Por que devemos respeitar as regras? A questão é examinada na obra clássica do Professor Frederick Schauer, em sua obra “Playing By the Rules”.  Segundo o Autor, “as regras definem o que está’ aberto para a consideração daqueles que decidem, afastando do horizonte destes os fatores que foram suprimidos. Assim, as regras retiram parte do poder daqueles que decidem, vez que os fatores relevantes para a tomada de decisão já foram escolhidos”1. Em matéria tributária, o país concebeu um sistema tributário com regras de competência fixadas na Constituição e regras que estabelecem as hipóteses de incidência na legislação infraconstitucional, tudo para assegurar que a tributação não se desviaria da vontade popular expressada pelo parlamento.

 

O Professor utiliza, em sua obra, um exemplo didático. Por que a legislação de trânsito utiliza regras como o “limite de velocidade é 80km/h” e não prescrição normativa como “não é seguro dirigir acima de 80km/h”? A primeira prescrição não deixa margem para o intérprete, enquanto a segunda contempla variados níveis de compreensão2.

 

Em sede de Direito Tributário, as prescrições normativas são concebidas para eliminar ao máximo a intervenção do intérprete, justamente porque a margem de deliberação lida com valores constitucionais extremamente caros como liberdade e propriedade.

 

É comum identificarmos casos em que as interpretações são feitas de forma além do que está dito na lei. Quando isso acontece, diversos efeitos perversos são identificados, como a ausência de segurança jurídica e os incentivos (ou desincentivos) a determinados comportamentos pelas partes envolvidas.

 

No caso em questão, o debate versará sobre o entendimento de alguns Municípios sobre a possibilidade de cobrar o imposto ITBI quando determinado bem imóvel é integralizado em capital social de pessoa jurídica que permanece, por determinado período, sem receita operacional. Em decorrência desse posicionamento, alguns Tribunais já se manifestaram sobre a temática, conforme será a seguir abordado.

 

Vejamos o que prevê a Constituição sobre a temática. O art. 156, § 2º, inciso I, da CF dispõe sobre a imunidade do ITBI em incorporação de bens ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital social. O texto constitucional adota um estilo detalhista e minudente justamente para excluir qualquer margem de apreciação por parte do intérprete. No entanto, já se pode observar divergência doutrinária. Por exemplo, há quem sustente, como o Professor Kiyoshi Harada, que “a incorporação de bens ao patrimônio da pessoa jurídica em realização de capital, que está na primeira parte do inciso I do §2º, do art. 156 da CF/88, não se confunde com as figuras jurídicas societárias da incorporação, fusão, cisão e extinção de pessoas jurídicas referidas na segunda parte do referido inciso I”3. Dito de outra forma, a exceção prevista na parte final do inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF/88 nada tem a ver com a imunidade referida na primeira parte do inciso. Dessa forma, reitera-se: a imunidade prevista na primeira parte do dispositivo é incondicional, desde que referente a bens para integralização de capital social4. Esta posição não deve ser desprezada, haja vista que no julgamento do Tema 796 pelo Supremo Tribunal Federal, o Relator, Min. Alexandre de Moraes, adotou o mesmo argumento. Disse o Ministro: “É dizer, a incorporação de bens ao patrimônio da pessoa jurídica em realização de capital, que está na primeira parte do inciso I do § 2º, do art. 156 da CF/88, não se confunde com as figuras jurídicas societárias da incorporação, fusão, cisão e extinção de pessoas jurídicas referidas na segunda parte do referido inciso I”5.

 

Porém, o objeto da presente reflexão reside em saber se uma empresa sem atividade está amparada pela imunidade. Na hipótese de não se admitir que a ausência de atividade autorize a fruição da imunidade, dever-se-ia passar ao questionamento seguinte: na ausência de norma expressa sobre a inatividade, estaria o intérprete autorizado a tributar de forma analógica ou se valendo de presunção? A resposta é evidentemente negativa, pois como já se disse, o exercício da tributação pressupõe a outorga de poder pelo parlamento. Onde não há concessão de competência, não há falar em tributação. Além disso, o Código Tributário Nacional é expresso ao vedar a tributação pelo uso da analogia (art. 108, § 1°). De qualquer modo, admitindo que se pudesse superar todos estes obstáculos, o passo seguinte do intérprete seria criar uma regra não escrita na Constituição, nem prescrita pelo Código Tributário Nacional. Neste momento, ao “criar a norma”, o intérprete poderia escolher dois sentidos: (1) a ausência de atividade pressupõe o gozo da imunidade e (2) a ausência de atividade pressupõe o exercício de atividade imobiliária preponderante. Diante dos dois sentidos possíveis, qual seria o mais correto dentro das normas que orientam o sistema constitucional tributário?

 

O art. 37 do CTN, por sua vez, explica a exceção prevista no dispositivo Constitucional acima mencionado. Quando a empresa for pré-existente à integralização do imóvel, aplica-se ao caso o prazo do §1º do art. 37. Quando iniciar suas atividades após a integralização (ou menos de dois anos antes dela), aplica-se ao caso o prazo do §2° do art. 37.

 

Como estamos investigando a hipótese de uma sociedade sem atividade no período, aplica-se, justamente, no art. 37, §2º, do CTN.

 

Vejamos um caso concreto. Determinado cidadão possui um terreno de sua propriedade, registrado em seu nome. Ou seja, quando da sua aquisição, recolheu normalmente o imposto ITBI. Com o intuito de, em momento oportuno, participar de permuta financeira com o referido terreno, o cidadão constitui uma SPE (Sociedade de Propósito Específico). Consequentemente, o imóvel é integralizado no contrato social. Como o cidadão ainda não possui previsão de participar na possível permuta financeira, a pessoa jurídica permanece sem receita operacional. Escoado o prazo previsto em lei, não se verificando qualquer receita na pessoa jurídica, é possível a cobrança de ITBI por parte do fisco? Essa é a pergunta a ser respondida.

 

Conforme pode-se verificar nos referidos dispositivos, inexiste previsão ou mesmo menção à efetiva tributação do ITBI nos casos em que a pessoa jurídica tenha permanecido sem atividade operacional (inativa). Dessa forma, estamos diante do que, há muito, já é debatido perla hermenêutica jurídica: a imposição da “vontade do intérprete”. Neste caso, está-se colocando em segundo plano os limites semânticos do texto, até mesmo da Constituição6. Dito de outro modo, o fisco opta por fazer uma “interpretação extensiva” do dispositivo legal, limitando a imunidade constitucional onde não há regra expressa. Em outras palavras, o fisco municipal tributa sem previsão legal.

 

O resultado disso: (um)a subjetividade “criadora” de sentidos. Com isso, havendo adesão por essa interpretação que extrapola os limites semânticos da lei, corre-se o risco de criar uma jurisprudência possivelmente arbitrária, que impõe ao cidadão tributação sem autorização legislativa, o que contraria a legalidade tributária (art. 150, I, da Constituição).

 

A jurisprudência dos Tribunais já vem se posicionando quanto à temática, ainda sem uniformidade. É o caso, por exemplo, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: a 16ª Câmara Cível do TJ/RJ possui posicionamento favorável à imunidade7, enquanto a 6ª Câmara Cível se manifesta em sentido oposto8. A 14ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, por sua vez, possui entendimento que mantém a sua imunidade9.

 

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no mesmo sentido, em decisão recente sobre o tema, posicionou-se favorável à imunidade10. O que nos chama a atenção no caso julgado pela Corte gaúcha foi a aplicação do art. 932 do CPC ao caso: Em Apelação interposta pela empresa contra sentença de improcedência em Ação Anulatória proposta. Em um primeiro momento, o TJ/RS proveu o recurso interposto pela empresa por maioria (2×1), declarando a nulidade do Auto de Lançamento. Como a apreciação jurisdicional não foi unânime, aplicou-se ao caso o art. 942 do CPC. Em decorrência disso, mais dois desembargadores participaram do julgamento. A conclusão dos julgadores foi, por maioria dos votos, dar provimento ao Recurso de Apelação e manter o entendimento de imunidade de ITBI (3×2).

 

Diante dessas circunstâncias, pode-se verificar que essa interpretação extensiva praticada por alguns Municípios vem criando jurisprudência sem trazer segurança jurídica ao tema. Essas situações, por certo, geram externalidades, especialmente negativas. Com a adesão dessa temática por parte de alguns julgadores, o fisco acaba sentindo-se incentivado a insistir com tal interpretação legislativa, mesmo não sendo recepcionada pela maioria dos Tribunais e, muito menos, pela legislação vigente.

 

Assim, “se, em um determinado tribunal, uma das câmaras julgadoras assumir um posicionamento sobre o tema X e outra posicionar-se em sentido contrário a respeito do mesmo tema, todos os interessados em causas semelhantes ver-se-ão incentivados a ir a juízo – tanto os que esperam um julgamento procedente quanto os que esperam um julgamento improcedente. A circunstância de o caso vir a ser julgado por uma ou outra câmara torna-se uma questão de sorte. Em havendo recurso, o sucesso na causa dependerá do sorteio (sorte!) da câmara que será designada para julgá-la”11. Além do aspecto jurídico, os incentivos atingem a tomada de decisão por parte dos agentes, especialmente do fisco. Esse, visualizando a insegurança jurídica criada pelos Tribunais, poderá pautar seu comportamento de forma a continuar insistindo nessa interpretação equivocada da lei12, notadamente porque não há custo para o tomador de decisão. Enquanto o contribuinte corre o risco de sucumbir e arcar com o ônus processual, o(a) secretário(a) da fazenda que orientar sua secretaria a insistir no erro não terá nenhuma repercussão se criar um passivo para o respectivo município. Esse exemplo explica muito a presença do Estado em mais da metade dos litígios que tramitam no país, segundo dados do CNJ.

 

Portanto, seja por razões de eficiência econômica, seja por estrito cumprimento da Constituição, não há como defender uma posição que não encontra amparo legal e ainda por cima estimula a litigiosidade que no Brasil alcance níveis sem comparação no mundo13.

 

Fonte: Migalhas

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