela? Viverão à margem da sociedade, sem amparo; irão para as drogas sem mãe. Ajude eles!6
Imbuída desse pensamento, renovou as forças e, já tendo tomado uma decisão quanto ao dilema pelo qual passara, estava resolvida a fazer aquele coração voltar a bater, de qualquer jeito.
Ela, então, administrou mais algumas medicações e novamente aplicou choques, esperando por uma resposta, talvez até divina, naquele momento. Se existia uma lei eterna e imutável a ser obedecida, era a de que a vida deveria ser respeitada e que os atos de bondade devem gerar respostas positivas. Deus haveria de prover a renovação da vida àquela mulher; se não por ela, ao menos pelos filhos7.
E, por outro lado, ela era virtuosa em sua profissão. Dedicara-se com afinco para não perder qualquer paciente que por ela passou. As virtudes que cultivava desde o berço a impediam de pensar ou agir de outra maneira senão a de tentar, com todas as forças, salvar aquela mulher e era isso o que faria, sem medir esforços.
Entre os pensamentos e a ação, percebeu um leve sinal de retorno do batimento cardíaco. Mais medicamentos e o coração pareceu responder. A equipe inteira não acreditava e, para não perder aquela ponta de esperança, agiram rapidamente, imobilizando a mulher, administrando mais medicamentos e chamando auxílio imediato por helicóptero. O trabalho estava feito, a equipe médica e a vida haviam sido vitoriosas.
A paciente foi estabilizada, levada à ambulância e em seguida ao hospital mais próximo, onde se recuperou totalmente, o que saberia depois a médica, em função do recebimento de uma citação em uma ação indenizatória proposta pela mulher, em que pedia reparação por não ter o seu direito de escolha previsto na Resolução do CFM respeitado.
Fonte: Migalhas
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