Recentemente, um Ministro de Estado, da pasta mais importante em termos de desenvolvimento econômico e infraestrutura, se manifestou publicamente sobre o “potencial” imobiliário inexplorado no litoral brasileiro, que, na sua visão, poderia render bilhões, ou mesmo trilhões de reais ao País.  Suas palavras foram, literalmente, as seguintes:

 

“Tem trilhões de ativos mal-usados. Por exemplo, tem um grupo de fora que quer comprar uma praia numa região importante do Brasil. Quer pagar US$ 1 bilhão. Aí você chega lá e pergunta: ‘Vem cá, vamos fazer o leilão dessa praia?’. Não, não pode. ‘Por quê?’. ‘Isso é da Marinha’ (…)”Você fala assim: ‘E quanto é que a gente recebe por isso aí?’. ‘A gente pinta lá o quartel deles uma vez por ano, lá, a gente pinta’. Pô, como é que pode um negócio desse? É mal gerido o troço, não é de ninguém. Quando é do governo, não é de ninguém”

 

Como o leitor já pode perceber, a fala tem afirmações equivocadas, do ponto de vista jurídico, e que mostram um preocupante desconhecimento de como as coisas são no mundo real.  A ideia deste texto, porém, não é de criticar a fala do Ministro – embora a conclusão seja inevitavelmente neste sentido – mas esclarecer algumas ideias equivocadas que, recorrentemente, são encontradas no imaginário das pessoas comuns, e até mesmo, às vezes, em profissionais do Direito.

 

Destaco dois temas sobre os quais, mais frequentemente, se ouvem ideias distorcidas:

 

– o conceito de “terreno de marinha” e

 

– o regime jurídico das praias, no que tange à sua propriedade e ao acesso dos cidadãos.

 

Portanto, o presente artigo tentará, tanto quanto possível, não utilizar uma linguagem apenas jurídica, mas fazer a explicação em linguagem comum, com o sincero intuito de esclarecer. Para os colegas do Direito, poderá parecer um texto muito básico ou simples, mas isso é proposital.

 

A primeira – e, poderia dizer, clássica – confusão de conceitos na fala do Ministro (que reflete o pensamento de boa parte do público comum) é a confusão entre “terrenos de marinha” e “terrenos da Marinha”.

 

Para entender o que são terrenos de marinha, é preciso retroceder mais um pouco, até um antigo e já completamente defasado instituto do Direito Civil, que é a enfiteuse. A enfiteuse, de origem medieval1, é uma relação jurídica na qual a propriedade se divide em duas, de modo que o “proprietário” tem apenas o chamado domínio direto:  não pode usar, gozar ou dispor do bem.  Do outro lado da relação, tem-se o enfiteuta ou foreiro, que tem o domínio útil, ou seja, pode usar, gozar e dispor do bem.  Pode alugá-lo a terceiros, pode até vender sua propriedade útil, enfim, praticar todos os atos como se proprietário único e pleno fosse.

 

Na prática, portanto, a única diferença, para o enfiteuta, está na obrigação de pagar anualmente o foro ao titular do domínio direto e, quando é transferido o domínio útil, deve ser pago também o laudêmio. Numa imagem simples, imagine-se que, por abstração, a lei confere dois direitos sobre uma mesma terra. Um sujeito (“proprietário” ou “titular do domínio direto”) é o dono da terra, mas não pode usá-la. Ele recebe uma quantia periódica, a cada ano, e outra, se houver venda do chamado domínio útil. O outro sujeito (“enfiteuta” ou “titular do domínio útil”) tem direito a explorar a terra. Pode vendê-la, pode construir, pode alugar, pode, enfim, dispor, usar e fruir. Na enfiteuse, portanto, há direitos de mais de uma espécie sobre uma terra só.

 

A enfiteuse, embora presente no Código Civil de 1916, já não era usual, e veio a ser extinta no novo Código Civil, de 2002, embora mantidas as já existentes até aquela data2.  A Constituição de 1988, no seu Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, já apontava, de certa forma, para a extinção do instituto3.

 

A enfiteuse também tem aplicação no Direito Público, embora regida por legislação específica, aplicada a definição do instituto e os conceitos gerais contidos no Código Civil. Assim, bens dos entes públicos (União, Estados-membros e municípios) podem ter sido, no passado, objeto de instituição de enfiteuse, que perdura até os dias de hoje.

 

Os terrenos de marinha são um caso específico (embora, de longe, o mais comum) de enfiteuse de terrenos da União Federal. A definição dos terrenos de marinha remonta a atos da época do Império e, atualmente, é encontrada no Decreto-Lei 9.760, de 19464. O Código Civil, prudentemente, esclarece que esta espécie de enfiteuse será regulada pela legislação específica5. De modo extremamente simplificado, são os terrenos compreendidos na faixa de terra até 33 metros do litoral, contados a partir de um ponto médio de marés, definido no referido ato normativo. O fundamento mais remoto dessa disposição está na defesa nacional.

 

Então, o prezado leitor que mora num apartamento na Praia de Botafogo, no Rio de Janeiro, pode estar descobrindo, na leitura deste artigo, que o imóvel, que há três gerações é de sua família, na verdade não lhe pertence. Ele é apenas o enfiteuta ou foreiro, pois, tecnicamente, a proprietária (titular do domínio direto) é a União Federal.

 

A gestão dos terrenos de marinha é feita pela SPU – Secretaria de Patrimônio da União. A gloriosa Marinha do Brasil (MB) não participa dessa administração, tampouco da arrecadação do foro e do laudêmio, de modo que é totalmente injusta a atribuição, que se costuma fazer no imaginário popular, de que estes valores seriam uma “taxa da Marinha” ou o equivocado uso da expressão “terrenos da Marinha”.  É claro que pode existir um sentido para a expressão “terrenos da Marinha”, designando os imóveis em que se situam organizações militares, como base navais ou aeronavais, que a rigor pertencem à União Federal e estão afetadas ao uso dessa Força Armada, mas que em nada se confundem com o conceito de “terreno de marinha”.

 

Por fim, embora já esteja claro, não faz nenhum sentido dizer “isso aí é da Marinha” quando se fala em terrenos de marinha, ou relacionar sua exploração econômica à “pintura do quartel”. Trata-se de desconhecimento justificável ao cidadão não versado em Direito, mas muito preocupante em alta autoridade que participa da gestão do imenso patrimônio público do País.

 

Passando à segunda lenda urbana que queremos explicar, as praias são, antes de tudo, um conceito geográfico, e que não se confunde com litoral, embora dele façam parte.  Logo, nem todo terreno de marinha será uma praia, e tampouco toda a extensão de todas as praias será sempre um terreno de marinha, como a atabalhoada fala do Ministro parece ter suposto, em clara confusão conceitual.

 

De modo bastante simples, a linha litorânea pode ser composta por diferentes formações geológicas, como rochedos, falésias, dunas, praias, etc. Intervenções humanas, no passado, também levaram à substituição, total ou parcial, de praias por construções como portos, fortes e marinas. Assim, no litoral brasileiro, embora seja predominante a formação praia, não existe uma linha contínua de praias formando o litoral.

 

Esta diferenciação é importante, pois há um regime jurídico específico para as praias, não necessariamente aplicável a todas as formações litorâneas, naturais ou artificiais. Este regime é delineado, inicialmente, no art. 20, IV da Constituição Federal:

 

Art. 20. São bens da União:

 

IV – as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as praias marítimas; as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as que contenham a sede de Municípios, exceto aquelas áreas afetadas ao serviço público e a unidade ambiental federal, e as referidas no art. 26, II;  (não destacado no original)

 

Portanto, quanto à propriedade, toda praia é bem público da União, o que já afasta, de plano, qualquer ideia de que possa existir uma “praia particular”, seja num hotel ou condomínio, ou “praia exclusiva”.

 

Com relação ao uso das praias, porém, é válido, inicialmente, recordar a classificação dos bens públicos em: a) de uso comum do povo; b) de uso especial e c) dominicais.  Muito resumidamente, os primeiros são de uso geral, como praças, ruas e parques, os segundos são afetados a um uso específico (e, portanto, podem ter seu acesso restrito), como uma repartição pública, escola ou hospital. Por último, os bens dominiais podem ser entendidos como uma categoria residual6, ou seja, fazem parte do patrimônio de um ente público, mas não têm nenhum uso determinado.

 

Observando o uso das praias sob tal classificação, é possível perceber, de início, que é possível a afetação de praias ao uso especial, sempre com uma finalidade pública, para defesa, pesquisas científicas ou preservação ambiental.

 

A vocação natural das praias, porém, é serem bens de uso comum do povo.  Frequentemente se afirma que são a opção mais barata e mais democrático de lazer, pois todos compartilham o mesmo espaço, independentemente de sua condição pessoal.

 

A legislação brasileira reflete este entendimento, destacando-se a lei 7.661/1988. Interessante observar, inicialmente, que essa Lei oferece uma definição legal do que seja a praia, conforme o § 3º do seu art. 107. O caput deste mesmo dispositivo é categórico quanto à caracterização das praias como bens de uso comum do povo, como regra geral, e, excepcionalmente, com bens de uso especial:

 

Art. 10. As praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse de segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica.

 

Embora a lei não precisasse dizê-lo, fica claro que não se cogita de praias como bens dominiais, porque não faria sentido impedir o uso pelo povo e, ao mesmo tempo, deixar de lhe dar qualquer outra finalidade.

 

Assim, também sob o enfoque do uso, seria ilegítima a atribuição ao particular, para qualquer finalidade, inclusive de exploração econômica, de utilização privada da praia, total ou parcialmente. A exceção, obviamente, estaria na instalação de bens necessários à prestação de serviços públicos por empresas privadas.

 

Portanto, por mais que possam, em alguns momentos, estar na moda os “beach clubs”, com a cobrança de ingresso para áreas reservadas das praias, ou a instalação de “cercadinho vip” por estabelecimentos comerciais, tais iniciativas são, pura e simplesmente, ilegais.

 

Por fim, resta esclarecer a questão do acesso às praias.  Embora, juridicamente, seja uma questão simples, na prática surgem dificuldades decorrentes das diferentes configurações do litoral.

 

Diz-se que a questão jurídica é simples porque a Lei não poderia ser mais categórica: “assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido”.  Assim, qualquer cidadão pode caminhar pela linha litorânea, nos trechos em que é formada continuamente por praias, de um extremo a outro, sem que possa ser impedido por hotéis, condomínios ou clubes. Também é possível a qualquer pessoa acessar uma praia a partir do mar, nadando, remando ou velejando.  Em ambos os casos, obviamente, estão excetuadas as praias que ficam dentro de instalações militares ou unidades de conservação ambiental.

 

Ora, se o acesso é tão amplo e garantido em lei, o que explicaria a existência – tida por natural, para muitas pessoas – de anúncios de condomínios ou hotéis com “praia privativa”?

 

Até a lei 7.661/88, a explicação – já não muito convincente – para este fato estava na configuração geográfica de algumas praias. Em algumas regiões do Brasil, há muitas praias de pequena extensão que, em suas extremidades, estão limitadas por longos trechos de rochedos ou mangues, tornando impossível o acesso através de “outras” praias em linha contínua, ou mesmo pelo mar.  Assim, formam-se naturalmente praias “isoladas” em que alguém poderia construir um empreendimento em todo o terreno “após” à praia (especialmente naquelas situadas em enseadas em forma de ferradura), de modo a impedir o acesso, por terra, a uma praia específica. Assim, embora o acesso existisse na teoria, acabava sendo criada, na prática, uma praia “privativa”, já que o cidadão comum não tinha meios de acessá-la através de vias públicas terrestres.

 

A regulamentação da Lei 7.661/88, editada somente em 2004, esteve atenta a esse problema, estabelecendo disposições para que fossem abertos acessos a todas as praias e determinando prazos8.  A efetiva implantação destas medidas, porém, enfrenta interesses e encontra percalços para a solução de situações já consolidadas anteriormente, contribuindo, lamentavelmente, para a disseminação da falsa ideia de que é possível ter “praias privativas”, ou mesmo de “acesso privativo” em qualquer empreendimento.

 

Feitas, então, estas breves explicações, deixo ao juízo do leitor concordar, ou não, com a afirmação de que “é mal gerido esse troço aí”.

 

Fonte: Migalhas

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