O propósito do bem de família é o de proteger o grupo familiar contra a perda de sua moradia por dívidas contraídas pelo proprietário do imóvel

 

  1. Origem

 

O conceito de família é uma obra em progresso. Desde o início dos tempos, a concepção do que seja esse agrupamento de pessoas e sua extensão vem sofrendo transformações significativas, que tomaram maior velocidade a partir da 2ª metade do século XX.

 

Acompanhando as transmutações do entendimento do que seja a célula familiar, as suas denominações também foram evoluindo. Desde os tempos imemoriais, em que prevalecia a família patriarcal, na qual o pai detinha direitos absolutos sobre todos os que estavam sob sua autoridade – esposa, filhos, escravos -, evoluiu-se para o termo “função parental”, na época presente, que expurgou, assim, o conceito de “poder patriarcal” ou “poder familiar”, refletindo, consequentemente, o signo democrático que se tornou a marca desse agrupamento humano sui generis.

 

Independentemente de sua nomenclatura, a proteção da família sempre se manteve como prioridade dos seus membros, e essa proteção inclui a salvaguarda do patrimônio familiar, em especial a moradia.

 

Foi, assim, com fundamento na defesa e preservação da célula familiar que surgiu o instituto do bem de família. Sua origem remonta ao homestead norte-americano, que objetivou garantir ao trabalhador rural a proteção de suas terras, incluindo benfeitorias e móveis, contra penhoras por credores. Essa medida foi alicerçada no Homestead Exemption Act, de 1839, do Estado do Texas, que assegurou ao cidadão o direito de um tratamento fiscal favorável e garantias contra credores que buscassem penhora de seu imóvel. Esse modelo serviu de inspiração para a Constituição de 1845 do Estado do Texas, e todas as demais que se seguiram, que incluiu entre os direitos fundamentais do cidadão daquele Estado a garantia contra penhoras, desde que observadas algumas limitações estabelecidas, em especial quanto ao tamanho da propriedade e o tipo de dívida que venha a recair sobre o bem.

 

No caso do Brasil, o conceito do bem de família ingressou em nosso ordenamento jurídico através do Código Civil de 1916 que, em seu art. 70, estabeleceu ser permitido “aos chefes de família destinar um prédio para domicílio desta, com a cláusula de ficar isento de execução por dívidas, salvo as que provierem de impostos relativos ao mesmo prédio”. Esse conceito foi incorporado pela Constituição de 1988, mas apenas quando da promulgação da Lei n° 8.009/1990 que essa prerrogativa ganhou seu nome – bem de família.

 

  1. O propósito da instituição do bem de família no planejamento patrimonial

 

Como se observa de sua origem, o propósito do bem de família é o de proteger o grupo familiar contra a perda de sua moradia por dívidas contraídas pelo proprietário do imóvel. Exceto pelas dívidas referentes ao bem, tais como impostos, taxas e contribuições, crédito decorrente de financiamento para construção ou aquisição do imóvel e hipoteca, e por dívida derivada de fiança locatícia, dívida alimentar e aquisição do bem com produto de crime, o bem de família é impenhorável.

 

Considerando, assim, essa proteção conferida por lei ao imóvel em que reside o grupo familiar, a instituição do bem de família tornou-se uma poderosa ferramenta para o planejamento patrimonial.

 

Diferentemente do que se imagina, o planejamento patrimonial não está adstrito a pessoas mais abastadas, que detenha um acervo milionário de bens; a segurança do patrimônio é preocupação de todos que conseguem amealhar alguma posse que, em caso de perda, fará diferença relevante em sua vida. Nesse sentido, usualmente a moradia é o principal bem a ser protegido.

 

O planejamento patrimonial é, assim, o alinhamento de situações jurídicas com a organização dos bens detidos por uma pessoa, visando a, entre outras possibilidades, permitir uma administração mais eficiente a empresas, incluindo uma redução da carga tributária, conferir segurança à manutenção dos bens e, ainda, permitir um planejamento sucessório futuro de forma organizada, mais econômica e, principalmente, que possibilite uma transição desse patrimônio aos herdeiros de forma harmônica.

 

Nessa seara, o bem de família é um instrumento eficaz no que toca à proteção do imóvel da célula familiar. Importante, aqui, esclarecer que, consoante o que já abordamos anteriormente, o conceito de família caminhou bastante até chegar ao seu entendimento hodierno. Sobre esse assunto, a exposição de Rodrigo da Cunha Pereira em sua obra Direito das Famílias1 é preciosa, e vale ser transcrita:

 

“Com a Carta Magna, ela [a família] deixou sua forma singular e passou a ser plural, estabelecendo-se ali apenas um rol exemplificativo de constituições de família. E nem poderia ser diferente, já que a ideia e o conceito de família está em constante mutação, adaptando-se às evoluções e costumes. Portanto, novas estruturas parentais e conjugais estão em curso, e muitas delas já são realidades absorvidas pela ordem jurídica, como as famílias mosaicos, famílias geradas por inseminação artificial, famílias simultâneas, poliafetivas, famílias homoafetivas, filhos com dois pais ou duas mães, parcerias de paternidade, enfim, as suas diversas representações sociais atuais e que estão longe do tradicional conceito de família, que era limitada à ideia de um pai, uma mãe, filhos, casamento civil e religioso.”

 

A concepção trazida por Rodrigo da Cunha Pereira vai ao encontro do entendimento já pacificado do Superior Tribunal de Justiça de que a finalidade da lei 8.009/90 foi proteger a entidade familiar no seu conceito mais amplo2.

 

  1. O bem de família legal x voluntário

 

A lei 8009/90 veio conferir a proteção constitucional insculpida nos arts. 1º, III3, 6°4 e 2265 da Constituição Federal. Sendo a moradia o elemento considerado como “mínimo existencial”, essa condição é considerada fundamental para a preservação da dignidade da pessoa humana, que sob a perspectiva constitucional, deve acarretar a preservação de um patrimônio mínimo do devedor, visando a sua subsistência. Esse tema é, aliás, a premissa básica da Teoria do Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, desenvolvida pelo Ministro Luiz Edson Fachin: a garantia de um mínimo de patrimônio que permita ao cidadão o mínimo existencial a garantir-lhe uma vida digna.

 

A lei 8009/90 institui, de forma automática e sem necessidade de manifestação de vontade por parte do titular do patrimônio protegido, nem tampouco de qualquer registro perante cartórios imobiliários. De acordo com esse dispositivo legal, é considerado bem de família o imóvel residencial próprio no qual resida a família, estendendo-se esse benefício aos móveis e utensílios que guarneçam a moradia, desde que integralmente pagos. Os móveis que guarneçam um lar cujo imóvel seja alugado, e não próprio, também estão albergados pelo conceito de bem de família.

 

O normativo acima referenciado traz exceções à proteção que confere ao bem de família, elencadas no seu art. 3° e anteriormente já mencionado neste artigo.

 

A instituição do bem de família de forma voluntária, por sua vez, está regulado pelo Código Civil, a partir do art. 1.711, e se dá através de escritura pública ou por testamento, pelo qual um imóvel é destinado a esse propósito, desde que seu valor não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição. Pode ser integrado ao bem de família os móveis e utensílios que guarneçam o imóvel, bem como recursos financeiros necessários à manutenção do bem, desde que esse conjunto de ativos não ultrapasse o limite de 1/3 do patrimônio líquido quando de sua instituição. Essa exigência é considerada por muitos juristas como sem sentido, considerando que o único imóvel de uma família, por lei, já é considerado como bem de família, independentemente do percentual que seu valor represente considerando o patrimônio integral do favorecido.

 

A vantagem do bem de família voluntário sobre o bem de família legal reside na desnecessidade de comprovação, pelo instituidor, da afetação desse patrimônio ao único destino de ser a residência familiar, em caso de execução com pedido de penhora de bens. No caso do bem de família legal, o devedor deverá fazer prova de que o imóvel é, de fato, sua residência, bem como, caso seja proprietário de outro imóvel de menor valor, que não buscou fraudar o instituto ao designar o bem de maior valor como sendo o bem de família.

 

De outro lado, na hipótese de instituição do bem de família pela forma voluntária, duas são as desvantagens em relação ao bem de família legal: (i) a impenhorabilidade do bem de família voluntário só se opera em relação a dívidas futuras; caso existam dívidas anteriores, a proteção desse instituto não se estende a essas dívidas; e (ii) a alienação do bem de família voluntário dependerá do consentimento dos interessados e seus representantes legais e, no caso de haver menores ou incapazes no núcleo familiar, deverá ser, ainda, ouvido o Ministério Público, consoante o que dispõe o art. 1.717 do Código Civil.

 

  1. Conclusão

 

A instituição do bem de família é uma ferramenta importante para a segurança dos que residem ou vivem de aluguel de imóvel próprio. Desta forma, é preciso analisar cada situação para se determinar as vantagens ou desvantagens de, em cada caso específico, instituir o bem de família de forma voluntária, ou apenas fazer uso da lei que regula essa matéria. Para as família que possuam mais de um imóvel e que atuem como empreendedores ou em atividades que possam colocar em risco o patrimônio amealhado, pode ser mais seguro optar pela instituição do bem de família voluntário, posto que uma vez registrada a respectiva escritura no cartório de registro de imóveis respectivos, torna pública essa afetação patrimonial, sem possibilidade de que haja discussão futura sobre a impenhorabilidade do bem para quitação de dívidas, exceto pelas listadas no art. 3° da lei 8009/90 e pelas dívidas anteriores à sua instituição.

 

Esta é uma matéria extensa, e não é objetivo deste artigo cobrir todas as peculiaridades desse instituto, mas apenas abordar os seus aspectos mais relevantes.

 

Fonte: Migalhas

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