Com a evolução das relações sociais, novos institutos jurídicos ganharam força e relevância. As constantes modificações no conceito de “família” levaram a doutrina, encabeçada por Maria Berenice DIAS, a deixar de falar em um “direito de família”, passando a referir-se a “direito das famílias” [1].

 

Rodrigo da Cunha PEREIRA (2022) explica que o conceito de família definido por Clóvis Beviláqua, no começo do século 20, por exemplo, já não se coaduna à realidade social. Segundo ele, “o Direito de Família mudou substancialmente. De lá para cá, novas estruturas parentais e conjugais se estabeleceram e o Direito de Família não está mais aprisionado ao casamento como esteve até o final do século 20” (2022, p. 1).

 

Hodiernamente, tendo em vista o dinamismo cultural e a preponderância do estabelecimento de relações informais, cujas razões podem ser de ordem econômica, social, legal, ideológica ou religiosa [2], ganharam importância a união estável e o namoro qualificado, institutos balizados, determinantemente, em uma análise fática, e não jurídica.

 

Porém, uma vez que a linha divisória entre a união estável e o namoro qualificado é muito tênue, diversos casais tendem a formalizar as suas relações, seja em escrituras públicas, visando conceder confiabilidade à união estável e distingui-la de um simples namoro, ou em um contrato particular de namoro, para impedir um futuro reconhecimento de uma união estável, principalmente porque os institutos possuem consequências jurídicas diametralmente opostas em vários aspectos.

 

Ocorre que, uma vez que se tratam de relações informais, a instrumentalização do relacionamento não impede a destituição judicial do documento, ainda que público (como é o caso da escritura pública), vez que a validade da documentação depende de sua conformação material com a realidade.

 

A formalização das relações informais, por mais contraditório que pareça, é legítima, mas é dotada de presunção relativa de veracidade, dependendo de conformidade fática.

 

Assim, Rolf MADALENO explica que “Pela via do contrato de convivência, os integrantes de uma união estável promovem a autorregulamentação do seu relacionamento, no plano econômico e existencial, e a contratação escrita do relacionamento de união estável não representa a validade indiscutível da convivência estável, porque o documento escrito pelos conviventes está condicionado à correspondência fática da entidade familiar e dos pressupostos de reconhecimento (CC, art. 1.723), ausentes os impedimentos previstos para o casamento (CC, art. 1.521), porque não pode constituir uma união estável quem não pode casar, com as ressalvas do § 1º do artigo 1.723 do Código Civil” (2022, p. 514, destacou-se).

 

Ainda, Maria Berenice DIAS assenta que “O contrato de convivência não cria a união estável, pois sua constituição decorre do atendimento dos requisitos legais (CC 1.723), mas é um forte indício da sua existência. Já a manifestação unilateral de um dos conviventes não tem o condão de provar nada: nem o começo nem o fim da união estável” (2016, p. 429, destacou-se).

 

Neste aspecto, a União Estável é instituto previsto nos artigos 1.723 a 1.727 do Código Civil (CC), possuindo, inclusive, assento constitucional (artigo 226, §3º, da Carta Magna).

 

Para a configuração de união estável, o art. 1.723 do CC estabelece a necessidade do preenchimento de quatro requisitos concomitantes, exigindo que a relação seja: (1) pública; (2) contínua; (3) duradoura; e, (4) que tenha a intenção de constituir família.

 

Tratam-se de elementos objetivos (convivência pública, contínua e duradoura) e subjetivo (a vontade de constituir família), que devem estar presentes simultaneamente, razão pela qual a inexistência de qualquer destes é o suficiente para derruir a cogitada união.

 

Neste sentido, Flávio Tartuce leciona:

 

“Os requisitos, nesse contexto, são que a união seja pública (no sentido de notoriedade, não podendo ser oculta, clandestina), contínua (sem que haja interrupções, sem o famoso “dar um tempo” que é tão comum no namoro) e duradoura, além do objetivo de os companheiros ou conviventes de estabelecerem uma verdadeira família (animus familiae).

Para a configuração dessa intenção de família, entram em cena o tratamento dos companheiros (tractatus), bem como o reconhecimento social de seu estado (reputatio). Nota-se, assim, a utilização dos clássicos critérios para a configuração da posse de estado de casados também para a união estável (2022, p. 409, destacou-se)” [3].

 

Trata-se, assim, de uma situação fática, que deve ser verificada de forma concreta, razão pela qual a constituição de uma escritura pública pelos conviventes pode ser desconstituída em juízo se ficar comprovado que, em verdade, não está presente algum dos requisitos previstos no artigo 1.723 do Código Civil [4].

 

Também a jurisprudência entende que a escritura pública não tem presunção absoluta de veracidade, carecendo de demonstração real dos aludidos requisitos, conforme decisão exemplificativa:

 

“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. REQUISITOS. ESCRITURA PÚBLICA. RELATIVIDADE DA PRESUNÇÃO JURIS TANTUM. RELAÇÃO DE FATO. ÔNUS DA PROVA. Nos termos da legislação civil vigente, para o reconhecimento de união estável, incumbirá a prova, a quem propuser o seu reconhecimento, de que a relação havida entre o casal foi pública, contínua, duradoura e destinada à constituição de um núcleo familiar. Tratando-se a união estável de uma situação de fato, a existência de escritura pública não afasta a necessidade de comprovação da presença da affectio maritalis por outros meios de prova, ônus que incumbe a quem pretende o seu reconhecimento. Partindo dessas premissas, no caso concreto, é mister a retificação do entendimento adotado no grau de origem, ante a inexistência dos requisitos do art. art. 1.723 do CCB. Sentença reformada. APELO PROVIDO” [5]. (Destacou-se)

 

Claro que a lavratura de um documento público, firmado de comum acordo entre os conviventes é útil, principalmente para comprovar a existência do elemento subjetivo de constituir família (animus familiae, ou affectio maritalis), porém, deve-se ter em mente que é plenamente cabível a sua destituição judicial.

 

É inegável a dificuldade em realizar-se a prova em juízo do elemento subjetivo, tanto para finalidades sancionatórias (como no direito penal ou no direito administrativo sancionador) quanto para objetivos civis (como é o caso da união estável), razão pela qual a existência da escritura pública assinada por ambos os conviventes, em acordo, ou do instrumento particular com a presença de testemunhas, é valioso elemento probatório para ser levado a juízo, caso necessário.

 

Porém, deve-se ter em mente que consistirá em mais um elemento probatório, jamais em prova absoluta ou rainha de provas.

 

A importância da constituição comprobatória do elemento subjetivo para o reconhecimento da união estável é o que a separará do chamado namoro qualificado, no qual não existe o affectio maritalis, tendo tratamento jurídico distinto por decorrência lógica.

 

Sob este cariz, Pereira leciona:

 

“Com a evolução dos costumes e a maior liberdade sexual, a linha divisória entre namoro e união estável tornou-se muito tênue. Com isso, grande parte dos processos levados aos tribunais brasileiros que envolvem união estável, o cerne da discussão está na dificuldade de se diferenciar namoro de união estável. Namoro é o relacionamento entre duas pessoas sem caracterizar uma entidade familiar. Pode ser a preparação para constituição de uma família futura, enquanto na união estável, a família já existe. Assim, o que distingue esses dois institutos é o animus familiae, reconhecido pelas partes e pela sociedade (trato e fama). Existem namoros longos que nunca se transformaram em entidade familiar e relacionamentos curtos que logo se caracterizaram como união estável. O mesmo se diga com relação à presença de filhos, que pode se dar tanto no namoro quanto na união estável” (2022, p. 185, destacou-se).

 

E Zeno VELOSO complementa que “Os namorados, por mais profundo que seja o envolvimento deles, não desejam e não querem — ou ainda não querem — constituir uma família, estabelecer uma entidade familiar, conviver numa comunhão de vida, no nível de que os antigos chamavam de affectio maritalis” (2018, p. 314).

 

Então, os elementos objetivos (relação pública, contínua e duradora) são comuns entre união estável e namoro, sendo a intenção de constituir família o que as diferencia.

 

É o entendimento do STJ exposto pelo ministro Marco Aurélio BELLIZZE de que “o propósito de constituir família, alçado pela lei de regência como requisito essencial à constituição da união estável – a distinguir, inclusive, esta entidade familiar do denominado “namoro qualificado” –, não consubstancia mera proclamação, para o futuro, da intenção de constituir uma família. É mais abrangente. Esta deve se afigurar presente durante toda a convivência, a partir do efetivo compartilhamento de vida, com irrestrito apoio moral e material entre os companheiros. É dizer: a família deve, de fato, restar constituída” [6].

 

Por esta razão, o direito confere consequências jurídicas distintas aos casos: na união estável, por haver a efetiva intenção de constituir família, incidem as obrigações matrimoniais, como o dever de fidelidade e mútua assistência, além das consequências hereditárias e patrimoniais; enquanto no namoro, pela ausência de animus familiae, não há qualquer consequência de semelhante natureza.

 

Sobre os efeitos da união estável, Maria Berenice DIAS explica que “Ainda que a união estável não se confunda com o casamento, gera um quase casamento na identificação de seus efeitos, dispondo de regras patrimoniais praticamente idênticas” (2016, p. 424).

 

Por outro lado, quanto ao namoro, PEREIRA assenta que “O namoro, por si só, não tem consequências jurídicas. Não acarreta partilha de bens ou qualquer aplicação de regime de bens, fixação de alimentos ou direito sucessório” (2022, p. 185, destacou-se).

 

E Veloso complementa que “Ao contrário da união estável, tratando-se de namoro – mesmo o tal namoro qualificado — não há direitos e deveres jurídicos, mormente de ordem patrimonial entre os namorados. Não há, portanto, que falar-se em regime de bens, alimentos, pensão, partilhas, direitos sucessórios, por exemplo” (2018, p. 314, destacou-se).

 

Assim, a feitura de um instrumento formal para declarar a existência de uma relação informal (namoro ou união estável) é lícita, mas não traz presunção absoluta, pois depende da demonstração de que os elementos elencados em lei estão concretamente presentes, razão pela qual é possível a sua contestação pela via judicial.

 

Os elementos objetivos, como a relação pública, contínua e duradora, são comuns tanto ao namoro qualificado, quanto à união estável, e podem ser comprovados através de provas testemunhais, por exemplo.

 

Porém, a existência do contrato particular, ou da escritura pública, assinado por ambas as partes, deve ser incentivada, pois ganha relevância probatória uma vez que é forte indício da existência do relacionamento nos moldes pactuados, principalmente para comprovar a existência (ou não) do elemento subjetivo de constituir família, separando-se o namoro da união estável, visando conceder maior segurança jurídica aos conviventes, com as observações quanto à sua presunção juris tantum de veracidade.

 

Fonte: Conjur

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